Reportagem / Perfil
Diogo Ayres de Campos – Os dois grandes começos

Apesar de estar há dois anos no Hospital, a sala onde se arruma, entre duas secretárias apertadas, é transitória. Na mesa, que parece curta demais talvez por conter tantos elementos, tem dois computadores e papéis importantes, um deles uma planta daquele que pretende que venha a ser o novo Bloco de Partos do Hospital de Santa Maria.
Organiza matematicamente cada assunto e sem aparentes ajudas complementares, sabe a sua agenda ao detalhe e tem sempre disponibilidade para encaixar mais um e outro tema. Dois dias depois de o contactar a primeira vez, recebia-me para falarmos do seu novo cargo. Com respostas objetivas sobre o que lhe é essencial, não se coíbe de mostrar o que pensa dos assuntos e não traz para a conversa cargos ou méritos adquiridos.
Diogo Ayres de Campos fez quase toda a sua carreira académica na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e apesar de ter passado por Cambridge e de ter um sotaque britânico que não o trai, o doutoramento e a agregação também foram tirados a norte. Só veio para Lisboa em Janeiro 2017, altura em que a sua mulher e as duas filhas já viviam na capital, todas por opção profissional. Mudar-se era quase uma inevitabilidade, pela companhia da família, mas também porque conhecia bem as pessoas do Serviço de Obstetrícia do Santa Maria e a boa relação profissional e as amizades quer no Hospital, quer na Faculdade de Medicina de Lisboa não podiam ser mais facilitadoras. Sucedeu na Faculdade de Medicina a Luís Graça, Professor jubilado há 3 anos atrás e que dirigira o Departamento de Obstetrícia, Ginecologia e Medicina da Reprodução do Hospital de Santa Maria (CHLN). A carteira de contactos científicos internacionais foi possivelmente um dos fatores mais importante na escolha de Diogo Ayres de Campos para suceder na Direção do Serviço de Obstetrícia do Centro Hospitalar de Lisboa Norte (CHLN), mas seguramente que não foi só.
Ainda enquanto estudante tinha como certo uma de duas fortes escolhas clínicas, ambas ligadas à cirurgia, a geral, ou a Ginecologia e Obstetrícia. Esta última foi ganhando mais evidência à medida que ia eliminando todas as áreas que o fizessem lidar com o fim da vida. “Não lido muito bem com as doenças terminais e com os desfechos muitos negativos, isso afetar-me-ia psicologicamente”, diz. Daí a Obstetrícia como escolha muito natural “porque 99% das vezes as coisas correm-nos bem”.
O intraparto foi sempre a sua área preferencial de investigação, particularmente os aspetos relacionados com a monitorização fetal e a resposta clínica às emergências obstétricas. Foi coinventor do sistema de análise automatizada do cardiotocograma “OmniView-SisPorto” (Speculum, Lisboa) e do simulador de emergências obstétricas “Lucina” (CAE Healthcare, Montreal, Canada), ambos desenvolvidos para promover o nascimento mais seguro. Diogo Ayres de Campos coordenou ainda a elaboração das normas da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO) sobre monitorização fetal intraparto. Criado há 50 anos, o CTG continua a ser o método mais utilizado para monitorizar a oxigenação fetal durante o trabalho de parto. As recomendações da FIGO vieram trazer uma maior uniformidade à interpretação dos exames, bem como à resposta clínica perante as diferentes alterações encontradas.
Afirma ser um defensor convicto que o médico não deve interferir no rumo da natureza, exceto quando absolutamente necessário para evitar uma doença ou um desfecho adverso, conceito que é particularmente importante numa situação fisiológica como a gravidez. Apesar de nos últimos 80 anos os cuidados obstétricos e neonatais terem levado a uma diminuição de cerca de 100 vezes da mortalidade materna, e de cerca de 30 vezes da mortalidade perinatal (relativa aos fetos e recém-nascidos), na realidade continuamos sem conhecer minimamente os mecanismos que levam a que uma junção entre duas células venha a dar origem a um novo ser humano”, justifica. Este e outros milagres da vida devem-nos suscitar um enorme respeito pela natureza, e não a achar-nos mais importantes do que ela.
Atualmente é presidente da Comissão Nacional para Redução da Taxa de Cesarianas, uma comissão consultiva pro-bono que reúne vários profissionais da saúde e que aconselha a Direção Geral de Saúde e o Governo sobre aspetos relacionados com a necessidade de evitar cesarianas desnecessárias. As várias medidas tomadas sob conselho da Comissão levaram a que Portugal tenha reduzido a taxa de cesarianas nos últimos 10 anos, estando atualmente com números semelhantes a países como a Alemanha, Suíça ou EUA. Os argumentos são objetivos e claros, optar pela cesariana em vez do parto normal, por uma questão de comodidade ou gosto pessoal, aumenta substancialmente vários riscos para a mãe, e também para o bebé.

Habituado a conviver internacionalmente com os seus pares e entre comissões científicas, é chamado várias vezes para partilhar a experiência Portuguesa de redução da taxa de cesarianas, encarada internacionalmente como um exemplo de sucesso no combate a um problema que atingiu dimensões preocupantes em várias partes do mundo. As suas motivações justificam que tenha feito parte de um comité da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia e de um painel da OMS que se debruçaram sobre este tema.
Eleito em setembro do ano passado Presidente da Sociedade Europeia de Medicina Perinatal – EAPM – tem o ónus de liderar a única sociedade científica europeia da Obstetrícia e Neonatologia, fomentando a criação e partilha do conhecimento nestas áreas.
Publicou 121 artigos científicos em revistas internacionais indexadas na Medline, editou 1 livro internacional, assinou capítulos de 16 livros internacionais e deu 168 conferências por convite em reuniões científicas internacionais.
Diz que vive bem com quem está em desacordo com as suas opiniões, “desde que o transmitam de forma respeitosa e não conflituosa”. A pluralidade de ideias e a riqueza dos argumentos deve ser uma das mais-valias do meio universitário e é um dos principais traços da sua forma de ver um Serviço hospitalar académico.
Num mês em que o tema de destaque são precisamente os começos, a tentação em falar sobre a vida e quando se dá o seu começo foi óbvia. Mas Diogo Ayres de Campos enfrenta outro grande começo, a Direção de Obstetrícia naquele que é um dos maiores hospitais do país e o que resolve os maiores problemas quando já ninguém mais sabe como resolver.
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Para um Obstetra quando é que começa a vida?
Diogo Campos: O tema é complexo e ultrapassa muito o âmbito científico. Falar sobre o que é a vida e quando ela começa, está mais ligado a convicções pessoais do que ao conhecimento preciso de um qualquer fenómeno que determine inequivocamente este momento. Sabendo-se tão pouco sobre os fenómenos que levam ao desenvolvimento de um ser vivo, como poderemos definir se a vida começa na altura da fecundação, da implantação no endométrio, do início dos batimentos cardíacos ou do desenvolvimento do sistema nervoso central? Conhecemos apenas a “ponta do iceberg” de todo o processo, pelo que necessitamos da correspondente modéstia em relação ao assunto. O potencial para o desenvolvimento de um novo ser humano existe desde o momento da fecundação, pelo que qualquer interferência externa posterior tem para mim o mesmo significado, seja qual for a altura em que ocorre – estamos a evitar que uma nova vida se desenvolva. Compreendo perfeitamente que muitas mulheres queiram interferir com este processo pelas mais diversas e justificadas razões e respeito muito os meus colegas que estão dispostos a ajudá-las, mas pessoalmente nunca fui capaz de o fazer. Os motivos prendem-se com uma sensibilidade pessoal que me diz que vim para Medicina para ajudar as pessoas, mas que não tenho o direito de determinar quando é que um ser humano vive ou morre.
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Gostava que me falasse sobre a importância do papel da Comissão Nacional de Redução da Taxa de Cesariana e se mudou, de alguma forma, o paradigma nacional.
Diogo Campos: Sabe que antes da formação da Comissão Nacional em 2013, tinha havido uma experiência piloto na região norte em 2009, uma espécie de teste para avaliar o que poderia acontecer no resto do país. Facto é que foi extremamente eficaz e levou a reduções significativas na taxa de cesarianas, não só na região norte, mas também no resto do país. Já com a Comissão Nacional, o que propusemos à DGS e ao Governo foi sobretudo uma estratégia de informação da população e dos profissionais de saúde, sobre os riscos das cesarianas desnecessárias. Esta iniciativa incluiu o desenvolvimento de recomendações clínicas sobre a alçada da DGS. Foram também criados incentivos financeiros para os hospitais reduzirem a taxa de cesarianas. Em 2009 esses incentivos eram positivos, com financiamento adicional, mas em 2013 perante a crise financeira, passaram a ser incentivos negativos. Estes incentivos continuam a ser aplicados pela ACSS (Administração Central dos Sistemas de Saúde), responsável pela contratualização com os hospitais.
No Serviço Nacional de Saúde (SNS) conseguiu-se uma redução da taxa de cesarianas que andava à volta dos 33% em 2009 para cerca de 27% em 2017. Nos hospitais privados o efeito foi muito mais modesto, caindo de cerca de 66% para 63%. Durante este tempo, mantiveram-se as melhorias nos indicadores de morbilidade e qualidade dos cuidados obstétricos. A nível nacional, a taxa de cesarianas ronda agora os 32%.
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Em contraponto ao Brasil que tem uma taxa aproximada de 50%...
Diogo Campos: Infelizmente não é só o Brasil, atualmente é também a China, Turquia, Egito, e vários países do leste da Europa que têm taxas altíssimas, muitas delas acima dos 50%.
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Para uma mulher que está prestes a ter um filho e pondera fazer uma cesariana porque é mais cómodo e pode planear tudo com detalhe, qual é a sua mensagem primordial que pode passar?
Diogo Campos: A cesariana implica riscos acrescidos para a mãe e para o bebé. Para a mãe os riscos são sobretudo relacionados com a infeção, hemorragia, tromboembolismo e lesões cirúrgicas. Existem também riscos acrescidos numa futura gravidez, relacionados com anomalias na implantação da placenta (placenta prévia e placenta acreta – esta última com elevada mortalidade). Para o recém-nascido a cesariana acarreta riscos adicionais de complicações respiratórias, mesmo quando realizada no termo da gravidez. Depois há também um aumento da incidência da asma, de diabetes e de obesidade na infância, aspetos relacionados com a ausência de contacto do bebé com a microflora do canal de parto. Agora, é importante dizer que as cesarianas são cirurgias seguras e que apesar de existir um acréscimo de risco, o valor absoluto é baixo. Naturalmente que é necessário continuar a realizar cesarianas e que em muitos casos são essenciais para a segurança do nascimento. Apenas se pretende evitar as cesarianas que são desnecessárias.
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Pode acontecer num cenário crítico ter de escolher entre salvar a mãe ou o bebé? Há uma regra para essa decisão?
Diogo Campos: Acontece ocasionalmente e a regra é clara - a vida da mãe está sempre em primeiro lugar. Lembro-me por exemplo de uma situação que me aconteceu há um tempo atrás, de uma grávida com 24 semanas, ou seja com um bebé muito prematuro, e que teve um descolamento da placenta com uma hemorragia abundante. Para o bebé era naturalmente importante ficar mais tempo na barriga da mãe, de forma a atingir maior maturidade dos órgãos e sistemas para lidar com o meio extrauterino. Mas continuando a mãe a sangrar abundantemente corria um grande risco de vida. Nessa altura não se pode hesitar. Foi realizada uma cesariana, a placenta foi retirada e a hemorragia materna controlada, mas o bebé não sobreviveu devido a complicações relacionadas com a prematuridade.
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Até ao momento em que comunica à mãe, ou aos pais, a sua decisão clínica, isso inquieta-o?
Diogo Campos: Na situação específica que contei inquietou-me menos, porque a opção é clara pela vida da mãe. Mas há outras situações em que as decisões não são assim tão simples.
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Comunicações que tem de dar e que lhe tiram o sono?
Diogo Campos: Há comunicações que são muito difíceis. Lembro-me do momento em que tive de comunicar ao marido de uma grávida que esta tinha tido uma paragem cardiorrespiratória durante a cesariana e que tínhamos receio que tivesse sofrido uma lesão neurológica grave, a qual se veio a confirmar. Foi um momento muito doloroso.
Lembro-me de comunicações de más notícias relacionadas com a morte de um feto, ou com situações de abortos de repetição. A sensação de perda nestas situações pode ser muito semelhante à da perda de um familiar adulto. São momentos da vida em que se abalam profundamente as expetativas de uma mulher sobre a maternidade. Mais ainda quando existe a necessidade de encarar a possibilidade de não vir a ter mais filhos.
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Interfere neste tipo de aconselhamento?
Diogo Campos: Independentemente das escolhas que estejam em causa, procuramos sempre que o aconselhamento seja equilibrado e informativo, com a necessária adequação à situação e às pessoas. Por norma, a Medicina atual é baseada na ajuda às pessoas para fazerem as suas próprias opções, naturalmente após terem sido devidamente informadas sobre a situação.
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Assumiu dia 1 de janeiro as suas novas funções de Diretor da Obstetrícia aqui em Santa Maria. Quais são os principais desafios que tem traçados?
Diogo Campos: O Serviço de Obstetrícia, construído sob orientação dos meus antecessores, Prof. Luís Graça e Dr. Nuno Clode, havia já reunido um grupo clínico com excelentes competências técnicas e humanas. Penso que as mais-valias que eu posso trazer ao Serviço estão sobretudo ligadas a aspetos organizativos e à minha experiência internacional. A promoção de um espírito coletivo, de antecipação dos problemas, e de estabelecimento de diálogos construtivos que resultem em estratégias comuns talvez sejam os aspetos que eu possa ajudar a implementar. A promoção do Serviço no meio académico e nos meios científicos nacionais e internacionais será também uma aposta clara para assegurar uma continuidade futura. Existe um grande desafio atual que é a fraca qualidade das instalações. Nesta área do hospital não existe uma intervenção de fundo há muitos anos e as condições estão longe de serem as melhores. Felizmente o Conselho de Administração do CHLN é muito sensível a este problema e está fortemente empenhado na realização de obras, inicialmente para a construção de um novo Bloco de Partos e posteriormente para os outros setores do Serviço.

Atualmente 15% dos partos em Portugal ocorrem em hospitais privados, e a elevada taxa de cesarianas nesses estabelecimentos faz com que a média nacional esteja ainda um pouco acima do desejado. Desde 2009 que a tendência tem sido decrescente, talvez o sucesso dos números justifique que diversas Sociedades Científicas de todo o mundo convidem Diogo Ayres de Campos a passar a mensagem.
Janeiro é sem dúvida um mês de começo para o médico Obstetra. E para ele o começo está em todas as mães que representam algo mais forte do que o próprio acredita poder ou querer controlar. A vida. O grande começo de todos.
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Joana Ferreira
Equipa Editorial
