Reportagem / Perfil
António Gentil Martins – um passeio de manhã

A primeira vez que separou dois bebés siameses foi há 41 anos atrás. Mas não foi a única vez que o país parou à espera de notícias para saber se os siameses, por ele operados, sobreviveriam à separação. Com as Especialidades de Cirurgia Plástica e de Cirurgia Pediátrica, é Oncologista Pediátrico, aliando a sabedoria cirúrgica com a oncológica. Tem nele o carimbo genético incontornável de pertencer à família de grandes médicos. Neto do Professor Francisco Gentil, Cirurgião e fundador do Instituto Português de Oncologia (IPO), o pai António Augusto da Silva Martins, também ele médico-cirurgião, morreu-lhe demasiado cedo, quando ele tinha apenas 3 meses de vida. António Gentil Martins tem hoje 88 anos e vai todos os dias ao IPO, a casa que é como uma causa de família.
O IPO, popularmente conhecido como o “Instituto do Cancro”, nasceu de uma necessidade de haver um centro específico que se dedicasse à doença do cancro, doença que aumentava cada vez mais e cujos resultados eram preocupantes.

Já nos idos anos de 1934 o avô Gentil dizia em conferências que "o doente era o Rei", assumindo que era o doente o aspeto mais importante para qualquer bom profissional de Saúde. O neto Gentil Martins conta uma pequena história: andava o Professor Gentil a passar visita à enfermaria do hospital quando perguntou por quem tinha sido recomendado determinado paciente, já que todos eles na altura vinham com recomendação de alguém. Havia, no entanto, um doente que não trazia recomendação alguma. Conta que Francisco Gentil disse então alto e bom som; "este doente passa a ser recomendado pelo Diretor". Cultivava a boa regra de conduta humana que nenhum doente é menos importante do que outro, conduta que não só defendeu para o exercício das suas funções como procurou transmitir aos seus.
Foi no IPO que se construiu pela primeira vez no mundo, um edifício com proteção dos profissionais contra as radiações, de acordo com os critérios estabelecidos no Congresso Mundial de Cancro que tivera lugar em Estocolmo. Mas embora as paredes ficassem mais grossas usou-se barita em vez de chumbo porque o efeito era o mesmo, mas o custo muito menor.
Francisco Gentil conheceu Salazar quando o tratou de uma fratura do fémur, admirando a sua serenidade e coragem no período mais cruel da sua doença, o que se transformou em sólido respeito e amizade, apesar de ser um republicano. Desde então travaram longas conversas e uma confiança que lhes permitiu falar sobre o futuro da Saúde em Portugal. Foi do berço dessas conversas que nasceu a ideia de se criarem dois centros hospitalares universitários - São João e Santa Maria - e finalmente concretizar a Maternidade Alfredo da Costa. Foi numa missão oficial que o avô e Professor Gentil viajou para conhecer o que se fazia de melhor pela Europa quanto a hospitais. Chegado a Portugal e depois de acordado tudo com Oliveira Salazar, reuniu com o arquiteto alemão Hermann Distel em 1938 e a construção do Hospital de Santa Maria iniciava-se em 1940. Foi ainda Distel que contribuiu igualmente para o grande pavilhão Hospitalar do IPO.
Enquanto dependeu da sua vontade o Professor Francisco Gentil defendeu sempre um regime hospitalar universitário, sob a alçada do ministério da Educação. Só após a sua morte tal se alteraria passando o IPO para o Ministério da Saúde.
Foi o seu avô Gentil que criou a Liga Portuguesa Contra o Cancro," para que sociedade pudesse ajudar quando o Estado falhasse". Anos mais tarde, os seus netos Gentil Martins, Francisco, e depois António viriam a ser seus Presidentes. "O Estado não pode dar a tudo, e sempre, a todos: digam a verdade! Dá-se o mais que se pode, com os recursos que há”, diz-me, enquanto recorda os princípios básicos que lhe foram ensinados.
Defende, à semelhança do avô, que a Medicina não pode ser um negócio como outro qualquer, com a finalidade de dar lucro, embora não deixando de merecer uma justa compensação. Sai mais barato comprar caro, se for melhor, pois não só se beneficiará desde logo mas também certamente durará mais tempo sem necessidade de substituição. Defende também que um hospital deve ser administrado por médicos., contando estes com a preciosa ajuda de administradores competentes, preocupados com o equilíbrio financeiro. "São os médicos que, conhecendo a base dos problemas, melhor sabem escolher prioridades.”
Democrata-cristão, por várias vezes deixa claro que não lhe importam as cores partidárias, apenas quer saber onde está o certo ou o errado. “Hoje em dia vem um governo e tudo o que era obra anterior vai para o lixo. Se estava bem, por que razão não se deixa estar? Porque parece mudar-se constantemente de opinião?”.
António Gentil Martins foi aluno da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, na altura ainda no Campo de Santana. Envolveu-se na Associação de Estudantes e foi seu Presidente em 1951/1952. Para trás deixou 8 anos intensivos de violino e trocou-os pela Anatomia que lhe exigia dedicação de 12 ou mais horas diárias. Ainda hoje tem por hábito comparecer aos encontros académicos e eventos da Instituição à qual pertenceu. Se no seu tempo participou nas contidas récitas em que se imitavam professores, recordando uma em que se dizia que “nem o Gentil é polido nem o Pulido é gentil” (brincando com os mais conhecidos professores Catedráticos de Cirurgia e Medicina), hoje assiste enquanto espetador à Noite da Medicina. Mas não poupa a crítica diante das sátiras atuais, acha que a sociedade perdeu o decoro e não se inibe de o dizer a quem o quiser ouvir. “Não é esse tipo de atitudes que gostaria de ver nos Médicos do futuro”.
Disciplinado e rigoroso, o método que lhe foi incutido na educação e pelo exemplo do seu Pai, ficou ainda consagrado enquanto desportista olímpico de tiro, nos Jogos de Roma em 1960 e atualmente como Presidente dos Atletas Olímpicos Portugueses. Foi ainda campeão nacional de voleibol, de ténis (juniores – pares homens) e introdutor do badminton em Portugal. Acumulou ainda os méritos de campeão nacional em tiro de carabina, bem como com espingarda de guerra.

Como em tantos eventos onde marca presença, veio conhecer a nova Aula Magna no dia da sua inauguração. Apresentei-me e pedi que me recebesse um dia para me contar a sua história de vida. Disponível, apresentou de imediato um papel dobrado em quatro, onde tinha detalhada toda a sua agenda, quase completa até ao fim do mês. "Só não me ligue às 6 da manhã, como fez um doente para marcar consulta, pois acabara de sair do emprego... Eu atendo sempre, mas, se puder, é bom ser mais tarde".
Antes de nos encontrarmos aqui hoje, já tivemos uma longa conversa à saída da Aula Magna que me permitiu concluir algumas das suas bases de pensamento. Acha que vivemos numa sociedade falsamente puritana?
Prof. Gentil Martins: Hoje em dia as pessoas não têm coragem de ter opiniões contra a corrente porque vão ser acusadas de coisas horríveis, de serem fascistas, xenófobos, por aí fora. Faz-se a apologia de uma quantidade de coisas que para mim não têm cabimento, agora alguns compram bebés, outros defendem a Eutanásia e a morte assistida, etc., etc.. Acho que se perdeu o sentido das coisas. Penso que vivemos numa sociedade de pessoas hipócritas e isso faz-me muita impressão. Deixou de se pensar nos outros, na solidariedade, na justiça e no bem comum, e cada um só pensa em si, no dinheiro e no poder. Houve um ministro da Educação (que surpreendentemente conseguiu sê-lo antes e depois do 25 de Abril), o Prof. Veiga Simão, que um dia, em conversa, me disse: "foi uma pena na revolução de Abril terem destruído Deus, Pátria e Família e não se terem limitado a juntar a Liberdade, que era o que fazia falta". Juntaram a Liberdade, é verdade, mas o resto acabou e nem sequer perceberam bem o que era a liberdade.
Falou-me em “Deus, Pátria, Família”. “Pátria e Família” toda a sua vida mostra a resposta a essas causas, mas talvez me falte entender Deus. Das muitas operações que fez, quando elas corriam bem, questionava-se se era mérito seu, ou se era Deus que o ajudava?
Prof. Gentil Martins: Nunca pensei nisso. Pensava somente que queria que tudo corresse o melhor possível e ficava desesperado quando não corria bem. Eu operei vários siameses, os primeiros há 41 anos, mas diria que os mais difíceis foram uns de Moçambique e que tinham já sido recusados na África do Sul, já lá vão 19 anos. Contudo a operação que me deu mais trabalho foi a primeira, porque não encontrava nada onde me basear. Nessa altura sofri e hesitei imenso. Essa operação demorou cerca de 13 horas mas na seguinte, praticamente igual, demorei menos de metade do tempo, porque já sabia como era. Os siameses de Moçambique foi uma coisa tremenda porque estavam ligados pelo abdómen e pela bacia. E as soluções que o cirurgião pode escolher estão condicionadas pela natureza. Apesar de muito difícil, ficaram razoáveis, mas não totalmente sem problemas, e por isso avisei que, chegando à puberdade, deviam ser reavaliados. Desde logo indiquei vários tratamentos, o que nem sempre teve lugar e não sei como estão agora, apesar das múltiplas e infrutíferas tentativas de contacto com os Serviços de Saúde oficiais de Moçambique.
E as suas primeiras siamesas, sabe delas?
Prof. Gentil Martins: Estão ótimas. Quando fez os 40 anos da operação fizeram uma grande reportagem com elas. Estão iguais a si, apenas com uma grande cicatriz na barriga. Sabe que você sobrevive se lhe tirarem um rim ou se ficar apenas com um quinto do fígado. Assim como o intestino quando tem de ser cortado, o que fica em si, chega. A única coisa que não se consegue resolver é quando temos um coração comum. Quando é assim o coração é de tal maneira mal formado que não há hipóteses de sobrevivência para nenhum. Curiosamente há mais siamesas que siameses? São 5 raparigas para 1 rapaz, mas o porquê não sabemos. Por outro lado, hoje em dia os siameses só nascem nos países onde não há ecografias pré-natais, como acontece nos países supostos civilizados onde, e erradamente quanto a mim, sempre que durante a gravidez se diagnosticam siameses, se pratica o aborto.
Levanta aqui o tema do aborto. Percebe-se que é contra. Deveríamos então deixar viver os bebés siameses que estão no útero ainda?
Prof. Gentil Martins: Muitos siameses podem ser separados e ficar normais. Deveríamos respeitar a evolução natural do ser humano. Há uma conhecida médica endocrinologista que afirmou, há uns tempos, que nunca houve dúvidas sobre quando começa a vida humana e que tal resulta da junção do óvulo com o espermatozoide. O que lhe gera dúvidas é se o seu valor é igual ao de uma criança já cá fora e crescer normalmente. Ora, eu pergunto o seguinte: quem é que é mais ser humano? 9 meses de vida dentro da barriga da mãe, ou 7 meses de vida enquanto prematuro cá fora? Haverá algum, mais ser humano que outro? Diria que certamente não! Veja uma coisa, um bebé quando nasce, morre se não for alimentado e cuidado. Não sobrevive sozinho e no entanto já está vivo e só perto do ano é que fala e anda. Depois na infância e na adolescência também é necessário apoio e o mesmo sucede na velhice. A vida humana é um todo contínuo. A função do médico é exclusivamente ajudar nas várias etapas da vida.
E mesmo que eu enquanto doente lhe pedisse a si médico que me tirasse a vida, não me ajudava?
Prof. Gentil Martins: Eu acho que não é esse o papel do médico. Não o faria. Não há uma portagem para definir quando começa a vida e quando ela acaba.
Gostava de tocar noutro ponto e que é a sua posição sobre a forma como se admitem os novos alunos para os cursos de Medicina. Sei, inclusivamente, que tentou sugerir às várias faculdades da área uma proposta nova de admissão, mas que só duas lhe deram resposta e foi apenas por cordialidade. Que proposta é essa que defende?
Prof. Gentil Martins: Eu não tenho uma solução, apresentei uma hipótese. Há uns tempos atrás o Hospital de Santa Maria tentou fazer uma avaliação aos alunos antes da admissão. Como eram milhares de candidatos, arranjou umas dezenas de grupos de júri para fazer a avaliação preliminar. Só que não tinham todos o mesmo critério e o processo acabou por não resultar. Deixou de ser repetido. Eu não sei qual a solução, mas acredito que a vocação é fundamental, bem como o desejo de ajudar os outros. São precisas pessoas que gostem de pessoas e que as tratem bem. O doente tem de ter confiança no médico, mesmo que ele não seja um consagrado professor. Tem é de ser um bom ser humano, que queira fazer sempre o melhor. É isso que o doente quer, alguém que se interesse por ele e que lhe dê atenção, para além de ser competente. Por isso, entendo que só a nota é um disparate total. Posso ser um aluno brilhante a estudar, mas não ter nem sensibilidade nem educação, para lidar com o “Outro”. Entendo, é claro, que a nota é importante. Mas além disso teria de demonstrar que gosta de ajudar os outros e se dedicar a eles. Haveria uma prova de admissão com programa previamente bem divulgado. Sugeri, há mais de 10 anos, que para o concurso de entrada nas faculdades de Medicina se considerasse também se teria havido percurso de voluntariado social, devidamente comprovado, durante o liceu. Seria um pré-requisito obrigatório.
E quando nos conhecemos também me disse que "as Guidelines, não são God’s lines". É nesse sentido?
Prof. Gentil Martins: É exatamente nesse sentido e tem um significado fantástico! As guidelines são um auxílio ótimo, mas não chegam por si só. Eu tive uma grande luta após o 25 de Abril de 1974. A Ordem dos Médicos desapareceu e foi substituída por um Sindicato, com o argumento que o médico era apenas um trabalhador da Saúde só necessitando da sua defesa como trabalhador. Eu sempre achei que o médico é diferente do trabalhador convencional, porque além de tratar da sua carreira profissional tem de tratar das Pessoas, sãs ou doentes. Após uma Assembleia de mais de 1000 médicos fiquei Presidente da Mesa do Sindicato (por cerca de 800 votos favoráveis contra 200) mas com a missão expressa de plebiscitar o que os Médicos desejavam como Organização profissional. É claro que o médico também tem de se defender laboralmente e por isso procurei uma Ordem com funções sindicais, o que no plebiscito obteve 78,3% dos votos e os sindicalistas, no poder, apenas cerca de 5%. Foi assim que acabei por ser eleito o 8.º Bastonário da Ordem dos Médicos (de 1977 a 1986). Envolvi-me muito na Ordem, levei tudo muito a sério, porque entendi sempre e entendo que os médicos têm de ser bem acarinhados e bem tratados, se queremos que eles tratem bem os doentes. Com os enfermeiros passa-se a mesma coisa.
Como é que se resolve este problema das sucessivas greves dos enfermeiros?
Prof. Gentil Martins: Honestamente não sei o que se está a passar, porque os enfermeiros dizem que estão a cumprir os serviços mínimos e o governo diz que não. Não tenho dúvidas de que são profissionais mal pagos, sem uma Carreira Profissional adequada e indevidamente considerados, em comparação com outros profissionais. Independentemente disso eu sou contra as greves médicas. Totalmente contra. Elas prejudicam sempre os doentes. No passado liderei uma greve por causa do Estatuto do Médico, que não foi aceite pelo Governo. O Médico era um funcionário sem contrato de trabalho nos Serviços Oficiais e que podia ser despedido a qualquer momento. Mas foi uma greve eticamente correta, a única que considero aceitável, mas infelizmente ineficaz ao beneficiar o infrator. A nossa greve era escrever no livro de ponto "estamos em greve", mas a seguir íamos fazer rigorosamente o mesmo trabalho de sempre. E mais, tínhamos um grupo de médicos prontos a atender qualquer chamada, de graça, de alguém que ligasse a precisar de apoio e que não o estivesse a receber. Durante 3 semanas trabalhámos todos de graça, mas íamos trabalhar. O governo estava satisfeitíssimo com esta greve porque estava a poupar nos gastos gerais. Como em greve não se ganhava, os médicos mais novos, que só exerciam no público, não tinham ordenados nem uma poupança guardada que os ajudasse a subsistir. Assim a greve era insustentável e virar-se-ia contra nós. Milagrosamente num sábado de manhã e ao fim de 3 semanas, o Secretário de Estado proibiu os médicos em greve, de entrar nos hospitais. Nós assim fizemos e o Hospital de São João, no Porto, só ficou com 7 médicos! Sabe o que é um Hospital daqueles só com 7 médicos? Domingo de manhã o Governo Pintassilgo reuniu de emergência para aprovar o Estatuto do médico. E acabou a greve.
Ainda atrás na conversa dizia-me sobre a Saúde ser grátis para todos que tal não é possível e dizia “não mintam, digam a verdade”.
Prof. Gentil Martins: Eu sou pela universalidade, mas por um modelo diferente. Porque é que não vão estudar os modelos onde estão melhores do que nós? França, Alemanha, Bélgica ou Holanda, têm um sistema de seguro de saúde nacional e não um sistema de Estado. A Rússia ou a Venezuela é que têm sistemas de Estado. A Inglaterra também começou com um sistema de Estado e já o modificou totalmente e várias vezes!
Apesar de nunca ter convivido com o seu pai, diz que jamais lhe chegou aos calcanhares. Em que sentido diz isso, desportivamente?
Prof. Gentil Martins: Não tenha dúvidas! Aliás não só no desporto. Ele para além de ter sido campeão do mundo em espingarda, em 1928, dois anos antes de falecer no acidente na carreira de tiro aos 38 anos, ele que era considerado um atleta extremamente prudente e cuidadoso, foi campeão de Portugal e Recordista de lançamento do Peso, do disco, do Dardo, de Salto em Altura, Salto em Comprimento e em Largura e de estafeta 3 por 300 metros. Ele tinha uma preparação física fantástica, obtida sobretudo através da ginástica. Estava a preparar-se para os Jogos Olímpicos, de Los Angeles (1932), e um boletim da Federação de tiro, mostrando um alvo onde batera o recorde do mundo, escreveu "António Martins, o futuro campeão do mundo", pois tinha feito um alvo onde tinha batido o recorde do mundo. Quando o meu pai morreu já era Cirurgião de Hospitais e lecionava na Faculdade de Medicina de Lisboa. Imagine onde chegaria se tivesse vivido mais… Egas Moniz, com quem colaborou nas angiografias cerebrais, dizia que era o melhor homem que tinha conhecido. Quanto a mim tive a sorte de ter uma mãe fantástica que me transmitiu todas as ideias dele e quem ele era. E eu fui tentando embora sem o conseguir, fazer o mesmo que ele.
Há alguma coisa na vida que lhe cause medo?
Prof. Gentil Martins: (Fica em silêncio algum tempo) Não... (novo silêncio) Medo não... Mas lamento algumas coisas. A maior de todas foi que menosprezei a minha família devido à minha quase que obsessiva ligação à Ordem dos Médicos, durante mais de 10 anos. Nesses anos eu não existi para casa. A minha excecional mulher teve de aguentar tudo sozinha... E os meus filhos quase que não contaram comigo.
São quantos filhos?
Prof. Gentil Martins: São oito, só. E quase 26 netos.
E os filhos cobraram-lhe essa ausência?
Prof. Gentil Martins: Não! Nada. Mas ela aconteceu porque eu queria defender médicos e doentes e mudar o Sistema de Saúde e vivi só para isso. De resto, na vida, fiz mais ou menos aquilo que então entendia que devia ter feito embora agora tenha dúvidas em muita coisa e que devia ter pensado melhor... Mas foi assim que foi sendo.

António Gentil Martins trata todos os doentes com extremo zelo e ternura, percebe-se que colocou a sua vida ao serviço deles.
Orgulhoso do carisma do IPO, lamenta contudo que não haja um cirurgião oncológico pediátrico que possa dar continuidade ao seu trabalho de anos e anos e que para a Cirurgia dos tumores da criança se tenha de recorrer ao Hospital de D. Estefânia. Enquanto passeamos pelo jardim de uma manhã fria de sol, diz-me que trabalhou sempre no IPO, onde se criou o primeiro Serviço no Mundo, unindo Pediatras Médicos e Cirúrgicos. Embora goste de ouvir os colaboradores, entende que a responsabilidade é sempre sua, do primeiro corte até ao último ponto da costura.
Há pouco tempo contestou um protocolo internacional sobre leucemias e submeteu-o a aprovação. Depois do trabalho ser aceite e aprovado foi contactado pelo Editor da reputada Revista “Leukemia” para pagar €2080, para que o artigo fosse publicado. Foi o fundo de investigação do IPO que assumiu esse custo, o que Gentil Martins não faria, reforçando que não tem perfil para fazer marketing e lamenta que a literatura Médica possa transformar-se em negócio.
Deixou de usar óculos há seis anos quando foi operado às cataratas. Tirando isso tem um pacemaker no coração para travar as suas ligeiras arritmias. Diz que com 88 anos ainda não lhe tremem as mãos, se tiver de operar. Contudo já não faz tudo o que fazia mas apenas aquilo que tem a convicção de poder ficar bem feito. Uma operação pode sempre correr mal e que nunca nada é 100% controlável, mas considera que a idade só por si não é condição para nada mas sim a capacidade com que se está. Mas é uma regra básica e essencial na Medicina que o Médico só deve fazer aquilo que considera conhecer e saber fazer bem. No IPO dá consultas à 6ª-feira à tarde e está disponível sempre que necessitem. No consultório privado tem sobretudo consultas para segundas opiniões e que felizmente são, regra geral, concordantes. Depois os doentes seguem para o médico inicial e não voltam.
Deixamos o jardim, leva uma pasta com uma alça pendurada ao ombro. Mostro-lhe uma aplicação para chamar um transporte à porta. Ofereço-lhe boleia e digo que o deixo onde quiser, nega. Leva-me à porta do carro, depois sorri, “eu também tenho aqui o meu transporte, (mostra o passe) vou de autocarro e metro”.
Joana Sousa
Equipa Editorial
