Roteiro da Memória
Meu Pai, João Afonso
5 de Agosto 1907 – 4 de Novembro 1975
Há momentos na nossa vida que nunca esquecemos e que nos acompanham para nos darem força, ou para nos deprimirem, porque queremos voltar atrás e senti-los como se fossemos jovens, com todos os sentidos apurados. Quero aqui recordar e partilhar com quem me ler algumas facetas da personalidade do meu pai, antes que se apaguem da minha memória.
Perto do fim da Segunda Guerra Mundial, talvez no início de 1944, parti com o meu pai de Lisboa para os Açores, a bordo do paquete Carvalho Araújo. Parte da equipa de cirurgia da Faculdade de Medicina de Lisboa, então sita no Campo de Sant’Ana, tinha sido mobilizada para a base dos aliados na cidade da Horta, Faial. Na viagem que fiz com meu pai, antes da chegada à Horta, ele enfiou-me um vestido novo para eu fazer boa figura. Só que, pouco experiente em vestir crianças, os botões do meu fatinho estava à frente, quando deveriam estar atrás. No deck do navio, uma senhora notou o sucedido e aproximou-se de meu pai: ”Desculpe, doutor, mas a sua filha tem o vestido ao contrário. Se quiser, eu trato disso.” E assim foi.
Nos primeiros tempos, enquanto o Pai procurava casa na Horta, fiquei com uma família inglesa. Só quando chegaram a minha mãe e a minha irmã Helena, que teria então três anos, e viajaram a bordo do Lima, nos mudamos todos para uma casa com jardim e bananeiras. Tinha vista sobre o porto, onde havia sempre um vai-e-vem de navios de guerra e do hidroavião da PanAm, a bordo do qual regressei ao continente no fim da guerra.
Para mim, a nossa casa era num lugar encantado no meio do oceano, onde o sonho transbordava cada porta que eu abria. Lembro-me dos almoços e jantares com os colegas de meu pai—o Fernando, o Óscar, o Eusébio, e outros cujos nomes se esvaíram da minha lembrança.
Durante a semana, o impedido (um homem lindo, diziam) levava-me pela mão à escola das freiras, com a lancheira para o meu almoço, preparado pela nossa cozinheira Maria do Carmo, uma personagem que parecia saída das pinturas da Paula Rego. Na mesa da cozinha, degolava galinhas e patos, e corria atrás das ratazanas que furavam a rede da capoeira. Lembro-me de ver, com um certo horror, a Maria do Carmo meter enormes centopeias em caixas de fósforos e depois lançar-lhes fogo. Não era malvadez: era a sua maneira de manter a casa limpa.
O Pai João foi sempre o maior amigo que tive, o homem que, quando chegava a casa, cansado de operar e de ver doentes no consultório, tinha sempre tempo para uma conversa com a família e para tocar as suas músicas preferidas no Bechstein. Muitas vezes sentava-me ao seu lado no banco do piano, enquanto dedilhava o Cravo Bem Temperado de Bach, ou tocava sonatas de Brahms, a Kreisleriana de Schumann, e outras peças para piano, como o Arabesque de Schumann, uma das suas preferidas. Havia uma música lindíssima que estava proibida lá em casa: era L’oiseau Prophète de Schumann. As notas lembravam-lhe a irmã Isabel Louise (Mimi), que tinha morrido aos catorze anos. Tocou essa peça uma vez para mim, e não mais.
Um dia disse-me que quase tinha seguido a carreira de maestro, antes de optar pela medicina. Para ele, a música era o seu modo de se entregar ao pensamento e ao sonho, e de se escapulir das amarras da vida.
Como ele dizia, e também escreveu, é preciso “saber perder tempo.” Mas nunca a música foi tempo perdido para ele.
Acredito que meu pai tinha um verdadeiro dom de encantar com a sua inteligência rara e o seu sentido de humor, que nunca ultrapassava as regras do bom tom. Era intransigente em certas coisas, pois seguia uma fina linha da verdade, sempre confrontando as dúvidas, deixando no ar aquilo que poderia levar a várias escolhas, sabendo que errar nos torna mais humanos. Por isso, admirava e lia Joseph Conrad, e me incutiu o gosto pela literatura.
Ouvi-o muitas vezes afirmar que a cirurgia de guerra tinha marcado uma etapa na sua carreira médica, pois ajudara-o a confrontar os grandes desastres do corpo e da mente e a lidar com uma humanidade desastrosa, quando tinha, por exemplo, de amputar um membro. Vi-o muitas vezes numa aflição enorme antes de se preparar para uma amputação. Era como se demónios e anjos o estivessem a puxar em sentidos opostos, sabendo ele que era uma luta onde só existiam vencidos.
Ainda hoje o ruido da sua lembrança me atormenta. Fiz dos seus sonhos os meus, quando vagueio à deriva pela crista da onda, num equilíbrio precário, como ele gostaria.
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Luz Rezende
Luz Rezende estudou na Elmhurst Ballet School em Camberley, Surrey e no Liceu Maria Amália em Lisboa. Depois fez estudos "undergraduate" de filosofia e Inglês no University of Maryland University College (UMUC) através da NATO, em Oeiras e depois online nos EUA. Foi sempre mantendo ligação à língua inglesa e aperfeiçoando as suas técnicas de escrita, o que justifica os seus contos em inglês. "Pruning” foi um dos textos publicado numa revista literária americana de Dayton, Ohio. Trabalhou como secretária e arquivista do pai, tratando de toda a sua obra e trabalhos publicados. Só depois da morte do pai foi trabalhar para a United States Agency for International Development (USAID/Lisbon) É ainda membro da Society for the Study of the Short Story (SSSS) baseada nos EUA.
Nota: as fotografias pertencem ao arquivo fotográfico da família e foram facultadas por Alexandra de Mello Sampayo (Pombeiro), a outra filha de João Cid dos Santos.
Há momentos na nossa vida que nunca esquecemos e que nos acompanham para nos darem força, ou para nos deprimirem, porque queremos voltar atrás e senti-los como se fossemos jovens, com todos os sentidos apurados. Quero aqui recordar e partilhar com quem me ler algumas facetas da personalidade do meu pai, antes que se apaguem da minha memória.
Perto do fim da Segunda Guerra Mundial, talvez no início de 1944, parti com o meu pai de Lisboa para os Açores, a bordo do paquete Carvalho Araújo. Parte da equipa de cirurgia da Faculdade de Medicina de Lisboa, então sita no Campo de Sant’Ana, tinha sido mobilizada para a base dos aliados na cidade da Horta, Faial. Na viagem que fiz com meu pai, antes da chegada à Horta, ele enfiou-me um vestido novo para eu fazer boa figura. Só que, pouco experiente em vestir crianças, os botões do meu fatinho estava à frente, quando deveriam estar atrás. No deck do navio, uma senhora notou o sucedido e aproximou-se de meu pai: ”Desculpe, doutor, mas a sua filha tem o vestido ao contrário. Se quiser, eu trato disso.” E assim foi.
Nos primeiros tempos, enquanto o Pai procurava casa na Horta, fiquei com uma família inglesa. Só quando chegaram a minha mãe e a minha irmã Helena, que teria então três anos, e viajaram a bordo do Lima, nos mudamos todos para uma casa com jardim e bananeiras. Tinha vista sobre o porto, onde havia sempre um vai-e-vem de navios de guerra e do hidroavião da PanAm, a bordo do qual regressei ao continente no fim da guerra.
Para mim, a nossa casa era num lugar encantado no meio do oceano, onde o sonho transbordava cada porta que eu abria. Lembro-me dos almoços e jantares com os colegas de meu pai—o Fernando, o Óscar, o Eusébio, e outros cujos nomes se esvaíram da minha lembrança.
Durante a semana, o impedido (um homem lindo, diziam) levava-me pela mão à escola das freiras, com a lancheira para o meu almoço, preparado pela nossa cozinheira Maria do Carmo, uma personagem que parecia saída das pinturas da Paula Rego. Na mesa da cozinha, degolava galinhas e patos, e corria atrás das ratazanas que furavam a rede da capoeira. Lembro-me de ver, com um certo horror, a Maria do Carmo meter enormes centopeias em caixas de fósforos e depois lançar-lhes fogo. Não era malvadez: era a sua maneira de manter a casa limpa.
O Pai João foi sempre o maior amigo que tive, o homem que, quando chegava a casa, cansado de operar e de ver doentes no consultório, tinha sempre tempo para uma conversa com a família e para tocar as suas músicas preferidas no Bechstein. Muitas vezes sentava-me ao seu lado no banco do piano, enquanto dedilhava o Cravo Bem Temperado de Bach, ou tocava sonatas de Brahms, a Kreisleriana de Schumann, e outras peças para piano, como o Arabesque de Schumann, uma das suas preferidas. Havia uma música lindíssima que estava proibida lá em casa: era L’oiseau Prophète de Schumann. As notas lembravam-lhe a irmã Isabel Louise (Mimi), que tinha morrido aos catorze anos. Tocou essa peça uma vez para mim, e não mais.
Um dia disse-me que quase tinha seguido a carreira de maestro, antes de optar pela medicina. Para ele, a música era o seu modo de se entregar ao pensamento e ao sonho, e de se escapulir das amarras da vida.
Como ele dizia, e também escreveu, é preciso “saber perder tempo.” Mas nunca a música foi tempo perdido para ele.
Acredito que meu pai tinha um verdadeiro dom de encantar com a sua inteligência rara e o seu sentido de humor, que nunca ultrapassava as regras do bom tom. Era intransigente em certas coisas, pois seguia uma fina linha da verdade, sempre confrontando as dúvidas, deixando no ar aquilo que poderia levar a várias escolhas, sabendo que errar nos torna mais humanos. Por isso, admirava e lia Joseph Conrad, e me incutiu o gosto pela literatura.
Ouvi-o muitas vezes afirmar que a cirurgia de guerra tinha marcado uma etapa na sua carreira médica, pois ajudara-o a confrontar os grandes desastres do corpo e da mente e a lidar com uma humanidade desastrosa, quando tinha, por exemplo, de amputar um membro. Vi-o muitas vezes numa aflição enorme antes de se preparar para uma amputação. Era como se demónios e anjos o estivessem a puxar em sentidos opostos, sabendo ele que era uma luta onde só existiam vencidos.
Ainda hoje o ruido da sua lembrança me atormenta. Fiz dos seus sonhos os meus, quando vagueio à deriva pela crista da onda, num equilíbrio precário, como ele gostaria.
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Luz Rezende
Luz Rezende estudou na Elmhurst Ballet School em Camberley, Surrey e no Liceu Maria Amália em Lisboa. Depois fez estudos "undergraduate" de filosofia e Inglês no University of Maryland University College (UMUC) através da NATO, em Oeiras e depois online nos EUA. Foi sempre mantendo ligação à língua inglesa e aperfeiçoando as suas técnicas de escrita, o que justifica os seus contos em inglês. "Pruning” foi um dos textos publicado numa revista literária americana de Dayton, Ohio. Trabalhou como secretária e arquivista do pai, tratando de toda a sua obra e trabalhos publicados. Só depois da morte do pai foi trabalhar para a United States Agency for International Development (USAID/Lisbon) É ainda membro da Society for the Study of the Short Story (SSSS) baseada nos EUA.
Nota: as fotografias pertencem ao arquivo fotográfico da família e foram facultadas por Alexandra de Mello Sampayo (Pombeiro), a outra filha de João Cid dos Santos.