Reportagem / Perfil
Mamede de Carvalho – o bom humor ao serviço da vida

Quem fala com ele não adivinha à partida que nasceu no Rio de Janeiro e só depois se mudou para Brasília, até aos 13 anos de vida, não sem antes passar por Lisboa entre os 7 e os 10 anos, e antes do retorno definitivo a Portugal. Anos e anos passados e sem qualquer vestígio de sotaque carioca, há, no entanto, expressões típicas que o denunciam. O pai, Chef de cozinha de dois dos melhores hotéis do Brasil, foi o responsável por servir algumas das melhores refeições a grandes figuras de Estado da História do mundo e do país: Henry Kissinger, Jimmy Carter, Eduardo Frei, Ernesto Geisel, Costa e Silva, Garrastazu Médici, Américo Thomaz são apenas alguns dos nomes.
Ainda miúdo recorda atravessar os largos quarteirões de uma Brasília inóspita e seca, de terra avermelhada, para encontrar um “boteco” onde pudesse matar a sede com um guaraná. Contrastes de mundos que talvez expliquem um pouco da sua personalidade atual.
Mamede Alves de Carvalho não tem dupla nacionalidade, é apenas português, mas da sua origem brasileira está ainda a forma como samba com a vida e lhe vê graça e a vai levando sem o cunho trágico mais lusitano.
Subdiretor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, cargo confiado pelo Diretor, é por excelência Médico Neurologista no Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte. Group Leader no Instituto de Medicina Molecular (iMM-João Lobo Antunes), assume também o cargo de Diretor do Instituto de Fisiologia. A sua área de especialidade é nas doenças neuromusculares e eletromiografia, em especial na ELA - Esclerose Lateral Amiotrófica – lidando diariamente com doentes que têm a doença degenerativa mais severa do sistema nervoso e que leva à morte por insuficiência respiratória e motora, entre 3 a 5 anos.
Um dos poucos Europeus distinguido com o prémio Forbes Norris, que destaca o médico que tenha demonstrado excecional cuidado e compaixão pelo estudo e investigação desta doença.
A Medicina, diz, foi escolhida por um “ímpeto infantil”, que chegou a balançar ainda pela Física, mas sem grandes hesitações. Foi na altura do internato geral que, numa fase que durava dois anos e debruçado na Medicina Geral, acabou por ir para o Hospital de Cascais, onde diz que se trabalhava bastante. Talvez não se recorde da maior parte dos dias 31 de dezembro que já viveu, mas há um em concreto que fala de cor. Um grave acidente na estrada marginal faria com que um grupo de pessoas fosse parar à urgência, alguns em estado bastante crítico. As decisões que tomou foram várias e sem tempo para grande hesitação, na mesma medida em que tinha de confiar em si, os feridos daquela noite viram as suas vidas salvas. Depois de fazer suturas e identificar lesões vertebro-medulares, enviando alguns para um hospital central, percebeu que nada falhara e que tinha superado a primeira grande prova de fogo. Noutros tempos, que já não se repetem mais, fez vários partos e cesarianas. Chegou então o tempo da escolha final e entre a Neurologia e a Neurorradiologia acabou por escolher a primeira. Seguiu em 1988 para o internato de Neurologia em Santa Maria, aceite como o melhor Hospital para aprender e exercer a Neurologia. “A marca do Egas Moniz persistia no meu tempo, mas ainda persiste, porque havia uma curiosidade e abertura para a novidade, para estudar e publicar coisas novas”.
É nesta altura que trava conhecimento com a Professora Sales Luís, sua mentora e especialista em doenças Neuromusculares, bem como Diretora do Serviço de Neurologia. Precocemente ganha contato com a Patologia Neuromuscular e Eletromiografia, o que o tornou num raro jovem Neurologista com uma subespecialidade nas doenças Neuromusculares. Dentro deste universo de doenças e cujas derivações são variadíssimas, percebeu que havia duas particularmente desafiantes, a Paramiloidose (doença com impacto no litoral norte do país, mas com prevalência também relevante em Lisboa), e a Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA). Tendo sido a sua mentora Sales Luís a criar a primeira consulta dedicada à ELA no país, e das pioneiras a nível Europeu, cedo Mamede de Carvalho começou a acompanhar intensamente ambas as consultas. Durante muitos anos realizou sozinho a consulta de Paramiloidose, e acompanhou, na altura com poucos doentes, a consulta de ELA. “Se no passado tinha 4 consultas por semana, hoje em dia vejo uma média de 20 doentes e se conseguisse encaixar mais tempo teria uns 50”. O tema é complexo e não encontra uma só resposta óbvia, mas a explicação mais provável é que o diagnóstico tem vindo a ser cada vez mais precoce e as pessoas aumentaram o seu tempo de vida. Uma doença que se manifesta mais a partir dos 60 anos, apesar de alguns casos despoletar em jovens, e a predominância continua a ser masculina. A partir do momento em que recebe os doentes, Mamede de Carvalho não os volta a largar, contrariando outros registos clínicos como em Inglaterra em que numa fase mais avançada ficam apenas acompanhados pelos cuidados paliativos.

Com mais de 300 artigos publicados, estuda tanto nos bastidores, como trabalha diariamente com os seus doentes. Sem ter demarcada a diferença entre dias da semana, férias, ou fins-de-semana, lê e revê teses e projetos de outros pares, sendo revisor internacional de trabalhos científicos. Em 2018 recebeu o Publons Peer Review Award, destacando-se como um dos mais produtivos revisores internacionais.
Com graça brinca a dizer que tem apenas 4 gatos, o número limite aceite pelos regulamentos, diz, mas na verdade são 7, todos apanhados na rua. Um deles, o Óscar, seguiu-o até à sua casa e nunca mais largou o dono, nem o sofá. Olha para os animais como pessoas, “eles são simpáticos, deixam-me lá viver”. Divertido na escolha dos nomes dos seus animais, onde também já existiu uma Rebeca cadela, confidencia que a originalidade também se estende aos alunos, escrevendo pseudo nomes nos exames e que apesar de irreais, têm sempre algo a dizer do caso clínico que integra a pergunta.
Mamede de Carvalho não fala sempre a brincar, longe disso, o humor fica guardado para situações muito concretas e quando já confia em alguém, ou na situação que tem diante de si. Há temas que lhe tiram o olhar vivaço do antigo garoto carioca, o nervosismo permanente de mudança dos políticos e das suas políticas, o estado da Saúde e a falta de financiamentos do ensino, ou a doença que avalia todos os dias, a Esclerose Lateral Amiotrófica. De um começo de conversa, para a análise do estado das coisas, até ao começo da vida quando aparentemente a vida já tem um prazo de validade traçado. Foram estes os nossos pontos fundamentais.
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O quadro desta doença é drástico. Quem tem ELA em poucos anos morre, após um sofrimento devastador, onde lhe foi sendo tirada toda a capacidade motora e inclusivamente a respiratória. Nunca se sente frustrado diante de um inimigo que se chama ELA e que o continua a vencer e a desafiar?
Mamede de Carvalho: Só pode acompanhar este tipo de doentes quem tem uma enorme capacidade de lidar com a frustração. E eu tenho-a. É óbvio que é frustrante, mas temos que ter uma capacidade na vida de acoplar essa frustração. Eu sei que aquele doente diante de mim está a sofrer e que vai morrer, mas também sei que se ele não tiver ninguém que o apoie, ainda será pior. Portanto, a minha obrigação é compreendê-lo e empatizar com ele, de modo a ajudar o mais possível. Aquilo que devo fazer é investir no meu apoio àquele doente e não devo entrar nas minhas próprias interpretações de vida, para o ajudar não posso pensar na frustração que isso me possa causar. Agora, claro que é sempre difícil esta gestão. Mas sabe que para mim não faz qualquer sentido, como se fez no passado, convidar os doentes a ir para casa, informados que estão da progressão da doença, e deixá-los sozinhos clinicamente. Isso não é razoável. No apoio que damos há que manter sempre uma esperança, uma luz ao fundo do túnel. E depois temos vários tipos de doentes, os mais sofisticados e que se informam de tudo, outros que não foram à procura de nada e não querem ir. De acordo com a linguagem de cada doente há que dosear o fator esperança, explicando que há avanços na investigação.
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E essa esperança é real? Porque se tem lutado por uma investigação séria nestas áreas e da qual também faz parte.
Mamede de Carvalho: Sem dúvida, mas não podemos personalizar a falar de uma ou outra investigação, tem de ser num sentido mais universal. Há, de facto, gente brilhante espalhada pelo mundo a investigar esta doença, porque ela é um desafio terrível.
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Concretamente o que é que se procura nas investigações desenvolvidas?
Mamede de Carvalho: Para já compreender a doença, porque se se conhece bem o mecanismo de morte celular nos seus processos, conhece-se mal qual é o fator inicial que desencadeia a morte celular. Depois perceber como é que a doença se propaga. Outro dado importante é que há mais de 30 genes envolvidos na doença e que têm ações e propriedades diferentes e importa saber qual o ponto comum que possa justificar depois que os doentes, mesmo que não tenham nenhuma mutação, possam partilhar, o mecanismo primário, que possa levar à morte celular. Há muita investigação ainda a fazer nesta área. Muitos investigadores são também clínicos e portanto como têm uma base de integração clínica, estão particularmente preocupados e atentos em procurar uma resposta para o doente. O que pretendemos é identificar os mecanismos moleculares que possam permitir o desenvolvimento de fármacos para travar ou lentificar a evolução da doença. Ora estes aspetos são motivadores para os doentes.
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Qual é o seu foco de investigação?
Mamede de Carvalho: A minha dedicação mais histórica tem sido a investigação neurofisiológica (incluindo os critérios de diagnóstico), assim como temas relacionados com a disfunção ventilatória, o suporte respiratório e métodos de avaliar a progressão do envolvimento dos músculos respiratórios. Os meus focos mais recentes versam os bio marcadores moleculares, os estudos genéticos (em colaboração com consócios internacionais), os fenótipos, assim como a neuromodulação por correntes elétricas trans-cutâneas.
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Temos forma de antecipar esta doença?
Mamede de Carvalho: Não, há manifestações precoces clínicas como a falta de força, e eletrofisiológicas, como a perda de unidades motoras, mas não conseguimos fazer testes de rastreio para antecipar o diagnóstico ou uma intervenção. Cerca de 1 pessoa em cada 12000 vai desenvolver esta doença.
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Foram várias as pessoas que comentaram que tem um sentido de humor muito refinado. Explique-me este balanço diante daquilo que faz todos os dias.
Mamede de Carvalho: O sentido de humor vem desde sempre. E a minha personalidade não é contaminada, não é alterada, pelos doentes que acompanho. Nem os doentes me quereriam ver deprimido. Por outro lado temos que manter uma certa distância perante o próprio sofrimento, mas sabe que muitas vezes me ri-o bastante com os meus doentes? E a maioria gosta que eu seja assim, na verdade, quem não gosta até são aqueles que não têm doença nenhuma. (Ri)
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Diz muitas verdades através do seu humor?
Mamede de Carvalho: Sem dúvida. É uma boa arma, não é?
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É, principalmente porque nem todos a percebem.
Mamede de Carvalho: Exatamente. (Dá uma gargalhada)
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Quisemos falar consigo na perspetiva dos vários começos, tema deste mês. Enquanto subdiretor da Faculdade e enquanto médico. Enquanto médico e começado que está este ano, o que se perspetiva num Serviço Nacional de Saúde que se apresenta sobre- endividado?
Mamede de Carvalho: O problema da Saúde é um tema bastante complexo, porque exige uma gestão planeada e firme, algo que Portugal não é muito vocacionado. O país não planeia os assuntos atempadamente, às vezes o faz por soluços urgentes, e quando tal sucede a decisão tende a ser alterada por sucessivos ministros, por vezes do mesmo governo. E esta é uma situação aberrante porque deveria haver programas consensuais, racionais e estruturados, e respeitá-los de forma firme até ao fim. É assim, de resto, na Ciência. Quando um investigador planeia as suas tarefas, depois não as muda de forma avulsa a meio do percurso. Respeitam-se as normas científicas e atua-se mediante essas. O mesmo se aplica a um trabalhador que chega a uma empresa e tem de respeitar as decisões estratégicas que já existiam. Na Saúde faltam linhas de ação bem estabelecidas. Depois há outro problema, os profissionais de saúde são muito mal pagos, e criaram expetativas, irreais mas justas, com o pseudo fim da crise. A falsa expetativa é algo terrível, digo-o até sobre os doentes, porque gera muita confusão. Por outro lado, temos a Saúde a tornar-se muito cara, os tratamentos inovadores têm custos muito elevados. Falo das doenças oncológicas, mas não só, também as doenças neurológicas, como a esclerose múltipla. Embora haja no geral normas sobre o uso dos fármacos, não existe muitas vezes um estrito controlo da aplicação, o que faz com que os gastos em medicamentos seja mais difícil de gerir. Sobre 2019, será um ano de transição, porque sendo ano de eleições, as decisões vão procurar ter popularidade, mas há que ter linhas claras em relação ao SNS. Em particular, é urgente que se tomem decisões no sentido de esclarecer se o País quer um SNS forte, eficaz e que satisfaça as necessidades da população; ou se querem suportar a Saúde com base no sector privado. Penso que ganhará a primeira versão, mas para tal será preciso um investimento maior. Sabe que sempre me surpreendeu como é que um país como o nosso, pequeno e pobre, tem mais grandes unidades privadas de saúde que um país rico do norte da Europa. Na Alemanha, França ou noutros Países, ainda há os velhos consultórios privados, com as tabuletas à porta gravadas com o nome do médico, e aqui esses consultórios íntimos desapareceram; só encontro unidades de grandes grupos privados em cada pequena localidade ou bairro. Hoje até em hospitais privados se podem formar internos, o que é discutível. Fará sentido unidades privadas de saúde formar médicos? Terão as valências necessárias e a independência quanto a uma visão economicista (na estranha tricomia doente/utente/cliente)? O país tem que refletir muito sobre o modelo que quer adotar.
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Temos outro tema preocupante em cima da mesa, a possibilidade de se acabarem com as propinas. Como é que a nossa Faculdade olha para este assunto?
Mamede de Carvalho: Com preocupação. Há questões aqui muito perturbantes. Pessoalmente, considero que abolir as propinas em Portugal significa que a população mais pobre passa a contribuir fortemente, pelos seus impostos, para que a população mais favorecida estude. Para mais, sendo estatisticamente certo que um curso superior está associado a um vencimento mais elevado, as propinas resultam num pequeno esforço de investimento individual dos próprios para ganhos futuros, retorno económico, próximo da filosofia de uma qualquer outra aplicação no mercado financeiro. Certamente que os alunos carenciados devem ter sempre forte apoio de forma a que o estudo não fique comprometido por constrangimentos económicos. Do ponto de vista institucional, uma vez que o governo não está a atribuir uma compensação para dotar as universidades do valor em falta pela redução das propinas, tal decisão tende a criar na Universidade, e noutras do país, uma situação de estrangulamento económico insustentável. Desde a famosa crise, que castigou com particular severidade o ensino superior, as universidades estão cronicamente subfinanciadas, um acrescento de dificuldade é um exercício de elevado risco. Portanto, parece-me um paradoxo querer-se, por um lado, que uma elevada percentagem da população jovem usufrua de formação superior e tenha elevada diferenciação, e que as universidades tenham boa investigação e produtividade no âmbito internacional, e, em paralelo, haja sucessiva redução do financiamento. Ou se decide que elas são importantes e então financiam-se. Ou assume-se que afinal não são assim tão importantes. As decisões têm que fazer sentido. Veja que quando tivemos as grandes crises dos bancos em Portugal, considerou-se de grave risco que estes bancos não fossem suportados pelo orçamento de estado, devido ao efeito dominó que podiam ter na economia. Ora, se consideram que as universidades são importantes, então, devem seguir a mesma linha de raciocínio. A meu ver pagar uma propina, até porque ela já é simbólica, é um ato de reconhecimento que as coisas têm o seu custo. Do ponto de vista psicológico, as pessoas tendem a desvalorizar o que não é pago. Esta propina é para mim um reconhecimento pelos alunos do esforço da sociedade, na sua educação. Mas, devem reforçar-se os mecanismos de apoio para quem realmente precisa de ajuda para estudar.
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A proximidade com os alunos é importante para si? Ajuda a manter mais próximo da realidade?
Mamede de Carvalho: Essa proximidade com a juventude tem sempre um efeito muito revigorante. (Ri) Principalmente para quem já não é assim tão jovem, esta proximidade dá-nos vantagem biológica. Mas também penso que os mais jovens beneficiam de alguém que lhes possa emprestar alguma informação e orientação, suportada pela experiência.
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É essa a definição de um Professor e o seu papel, “emprestar a experiência e a sabedoria”?
Mamede de Carvalho: Hoje em dia o conhecimento perdeu relevância, porque hoje ele vê-se no youtube. Antigamente era uma coisa com muita importância, porque estava apenas contido na cabeça e nos livros de ilustres Professores.
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Há esse desdém latente nos mais novos sobre o conhecimento dos mais velhos?
Mamede de Carvalho: Não diria que é um desdém, mas uma perceção de que o conhecimento agora é mais fácil de obter. No meu tempo poupávamos muito para comprar um livro. Agora lê-se tudo online. Agora, há outro aspeto tão importante quanto o conhecimento e que é a orientação e a capacidade, principalmente para um médico, de aplicar os conhecimentos adquiridos. Nas aulas exploramos que tipo de conhecimento é útil para um médico ter na perspetiva do seu papel no doente. Essa é a nossa função, na orientação das dúvidas na formação e no trajeto profissional, e nesse sentido a experiência dos mais velhos é muito importante e geralmente muito bem recebida.
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Professor, como é que se começa a vida quando nos é diagnosticada uma doença severa? Como é que a vida continua quando perdemos a saúde, sabe-me responder?
Mamede de Carvalho: Olhe… temos aqui dois cenários diferentes. O do doente jovem que lida com uma doença grave e o do idoso. A pessoa que chega aos 70/80 anos e que sempre foi independentes e ativa, tem uma visão própria da sua dignidade. Já viveu, já sabe bem o que é a vida, ganhou muita experiência e algumas destas pessoas já estão um pouco cansadas. Elas não aceitam, geralmente, viver sem a sua dignidade e preferem morrer quando chegar o tempo. E é sincero quando o dizem. E eu compreendo isso muito bem. Porque elas passam a ter de ser vestidas e lavadas e isso é a humilhação da dependência. Outra coisa é um jovem, e tenho alguns com ELA apenas com 30 / 40 anos, estes querem viver e adaptam-se a quase tudo. Consideram que ainda têm um caminho, mesmo com uma doença grave. Sabe que eu falo sempre com as famílias dos doentes, as que aparecem, e digo sempre que haverá uma perda desta dignidade, sobretudo nos mais idosos, que sempre foram saudáveis, e que a morte é uma inevitabilidade. Muitos sentem que é uma bênção morrer o quanto antes. Isto tem que ser respeitado, não respeitar a visão própria do doente é um grave erro da sociedade.
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E o que pode fazer nesses casos enquanto médico?
Mamede de Carvalho: Só posso ajudar a suportar melhor o sofrimento, mantendo o mais possível a sua dignidade. Mas no cumprimento rigoroso da minha posição de médico integrado nas normas que aceito. Mas posso manifestar empatia e dizer que pensaria da mesma maneira. A dignidade é a expressão mais importante de qualquer pessoa.

Ainda sem cura, a doença ELA já pode ir sendo gerida com medicação e suporte ventilatório. O resto, que ainda é pouco, é criado na relação entre o médico e o doente.
Presidente do conselho científico da APELA - Associação Portuguesa de Esclerose Lateral Amiotrófica - Mamede de Carvalho dirige dentro do CAML o centro ELA e vai investigando outros começos que possam dar mais continuidade à vida. Ligado em rede a outros centros do mundo tenta procurar sempre novas soluções e formas de conforto ao doente.
Quando me falou da sua vida entre os seus gatos e livros, perguntei-lhe se se sentia sozinho. Percebi que não, nada. Demasiado rodeado de vida e conhecimento, sem, no entanto, nunca lamentar as dificuldades que se atravessam diariamente. Até porque, como me disse, “a vida sem humor não tem piada nenhuma”.
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Joana Sousa
Equipa Editorial
