Roteiro da Memória
A Propósito do Prof. João Cid dos Santos
João Cid dos Santos (fig 1) foi uma figura cimeira da Angiologia e Cirurgia Vascular mundial, e um dos espíritos mais brilhantes e lúcidos da inteligentsia portuguesa. Recordar a sua personalidade e obra é um exercício contra o esquecimento e a indiferença que parece grassar nalguma elite contemporânea, preocupada com o imediato esquecendo a História e as suas lições.
A sua obra constitui testemunho de uma época de criatividade, de inovação técnica e científica que marcou a Medicina. Teve repercussão no mundo científico internacional que o reconheceu como um dos pioneiros e fundador da moderna Cirurgia Vascular, continua a ser citado na literatura vascular contemporânea, perante a indiferença que prevaleceu no meio nacional.
Felicito a iniciativa e agradeço a oportunidade deste testemunho.
Conheci João Cid dos Santos como aluno de Clínica Cirúrgica, depois como Interno do seu Serviço e, finalmente, como um dos seus grandsons na Cirurgia Vascular, termo que utilizou na carta de recomendação com que patrocinou o meu Fellowship com HHG Eastcott, no St. Mary´s Hospital, em Londres.
Devo-lhe a inspiração que modificou o meu percurso profissional e a porta aberta para o mundo científico internacional, que começou em 1973 onde participei pela primeira vez, com o seu apoio, na reunião científica da International Cardiovascular Society (ICVS) na qual o Prof. Cid dos Santos foi eleito Presidente e de que a fotografia junto é testemunho (fig.2).
No labirinto da memória reencontro o perfil inconfundível que as fartas sobrancelhas e o olhar penetrante e arguto marcavam, a simpatia e afabilidade para os mais jovens, o sentido profundo de exigência e rigor, que não poupava assistentes e colaboradores próximos, as aulas inesquecíveis, onde o exercício do raciocínio clínico nos maravilhava.
A mudança súbita da pose, do gesto, tinha umas mãos grandes e expressivas cujo movimento servia para sublinhar a entoação, a divagação intelectual oportuna, que, sem perda da lógica e da coerência da exposição, surpreendia e fascinava a audiência como em certas partituras musicais onde, mais do que a fluência das notas, é a súbita mudança de tom e ritmo, que ilumina o espírito e revela a essência da obra.
Era um pianista exímio, a sua cultura era vasta e eclética – consubstanciava verdadeiramente o homem do Renascimento a que nada era indiferente, como ele próprio escreveu a propósito do Pai o Prof. Reynaldo dos Santos. Era um apreciador da Vida e dos seus encantos. Ficou para a posteridade uma receita culinária os Ovos à Professor que um restaurante para a zona de S. Bento conserva ainda hoje no seu menu diário.
Na sua obra científica ressaltam duas contribuições fundamentais: a criação da Imagiologia venosa com a introdução da Flebografia ainda nos anos 30, na continuidade da acção científica da Escola Portuguesa de Angiografia, e a descoberta da Endarterectomia em 1946, uma técnica inovadora de desobstrução arterial.
A primeira flebografia foi realizada em 1936 (fig. 3) por exposição directa da veia safena interna e injecção de contraste permitindo a sua visualização radiológica e das veias femoral comum e ilíacas.
Esta descoberta deu início a um intenso programa de investigação e desenvolvimento com a introdução de novas técnicas originais que possibilitaram a visualização integral do sistema venoso e o seu estudo funcional, contribuição fundamental e que a comunidade científica designou por Escola Flebográfica de Lisboa. Dessa investigação resultou uma nova visão científica e clínica que intitulou Sur quelques véritées premiéres oubliées ou méconnues de l´anatomo-phisiologie normal et pathologique du systéme veineux. Leur application à la pathologie et à la thérapeutique publicada em 1948 e que ainda hoje é actual.
Durante décadas a Flebografia foi o grande meio de diagnóstico em Patologia Venosa e o gold standard utilizado na validação das novas tecnologias de diagnóstico. A Imagiologia contemporânea – EcoDoppler e Angio -TC ou Angio-RM substituiu a flebografia em 95% das situações clínicas. Mas o essencial persistiu: a investigação das novas metodologias seguiu o trilho percorrido pela Flebografia. Mais do que uma técnica de diagnóstico, João Cid dos Santos legou-nos um percurso, um método para a investigação venosa, e aí reside a perenidade da sua contribuição!
No princípio da década de 80, já após o regresso a Portugal, fui convidado para uma conferência em Londres, sobre Lessons learned from Phlebography - The Lisbon School no contexto dum Simpósio dedicado à investigação do sistema venoso realizado na Royal Society of Medicine e a sua preparação proporcionou-me momentos inesquecíveis, desde o sentimento pertença, ainda que com a inexorável distância da juventude, a uma escola de pensamento científico, que tinha sido um marco incontornável na investigação do sistema venoso, à angústia da responsabilidade para transmitir uma visão global sobre o conjunto coerente de novos conhecimentos científicos trazidos pela Flebografia e, por fim, a tranquilidade de um dever cumprido de homenagem à Escola de Cid dos Santos onde iniciara a minha formação vascular.
O Arquivo Flebográfico que era único e exemplarmente organizado, com mais de vinte mil exames, testemunha silenciosa, mas viva, desta obra ímpar perdeu-se infelizmente sem prévia microfilmagem, e organização moderna que o preservasse para utilização dos vindouros. Não se percebeu que era uma jóia de família, como aquelas que não se usam todos os dias, mas que se guardam, para o que der e vier! Permaneceu num livro produzido pelos seus colaboradores mais próximos intitulado a Doença Venosa dos Membros Inferiores o qual ainda hoje revejo com interesse.
E como é interessante constatar que actualmente a moderna intervenção endovascular sobre o sistema venoso profundo requer, como primeiro passo a confirmação flebográfica da patologia. A Flebografia constitui ainda roadmap indispensável.
A Endarterectomia foi o outro marco histórico da contribuição científica de Cid dos Santos. Por essa razão, foi considerado com Michael DeBakey, os founding fathers da moderna cirurgia arterial reconstrutiva (fig. 4).
Foi um salto quântico na intervenção terapêutica na obstrução das artérias.
A marca do inovador é essa capacidade de rotura com o estabelecido, com o cientificamente correcto, a força para abrir novos caminhos nunca trilhados, e isso foi o momento sublime da criação científica e da oportunidade em João Cid dos Santos.
Representou uma vitória sobre o preconceito científico, erigido em verdade: o mito da inviolabilidade da íntima como o referiu na sua memorável Leriche Memorial Lecture que proferiu em Edimburgo em 1975, como Presidente da ICVS, meses antes do seu falecimento, onde com autoridade científica inquestionável e o brilho habitual das suas exposições, traçou o percurso da embolectomia à endarterectomia.
A nova técnica consistia na remoção de segmento da parede arterial e do trombo associado como se mostra na figura 5, para a sua execução idealizou instrumentos especiais que ainda utilizei na minha prática cirúrgica, os seus princípios técnicos continuam válidos e a endarterectomia é ainda hoje, século XXI, não obstante a mudança de paradigma de actuação determinado pela moderna intervenção endovascular, uma técnica cirúrgica que utilizamos em vários sectores vasculares, desde a carótida, à aorta e seus ramos e às artérias dos membros. Sobreviveu ao Tempo.
Em Setembro de 1997, organizámos sessão comemorativa do 50º aniversário da Endarterectomia, no contexto da XI Reunião Anual da Sociedade Europeia de Cirurgia Vascular (ESVS) à qual tinha presidido na qual se analisou a evolução da cirurgia arterial nos 50 anos desde a introdução da operação de Cid dos Santos. A sessão foi presidida por Debakey e por Eastcott, foi um momento de grande elevação científica e ética, que nos encheu de profunda alegria e orgulho.
Cid dos Santos realizou também a primeira cirurgia de reparação com sucesso de um aneurisma da aorta abdominal pouco tempo depois da introdução dos enxertos de Dacron por DeBakey e introduziu uma nova via de abordagem cirúrgica para a realização da simpaticectomia lombar. No entanto, a cirurgia arterial não teve a expansão necessária e merecida no seu Serviço, não obstante o brilho da sua actividade, a visão moderna que implementou na organização e estrutura do seu Serviço e do Centro de Angiografia Reynaldo dos Santos.
Há 46 anos, em 1972, quando entrei como interno de especialidade para o Serviço de Clínica Cirúrgica, a cirurgia arterial ocupava apenas um dia da semana - era à 4ª feira – o que limitava o número de doentes operados, impedia o desenvolvimento de uma casuística, em números e diversidade, comparável à observada em outros centros europeus, nessa mesma época.
A constituição do Centro de Angiografia Reynaldo dos Santos, subsidiado pelo então Instituto de Alta Cultura e a um Núcleo de Desenho Científico, financiado pelo próprio Prof. Cid dos Santos, no qual Olga Bragança realizou desenhos de cirurgias e da técnica da endarterectomia, e integrados na estrutura do serviço, permitiram preservar documentação com rigor e para a memória do futuro.
João Cid dos Santos possuía a capacidade de sedução intelectual que atraía colaboradores e jovens internos, qualidade que George Steiner considerava como atributo do verdadeiro Mestre. Tinha uma preocupação muito clara com a continuidade da sua obra e seguramente tê-lo-á magoado profundamente a indiferença do meio, a falta de apoio institucional, do Estado às Fundações privadas, a impossibilidade de constituir um serviço de Cirurgia Vascular autónomo cujos planos elaborou – realidade que só viria a concretizar-se em 1986 sob a égide de um dos seus Assistentes iniciais o Prof. Luís Teixeira Diniz. Sabia reconhecer o mérito e entusiasmo entre os mais jovens colaboradores que designava por netos, grupo no qual me incluiu, como foi evidente no meu exame de titulação como cirurgião, o último a que presidiu, e que, contrariando as regras nos chamou – éramos dois candidatos – e perante a estupefacção da sala repleta de assistentes, afirmou que nos entregava a sua herança vascular. Essas palavras de estímulo, num momento inesquecível do meu exame final de Internato de Cirurgia a que presidiu, o tom profético com que antecipou dificuldades, o entusiasmo e a força que soube então transmitir, foram o meu fio de Ariadne, na realização dum imperativo profissional que procurei honrar.
Quais os motivos que terão limitado a expansão da cirurgia arterial no seu Serviço?
O tempo traz distanciamento e isenção. A acção de Cid dos Santos, nunca foi reconhecida pelos Poderes instituídos, do Estado às Fundações privadas, que olimpicamente ignoraram a actividade desenvolvida e subvalorizavam o impacto internacional da sua obra.
A cultura dominante não era a da inovação, temia-se a liberdade e a ousadia do espírito, os recursos disponíveis para a investigação, que era cada vez mais complexa e cara a exigir instrumentação mais diversificada que os garfos, facas e colheres que Cid dos Santos reconheceu com grande clarividência, eram muito escassos, quase inexistentes.
O conservadorismo autoritário vigente esmagou a Faculdade de Medicina e a Universidade, destruiu o conceito de Hospital Universitário, subalternizou a vida académica às realidades assistenciais dificultando a vivência académica criativa.
Depois, a organização das carreiras profissionais e até do próprio ensino pré e pós-graduado, não eram de molde a promover a investigação. Faltou maleabilidade institucional que, noutros países mais progressivos, permitia ao estudante e ao jovem licenciado, dedicar tempo e energia a projectos de investigação, mão de obra entusiasta, jovem e criativa para a pesquisa científica séria. O estágio dos anos 60 e 70 com as teses de licenciatura foi uma forma mitigada de possibilitar algumas oportunidades de investigação, mas estivemos sempre longe dos programas ingleses, nórdicos e norte-americanos, onde havia a flexibilidade na educação pós-graduada, para permitir períodos razoavelmente longos para investigação em dedicação exclusiva e sem prejuízo da carreira, bem pelo contrário, com benefícios óbvios, que créditos e competências suscitavam.
Uma outra razão, terá sido consequência da menor disponibilidade e/ou produtividade científica dos sectores das ciências básicas, que tinham vivido um período de intensa renovação nas décadas de 20 e 30, sob o impulso da geração de 1911, mas que condicionalismos diversos já mencionados, do conformismo intelectual prevalecente, à escassez de recursos e à desertificação da Escola, consequência da política ditatorial vigente, causaram impacto negativo óbvio. É que, de facto, sem um sector de investigação básica forte, com laboratórios adequadamente apetrechados, dominando as técnicas e instrumentação indispensáveis à interrogação da natureza, a investigação clínica nunca poderá projectar-se para além das questões imediatas e de carácter mais artesanal.
Não obstante todas as vicissitudes referidas e 50 anos depois, a obra científica de João Cid dos Santos permaneceu como um marco incontornável e a endarterectomia foi a mais original, duradoura e importante contribuição portuguesa para a história da Cirurgia e continua a ser amplamente citada na literatura médica internacional.
Tinha uma visão profundamente actual da autonomia e independência da especialidade e da importância da angiografia, que ele considerava como uma parte da unidade indissociável, do todo que seria a Cirurgia Vascular, e que se reflectia na organização que concebeu para o seu Serviço, e pela defesa a outrance desse modelo, perante novos conceitos e hábitos.
Vale a pena, recordar a sua defesa eloquente deste conceito que escreveu em 1972 na homenagem a E. J. Wylie de S. Francisco:
“Vascular surgery is a world apart under every point of view: examination, medical and surgical treatment, post-operative period and follow-up. This accounts for the necessity of having a single independent unit for this particular surgery. And a separate department of angiography is just as inadmissible although this is the case in many places in the world. A vascular service without its own angiographic unit is like a body without a limb. Angiograms are the eyes of the vascular surgeon; without them, he at once becomes a mole”.
A Cirurgia Vascular só viria a consolidar-se como especialidade autónoma na Europa só no fim da década de 90, e foi interessante notar que a reunião decisiva foi realizada em Lisboa!
A modernidade da sua visão resistiu ao Tempo e à evolução da cirurgia arterial e que os desenvolvimentos verificados na Cirurgia Endovascular durante a última década vieram confirmar. A angiografia, é, nos dias de hoje, mais que um exame de diagnóstico, a primeira etapa dum tratamento e o método indispensável à realização das múltiplas soluções endovasculares que, cada vez mais, vão influenciando o tratamento das doenças vasculares, e, por isso, deve continuar a ser uma arte praticada pelos cirurgiões vasculares.
Compreender-se-á assim a amargura dos tempos finais, o seu desalento pelos caminhos que ameaçavam os valores que respeitava e que resumia num desabafo frequente neste País nada é levado a sério que aliás deixou escrito e para o qual me alertou, como um apelo para o futuro, quando me despedi nesse Verão quente de 75, na sua magnífica residência do largo da Rosa, antes de partir para Inglaterra.
Era uma advertência e um apelo!
O seu espírito de independência não era compatível com a cultura de subserviência da época, que infelizmente teima em persistir. A sua passagem fugaz pela Política como deputado independente à Assembleia Nacional onde o seu aviso prévio sobre a Educação Médica e a organização hospitalar foi um marco e um desencanto porque não traiu o seu Pensamento e as suas convicções e que o levou a abandonar a Assembleia, e o processo que lhe foi movido pelo Ministro da Saúde, na sequência do seu empenhamento na defesa do Relatório sobre as Carreiras Médicas produzido sobre a égide da Ordem dos Médicos foi verdadeiramente lamentável.
Vivemos uma época difícil, de mudança, de valores e da própria essência da profissão.
Os novos desafios que se perfilam no exercício da Medicina exigem dos Médicos e das suas organizações científicas e profissionais, uma reflexão atenta e uma resposta adequada.
Também neste domínio, a independência mental, a inteligência crítica e o profundo sentido ético de João Cid dos Santos, podem servir-nos de farol e inspiração reencontrada nos seus escritos que circunstância fortuita da profissão levou a que me tivesse sido entregue parte dum espólio de historiador com algumas das suas intervenções de que transcrevo alguns trechos:
“.. A Educação deve encontrar-se no primeiro plano das preocupações de qualquer país que pretenda ser civilizado. Não estou a pensar na maneira de atestar o cérebro humano com conhecimentos, mas estou a referir-me aquilo que decide a utilidade e actividade dos Homens neste mundo: a Formação do Espírito.
E depois acrescentava:
...Pensemos como Homens junto a essas oliveiras por entre as quais Sócrates lutou pela Educação e por uma Ética. E conjecturemos como Médicos sob os braços desse plátano secular que em Cós simboliza o grande filósofo da nossa profissão. Não menosprezemos o murmúrio dessa folhagem milenar – são advertências inexoráveis.
E interpelou-nos com veemência:
Que surja uma nova geração de navegadores, desta vez com asas no espírito. Só assim poderá nascer uma nova Aurora.
São advertências de uma lucidez irrecusável, um apelo para a revitalização do espírito, para a procura da excelência pessoal e profissional.
João Cid dos Santos, cuja memória se saúda neste número da news@FMUL da Faculdade de Medicina de que foi um dos mais ilustres Professores, foi um Homem de Eleição, um espírito superior e um inconformista.
Quando penso no seu exemplo, na luta pela sobrevivência do espírito, na sua determinação em vencer a indiferença, a apatia e a maledicência duma sociedade que seu Pai tinha caracterizado como demasiado ignorante para compreender e pouco independente para julgar, a imagem que me ocorreu foi a de ousadia que levou Prometeu a roubar o fogo aos deuses para benefício dos humanos.
Como ele referiu nessa intervenção já mencionada no exame final de titulação em Cirurgia, é fundamental saber vencer as amarras que, na mitologia prendiam Prometeu ao castigo eterno pela sua temeridade, mas que na Vida nos prendem ao conformismo e à indiferença, e saber concentrar energia para forçar e abrir novos caminhos na construção do nosso Futuro pessoal e colectivo.
Nesse caminho a memória da lucidez, inteligência e cultura de João Cid dos Santos e a força do seu exemplo foram farol a que devemos inspiração, entusiasmo, orientação e coragem.
Professor Doutor José Fernandes e Fernandes
Ex- Diretor e Professor Catedrático Jubilado da FMUL
A sua obra constitui testemunho de uma época de criatividade, de inovação técnica e científica que marcou a Medicina. Teve repercussão no mundo científico internacional que o reconheceu como um dos pioneiros e fundador da moderna Cirurgia Vascular, continua a ser citado na literatura vascular contemporânea, perante a indiferença que prevaleceu no meio nacional.
Felicito a iniciativa e agradeço a oportunidade deste testemunho.
Conheci João Cid dos Santos como aluno de Clínica Cirúrgica, depois como Interno do seu Serviço e, finalmente, como um dos seus grandsons na Cirurgia Vascular, termo que utilizou na carta de recomendação com que patrocinou o meu Fellowship com HHG Eastcott, no St. Mary´s Hospital, em Londres.
Devo-lhe a inspiração que modificou o meu percurso profissional e a porta aberta para o mundo científico internacional, que começou em 1973 onde participei pela primeira vez, com o seu apoio, na reunião científica da International Cardiovascular Society (ICVS) na qual o Prof. Cid dos Santos foi eleito Presidente e de que a fotografia junto é testemunho (fig.2).
No labirinto da memória reencontro o perfil inconfundível que as fartas sobrancelhas e o olhar penetrante e arguto marcavam, a simpatia e afabilidade para os mais jovens, o sentido profundo de exigência e rigor, que não poupava assistentes e colaboradores próximos, as aulas inesquecíveis, onde o exercício do raciocínio clínico nos maravilhava.
A mudança súbita da pose, do gesto, tinha umas mãos grandes e expressivas cujo movimento servia para sublinhar a entoação, a divagação intelectual oportuna, que, sem perda da lógica e da coerência da exposição, surpreendia e fascinava a audiência como em certas partituras musicais onde, mais do que a fluência das notas, é a súbita mudança de tom e ritmo, que ilumina o espírito e revela a essência da obra.
Era um pianista exímio, a sua cultura era vasta e eclética – consubstanciava verdadeiramente o homem do Renascimento a que nada era indiferente, como ele próprio escreveu a propósito do Pai o Prof. Reynaldo dos Santos. Era um apreciador da Vida e dos seus encantos. Ficou para a posteridade uma receita culinária os Ovos à Professor que um restaurante para a zona de S. Bento conserva ainda hoje no seu menu diário.
Na sua obra científica ressaltam duas contribuições fundamentais: a criação da Imagiologia venosa com a introdução da Flebografia ainda nos anos 30, na continuidade da acção científica da Escola Portuguesa de Angiografia, e a descoberta da Endarterectomia em 1946, uma técnica inovadora de desobstrução arterial.
A primeira flebografia foi realizada em 1936 (fig. 3) por exposição directa da veia safena interna e injecção de contraste permitindo a sua visualização radiológica e das veias femoral comum e ilíacas.
Esta descoberta deu início a um intenso programa de investigação e desenvolvimento com a introdução de novas técnicas originais que possibilitaram a visualização integral do sistema venoso e o seu estudo funcional, contribuição fundamental e que a comunidade científica designou por Escola Flebográfica de Lisboa. Dessa investigação resultou uma nova visão científica e clínica que intitulou Sur quelques véritées premiéres oubliées ou méconnues de l´anatomo-phisiologie normal et pathologique du systéme veineux. Leur application à la pathologie et à la thérapeutique publicada em 1948 e que ainda hoje é actual.
Durante décadas a Flebografia foi o grande meio de diagnóstico em Patologia Venosa e o gold standard utilizado na validação das novas tecnologias de diagnóstico. A Imagiologia contemporânea – EcoDoppler e Angio -TC ou Angio-RM substituiu a flebografia em 95% das situações clínicas. Mas o essencial persistiu: a investigação das novas metodologias seguiu o trilho percorrido pela Flebografia. Mais do que uma técnica de diagnóstico, João Cid dos Santos legou-nos um percurso, um método para a investigação venosa, e aí reside a perenidade da sua contribuição!
No princípio da década de 80, já após o regresso a Portugal, fui convidado para uma conferência em Londres, sobre Lessons learned from Phlebography - The Lisbon School no contexto dum Simpósio dedicado à investigação do sistema venoso realizado na Royal Society of Medicine e a sua preparação proporcionou-me momentos inesquecíveis, desde o sentimento pertença, ainda que com a inexorável distância da juventude, a uma escola de pensamento científico, que tinha sido um marco incontornável na investigação do sistema venoso, à angústia da responsabilidade para transmitir uma visão global sobre o conjunto coerente de novos conhecimentos científicos trazidos pela Flebografia e, por fim, a tranquilidade de um dever cumprido de homenagem à Escola de Cid dos Santos onde iniciara a minha formação vascular.
O Arquivo Flebográfico que era único e exemplarmente organizado, com mais de vinte mil exames, testemunha silenciosa, mas viva, desta obra ímpar perdeu-se infelizmente sem prévia microfilmagem, e organização moderna que o preservasse para utilização dos vindouros. Não se percebeu que era uma jóia de família, como aquelas que não se usam todos os dias, mas que se guardam, para o que der e vier! Permaneceu num livro produzido pelos seus colaboradores mais próximos intitulado a Doença Venosa dos Membros Inferiores o qual ainda hoje revejo com interesse.
E como é interessante constatar que actualmente a moderna intervenção endovascular sobre o sistema venoso profundo requer, como primeiro passo a confirmação flebográfica da patologia. A Flebografia constitui ainda roadmap indispensável.
A Endarterectomia foi o outro marco histórico da contribuição científica de Cid dos Santos. Por essa razão, foi considerado com Michael DeBakey, os founding fathers da moderna cirurgia arterial reconstrutiva (fig. 4).
Foi um salto quântico na intervenção terapêutica na obstrução das artérias.
A marca do inovador é essa capacidade de rotura com o estabelecido, com o cientificamente correcto, a força para abrir novos caminhos nunca trilhados, e isso foi o momento sublime da criação científica e da oportunidade em João Cid dos Santos.
Representou uma vitória sobre o preconceito científico, erigido em verdade: o mito da inviolabilidade da íntima como o referiu na sua memorável Leriche Memorial Lecture que proferiu em Edimburgo em 1975, como Presidente da ICVS, meses antes do seu falecimento, onde com autoridade científica inquestionável e o brilho habitual das suas exposições, traçou o percurso da embolectomia à endarterectomia.
A nova técnica consistia na remoção de segmento da parede arterial e do trombo associado como se mostra na figura 5, para a sua execução idealizou instrumentos especiais que ainda utilizei na minha prática cirúrgica, os seus princípios técnicos continuam válidos e a endarterectomia é ainda hoje, século XXI, não obstante a mudança de paradigma de actuação determinado pela moderna intervenção endovascular, uma técnica cirúrgica que utilizamos em vários sectores vasculares, desde a carótida, à aorta e seus ramos e às artérias dos membros. Sobreviveu ao Tempo.
Em Setembro de 1997, organizámos sessão comemorativa do 50º aniversário da Endarterectomia, no contexto da XI Reunião Anual da Sociedade Europeia de Cirurgia Vascular (ESVS) à qual tinha presidido na qual se analisou a evolução da cirurgia arterial nos 50 anos desde a introdução da operação de Cid dos Santos. A sessão foi presidida por Debakey e por Eastcott, foi um momento de grande elevação científica e ética, que nos encheu de profunda alegria e orgulho.
Cid dos Santos realizou também a primeira cirurgia de reparação com sucesso de um aneurisma da aorta abdominal pouco tempo depois da introdução dos enxertos de Dacron por DeBakey e introduziu uma nova via de abordagem cirúrgica para a realização da simpaticectomia lombar. No entanto, a cirurgia arterial não teve a expansão necessária e merecida no seu Serviço, não obstante o brilho da sua actividade, a visão moderna que implementou na organização e estrutura do seu Serviço e do Centro de Angiografia Reynaldo dos Santos.
Há 46 anos, em 1972, quando entrei como interno de especialidade para o Serviço de Clínica Cirúrgica, a cirurgia arterial ocupava apenas um dia da semana - era à 4ª feira – o que limitava o número de doentes operados, impedia o desenvolvimento de uma casuística, em números e diversidade, comparável à observada em outros centros europeus, nessa mesma época.
A constituição do Centro de Angiografia Reynaldo dos Santos, subsidiado pelo então Instituto de Alta Cultura e a um Núcleo de Desenho Científico, financiado pelo próprio Prof. Cid dos Santos, no qual Olga Bragança realizou desenhos de cirurgias e da técnica da endarterectomia, e integrados na estrutura do serviço, permitiram preservar documentação com rigor e para a memória do futuro.
João Cid dos Santos possuía a capacidade de sedução intelectual que atraía colaboradores e jovens internos, qualidade que George Steiner considerava como atributo do verdadeiro Mestre. Tinha uma preocupação muito clara com a continuidade da sua obra e seguramente tê-lo-á magoado profundamente a indiferença do meio, a falta de apoio institucional, do Estado às Fundações privadas, a impossibilidade de constituir um serviço de Cirurgia Vascular autónomo cujos planos elaborou – realidade que só viria a concretizar-se em 1986 sob a égide de um dos seus Assistentes iniciais o Prof. Luís Teixeira Diniz. Sabia reconhecer o mérito e entusiasmo entre os mais jovens colaboradores que designava por netos, grupo no qual me incluiu, como foi evidente no meu exame de titulação como cirurgião, o último a que presidiu, e que, contrariando as regras nos chamou – éramos dois candidatos – e perante a estupefacção da sala repleta de assistentes, afirmou que nos entregava a sua herança vascular. Essas palavras de estímulo, num momento inesquecível do meu exame final de Internato de Cirurgia a que presidiu, o tom profético com que antecipou dificuldades, o entusiasmo e a força que soube então transmitir, foram o meu fio de Ariadne, na realização dum imperativo profissional que procurei honrar.
Quais os motivos que terão limitado a expansão da cirurgia arterial no seu Serviço?
O tempo traz distanciamento e isenção. A acção de Cid dos Santos, nunca foi reconhecida pelos Poderes instituídos, do Estado às Fundações privadas, que olimpicamente ignoraram a actividade desenvolvida e subvalorizavam o impacto internacional da sua obra.
A cultura dominante não era a da inovação, temia-se a liberdade e a ousadia do espírito, os recursos disponíveis para a investigação, que era cada vez mais complexa e cara a exigir instrumentação mais diversificada que os garfos, facas e colheres que Cid dos Santos reconheceu com grande clarividência, eram muito escassos, quase inexistentes.
O conservadorismo autoritário vigente esmagou a Faculdade de Medicina e a Universidade, destruiu o conceito de Hospital Universitário, subalternizou a vida académica às realidades assistenciais dificultando a vivência académica criativa.
Depois, a organização das carreiras profissionais e até do próprio ensino pré e pós-graduado, não eram de molde a promover a investigação. Faltou maleabilidade institucional que, noutros países mais progressivos, permitia ao estudante e ao jovem licenciado, dedicar tempo e energia a projectos de investigação, mão de obra entusiasta, jovem e criativa para a pesquisa científica séria. O estágio dos anos 60 e 70 com as teses de licenciatura foi uma forma mitigada de possibilitar algumas oportunidades de investigação, mas estivemos sempre longe dos programas ingleses, nórdicos e norte-americanos, onde havia a flexibilidade na educação pós-graduada, para permitir períodos razoavelmente longos para investigação em dedicação exclusiva e sem prejuízo da carreira, bem pelo contrário, com benefícios óbvios, que créditos e competências suscitavam.
Uma outra razão, terá sido consequência da menor disponibilidade e/ou produtividade científica dos sectores das ciências básicas, que tinham vivido um período de intensa renovação nas décadas de 20 e 30, sob o impulso da geração de 1911, mas que condicionalismos diversos já mencionados, do conformismo intelectual prevalecente, à escassez de recursos e à desertificação da Escola, consequência da política ditatorial vigente, causaram impacto negativo óbvio. É que, de facto, sem um sector de investigação básica forte, com laboratórios adequadamente apetrechados, dominando as técnicas e instrumentação indispensáveis à interrogação da natureza, a investigação clínica nunca poderá projectar-se para além das questões imediatas e de carácter mais artesanal.
Não obstante todas as vicissitudes referidas e 50 anos depois, a obra científica de João Cid dos Santos permaneceu como um marco incontornável e a endarterectomia foi a mais original, duradoura e importante contribuição portuguesa para a história da Cirurgia e continua a ser amplamente citada na literatura médica internacional.
Tinha uma visão profundamente actual da autonomia e independência da especialidade e da importância da angiografia, que ele considerava como uma parte da unidade indissociável, do todo que seria a Cirurgia Vascular, e que se reflectia na organização que concebeu para o seu Serviço, e pela defesa a outrance desse modelo, perante novos conceitos e hábitos.
Vale a pena, recordar a sua defesa eloquente deste conceito que escreveu em 1972 na homenagem a E. J. Wylie de S. Francisco:
“Vascular surgery is a world apart under every point of view: examination, medical and surgical treatment, post-operative period and follow-up. This accounts for the necessity of having a single independent unit for this particular surgery. And a separate department of angiography is just as inadmissible although this is the case in many places in the world. A vascular service without its own angiographic unit is like a body without a limb. Angiograms are the eyes of the vascular surgeon; without them, he at once becomes a mole”.
A Cirurgia Vascular só viria a consolidar-se como especialidade autónoma na Europa só no fim da década de 90, e foi interessante notar que a reunião decisiva foi realizada em Lisboa!
A modernidade da sua visão resistiu ao Tempo e à evolução da cirurgia arterial e que os desenvolvimentos verificados na Cirurgia Endovascular durante a última década vieram confirmar. A angiografia, é, nos dias de hoje, mais que um exame de diagnóstico, a primeira etapa dum tratamento e o método indispensável à realização das múltiplas soluções endovasculares que, cada vez mais, vão influenciando o tratamento das doenças vasculares, e, por isso, deve continuar a ser uma arte praticada pelos cirurgiões vasculares.
Compreender-se-á assim a amargura dos tempos finais, o seu desalento pelos caminhos que ameaçavam os valores que respeitava e que resumia num desabafo frequente neste País nada é levado a sério que aliás deixou escrito e para o qual me alertou, como um apelo para o futuro, quando me despedi nesse Verão quente de 75, na sua magnífica residência do largo da Rosa, antes de partir para Inglaterra.
Era uma advertência e um apelo!
O seu espírito de independência não era compatível com a cultura de subserviência da época, que infelizmente teima em persistir. A sua passagem fugaz pela Política como deputado independente à Assembleia Nacional onde o seu aviso prévio sobre a Educação Médica e a organização hospitalar foi um marco e um desencanto porque não traiu o seu Pensamento e as suas convicções e que o levou a abandonar a Assembleia, e o processo que lhe foi movido pelo Ministro da Saúde, na sequência do seu empenhamento na defesa do Relatório sobre as Carreiras Médicas produzido sobre a égide da Ordem dos Médicos foi verdadeiramente lamentável.
Vivemos uma época difícil, de mudança, de valores e da própria essência da profissão.
Os novos desafios que se perfilam no exercício da Medicina exigem dos Médicos e das suas organizações científicas e profissionais, uma reflexão atenta e uma resposta adequada.
Também neste domínio, a independência mental, a inteligência crítica e o profundo sentido ético de João Cid dos Santos, podem servir-nos de farol e inspiração reencontrada nos seus escritos que circunstância fortuita da profissão levou a que me tivesse sido entregue parte dum espólio de historiador com algumas das suas intervenções de que transcrevo alguns trechos:
“.. A Educação deve encontrar-se no primeiro plano das preocupações de qualquer país que pretenda ser civilizado. Não estou a pensar na maneira de atestar o cérebro humano com conhecimentos, mas estou a referir-me aquilo que decide a utilidade e actividade dos Homens neste mundo: a Formação do Espírito.
E depois acrescentava:
...Pensemos como Homens junto a essas oliveiras por entre as quais Sócrates lutou pela Educação e por uma Ética. E conjecturemos como Médicos sob os braços desse plátano secular que em Cós simboliza o grande filósofo da nossa profissão. Não menosprezemos o murmúrio dessa folhagem milenar – são advertências inexoráveis.
E interpelou-nos com veemência:
Que surja uma nova geração de navegadores, desta vez com asas no espírito. Só assim poderá nascer uma nova Aurora.
São advertências de uma lucidez irrecusável, um apelo para a revitalização do espírito, para a procura da excelência pessoal e profissional.
João Cid dos Santos, cuja memória se saúda neste número da news@FMUL da Faculdade de Medicina de que foi um dos mais ilustres Professores, foi um Homem de Eleição, um espírito superior e um inconformista.
Quando penso no seu exemplo, na luta pela sobrevivência do espírito, na sua determinação em vencer a indiferença, a apatia e a maledicência duma sociedade que seu Pai tinha caracterizado como demasiado ignorante para compreender e pouco independente para julgar, a imagem que me ocorreu foi a de ousadia que levou Prometeu a roubar o fogo aos deuses para benefício dos humanos.
Como ele referiu nessa intervenção já mencionada no exame final de titulação em Cirurgia, é fundamental saber vencer as amarras que, na mitologia prendiam Prometeu ao castigo eterno pela sua temeridade, mas que na Vida nos prendem ao conformismo e à indiferença, e saber concentrar energia para forçar e abrir novos caminhos na construção do nosso Futuro pessoal e colectivo.
Nesse caminho a memória da lucidez, inteligência e cultura de João Cid dos Santos e a força do seu exemplo foram farol a que devemos inspiração, entusiasmo, orientação e coragem.
Professor Doutor José Fernandes e Fernandes
Ex- Diretor e Professor Catedrático Jubilado da FMUL