Reportagem / Perfil
João Eurico Cabral da Fonseca
João Eurico Cabral da Fonseca é Professor Catedrático, Diretor da Clínica Universitária de Reumatologia e do Instituto de Semiótica Clínica da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Diretor do Serviço de Reumatologia do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, Hospital de Santa Maria. Coordena, ainda, a Unidade de Investigação em Reumatologia do Instituto Molecular de Lisboa (IMM – João Lobo Antunes).
Enquanto estudante da mesma Faculdade onde hoje exerce funções, participou ativamente em diversas formas de melhorar e diversificar o ensino, fazendo inclusivamente parte da Associação de Estudantes. Agora noutros moldes e com uma visão mais ampla do espaço onde está, olha para esses tempos e entende bem os alunos de hoje. E, numa passagem pelo seu tempo, reflete a razão das suas escolhas profissionais.
Foi no contacto com o então seu Professor David Ferreira que se motivou para a Reumatologia. David Ferreira promovia “mini congressos” em que os alunos faziam apresentações orais e produziam posters, com base em artigos que distribuía pelas suas turmas. Na sequência dessa participação o Professor desafiou-o a passar um mês no Instituto de Ciência da Gulbenkian, único instituto de investigação biomédica que existia até aquele momento em Lisboa. Não só aceitou a oportunidade, como a replicou nos verões seguintes. Foi de forma casual que travou conhecimento com “uns marcadores de comunicação entre o núcleo celular do citoplasma, que eram umas proteínas contra as quais existiam uns anticorpos circulantes em algumas doenças reumáticas”. O interesse sedimentar-se-ia ao contactar com a clínica e integrando um projeto de um reumatologista, Dr. José Alberto Pereira da Silva, coordenado pela Prof.ª Carmo Fonseca, em que estudou um modelo animal de artrite. Dedicou-se longas horas a estudar aquele modelo aproximando-se, cada vez mais, dos temas da Reumatologia. Ao mesmo tempo, na Faculdade estudava, com a mesma intensidade, ia aprofundando conhecimento sobre as doenças ligadas à artrite, como o lúpus, as vasculites e a artrite reumatoide.
Diante do exame de acesso à especialidade, já não haveria qualquer dúvida, a Reumatologia era a sua “evolução aos bocadinhos”.
Ainda nos seus primeiros passos de investigador e perante a inexistência de um biotério físico, recolhiam-se os animais de estudo no Instituto de Ciência da Gulbenkian. De regresso ao Hospital tinha de passar de soslaio pela segurança para entrar com os seus animais no laboratório. Nem sempre o seu “biotério portátil” lhe correu bem. Certa vez viu-se impedido pelo segurança de entrar com o argumento que num hospital não se entra com animais, voltou para trás percebendo que teria então de entrar de outra maneira. Saltou a cerca e, num equilíbrio entre caixinhas, lá chegou ao laboratório.
Se nos primeiros seis meses de internato João Eurico conseguia viver entre hospital e laboratório, foi depois de cumprir o serviço militar que constatou que tinha chegado o momento em que precisava de se dedicar em pleno à atividade médica. Assim foi, durante 3 intensivos anos. Só no final do internato volta a retomar a imagem ideal de poder ter uma clínica onde pudesse juntar o seu próprio laboratório. “Jo Edwards foi o meu tutor em Londres e vivia da maneira que eu desejava naquela altura. Dava consultas num piso e, no de cima, tinha o laboratório. Regressei a Portugal com esse ideal”.
De volta a casa e com a abertura do iMM iria juntar a parte clínica à investigação. “Eu sabia que não ia ser um processo fácil, mas revelou-se muito mais difícil ainda. O meu esforço entre trabalho de hospital (na altura no Egas Moniz) e investigação fez com que eu fosse o parceiro daqueles que eram cientistas a 100% e com todo o cérebro focado na ciência”. Foi o estímulo dos Professores Viana Queiroz, Lobo Antunes e Carmo-Fonseca que lhe permitiram a resiliência para nunca desistir desta via de trabalho muito exigente, procurando sempre uma investigação ligada ao doente e centrada na interação entre cientistas de laboratório e clínicos, usando dados clínicos, amostras biológicas humanas e modelos animais de doença
A criação do Biobanco e o Centro de Investigação Clínica, onde esteve envolvido, foram duas das formas que arranjou de cruzar sinergias entre os dois grupos profissionais, cientistas e médicos, tornando-os numa só equipa coesa e complementar.
Defensor convicto da qualidade e do potencial do Campus respeita muito o passado histórico de uma Instituição que assume como a sua principal escolha profissional. Diz que graças à participação de muitas pessoas que por aqui passaram, algumas de forma muito anónima, vive-se um ambiente de grandes condições, apesar do muito que ainda se pode potenciar. A estrutura hospitalar, em conjunto com o Instituto de Investigação (iMM), e uma grande escola médica reúne os argumentos e as forças para um trabalho de equipa. Não deixa, no entanto, de lamentar que o Hospital esteja submetido a tão grande pressão, já que recebe os doentes que têm apenas uma constipação, como aqueles que apresentam quadros clínicos que mais ninguém sabe tratar.
Incomodou algumas pessoas enquanto foi estudante desta Faculdade?
João Eurico: (Ri) Sem querer sim. Eu guardo dois momentos que me dizem bastante. Um, foi que, por coincidência, na altura em que eu estava na Associação de Estudantes, ela fazia 75 anos de existência e decidimos celebrar isso. Reconstruimos a história destes 75 anos, mas não era fácil fazê-lo porque não havia grandes registos públicos do passado. Fomos então entrevistando cada vez pessoas mais idosas, fomos recuando até chegar ao Professor Baraona Fernandes que tinha estado no princípio do sec. XX na Associação. O Professor deu-me uns cadernos que guardara sobre a prevenção da saúde, feitos pelos alunos. Já nessa altura se faziam inúmeras iniciativas. Mas o outro momento marcante que guardo foi a oportunidade histórica de fazer parte do Conselho Pedagógico (CP), como representante dos alunos, numa altura em que o Professor Lobo Antunes era o Presidente. Ele estava muito empenhado em implementar algumas iniciativas fraturantes. Uma delas foi tentar fazer o primeiro inquérito aos alunos sobre a escolaridade da Faculdade, algo que nunca tinha sido feito. Na altura precisou de apoio prático, alguém que formulasse as perguntas, que fizesse o texto (note que os processadores de texto não eram como agora) e eu tive essa oportunidade. Tive a possibilidade de pensar nas perguntas e discuti-las sempre com as pessoas mais experientes do CP, depois reunia tudo e fazia o layout final. A seguir, envolvi-me na implementação do questionário, em todos os anos, e numa altura em que não havia internet. Tínhamos que ir, pessoa a pessoa, falar com os alunos e fazer com que respondessem, porque a validade daquele processo estava muito dependente da adesão dos estudantes.
E houve adesão?
João Eurico: Foi muito boa e os resultados nem foram maus, mas nalguns pontos eram muito críticos e a comunidade não estava preparada para receber estas críticas, muito menos que fosse publicitado o inquérito. Isto passou-se em 92 e na altura foi a liderança do CP que foi conversar com algumas pessoas e, para que os resultados não morressem escondidos, processaram-se os dados com uma análise estatística. Fez-se uma publicação científica desse trabalho, liderado pelo Prof. Lobo Antunes e pela Profª. Leonor Parreira. Este processo marcou-me tanto que depois, como Professor, continuei a usá-lo nas minhas aulas, numa altura em que ainda não havia inquérito da Faculdade.
E agora enquanto Professor como é que lida com a crítica?
João Eurico: O feedback dos alunos aos professores é uma experiência muito curiosa, porque nós, seres humanos, não gostamos muito da crítica, portanto, quando vemos uma crítica, a primeira reação é negativa. Esta cultura de humildade que temos de praticar está relacionada com os professores e tem ligação à fase científica da nossa carreira. Eu explico, a crítica que temos aos trabalhos submetidos para as revistas científicas é horrível! Submetemos o trabalho e em seguida recebemos uma carta a dizer tudo o que está mal. Eu tenho cerca de 250 artigos publicados no PubMed e de certeza que, a maior parte deles, foi submetido várias vezes a revistas; se calhar multiplicando por três, porque é provável passar por três revistas em média, quase mil vezes recebi críticas dos artigos. Claro que diante dessas críticas, a primeira reação é uma sensação de injustiça, por isso não devemos responder logo. Depois, daí a pouco, devemos reler tudo com mais calma e então apercebemo-nos que, de facto, há uma série de coisas que podem ter sentido. E com as críticas dos alunos passa-se um bocado a mesma coisa, ao início ouvimos e achamos que é uma grande injustiça, mas depois, com mais distância, pensamos que há uma e outra ideia que fazem mais sentido. É aconselhável falar com alguns alunos para obter o feedback direto, até porque é muito mais fácil de os entender depois. No contacto humano, mesmo as pessoas mais críticas, ficam depois mais calmas e aquilo que estava escrito e parecia mais agressivo, torna-se, em seguida, mais percetível e menos agressivo.
Portanto, ouve aqueles com atitudes mais reativas?
João Eurico: Prefiro contactar com os representantes oficiais que têm a média das opiniões e assim posso perceber o grau de gravidade do aspeto que está a ser criticado. Nessas conversas há coisas absolutamente bem criticadas e que é para mudar logo. Depois há outras críticas que não estão bem elaboradas e temos que percebê-las com os alunos. Agora, é um facto que, os inquéritos são um bom exame de autoscopia dos professores, porque eles percebem o que deve ser mudado. Mas também percebemos que, apesar de não estar a ser um sucesso, há questões que não devem ser mexidas. Esta gestão é difícil, mas há também processos que são difíceis de mudar, particularmente quando os cursos são muito grandes e há necessidade de interagir com os atores do processo de educação. Há um processo em cascata. A coordenação da cadeira tem que passar esse feedback a todos os que lecionam essa cadeira. E isso é difícil.
Ia perguntar-lhe, precisamente, isso. Aqui já estamos noutro patamar de comunicação, entre professores, e que ainda assim não é fácil.
João Eurico: Aqui temos de interpelar outros colegas sobre a crítica e que problemas estamos a ter, sobre os quais não têm consciência e reagem de forma adversa à crítica dos alunos e também do regente. Como os regentes têm resistências, também os outros docentes as têm e um dos grupos mais resistentes são os médicos, eles são conservadores quanto à inovação. Sabe porquê? Porque têm receio que essa inovação não esteja completamente testada e, como tal, completamente segura. O mesmo se aplica a nós no ensino, quando estamos a inovar, as pessoas questionam se a mudança é verdadeiramente útil e se valerá a pena fazê-la.
Ajudou-o ter sido um dia estudante desta casa e interventivo na altura para hoje ter uma melhor noção sobre como posicionar-se enquanto Professor?
João Eurico: Ajudou-me imenso. Não tenho dúvida que tenho uma particular sensibilidade ao feedback, para o bem e para o mal. Eu quando recebo feedback recebo-o muito, não sou nada insensível a ele. Recebo-o intensamente e tenho que processá-lo adequadamente. Não tenho uma casca onde esbarra o feedback.
Quem trabalha consigo descreve-o, precisamente, como alguém muito ponderado e que não toma uma única decisão sem avaliar aprofundadamente todas as questões envolvidas. Isso não é um desgaste constante?
João Eurico: Passo a vida nisso. Fico a ouvir, ouvir, ouvir… e depois tenho que tomar uma decisão. Depois, quando a tomo assumo-a completamente e é cada vez mais individual e menos coletiva. Mas não sei se isso me desgasta, sei que é a minha maneira de viver a vida.
Há depois outras informações curiosas, que é workaholic, não falha a responder a um único mail, mesmo que seja no Natal, ou fim-de-semana. E que costuma vir trabalhar às 07h…
João Eurico: Esse termo workaholic é um termo complexo. (Ri) Eu trabalho muitas horas e não tenho dúvida que trabalho mais horas do que a média. Desde criança que tenho uma característica biológica, durmo relativamente poucas horas. Se dormir seis horas estou muito bem, o meu bio ritmo é de manhã. Por isso começo o dia muito cedo, às 07h30 geralmente já estou no campus. Mas antes de vir dedico-me a algum trabalho mais intelectual, é quando consigo escrever e rever os artigos porque é a única altura do meu dia em que tenho alguma calma e silêncio.
É compreensível porquê, tem a parte clínica da Reumatologia, a pedagógica onde tem o ensino, e tem o iMM onde tem um Laboratório de investigação. Está a escapar-me alguma coisa?
João Eurico: Não…É exigente, naturalmente. Mas há muitas dessas coisas que se fazem em conjunto, alguns clínicos, dão aulas e fazem investigação ao mesmo tempo, sobrepondo parcialmente estas três atividades. Não sou só eu. Depois as pessoas que fazem investigação, aqueles que não são médicos e que fazem comigo investigação, há alguns anos, já estão muito próximas da equipa geral e isso faz-me sentir que tenho um ambiente muito bom. Acho que tenho muita sorte com as pessoas com quem tenho trabalhado, têm características extraordinárias, com uma capacidade de trabalho boa e um relacionamento humano muito bom.
Tem sorte ou conseguiu motivá-las para funcionarem como equipa?
João Eurico: Acredito que em grande medida tenho tido sorte com as pessoas que me calham e depois temos conseguido transformar o grupo numa equipa e cada um se vai adaptando ao processo que nos faz ir, todos, no mesmo sentido. Ou seja, se as pessoas sentirem todas que estão a trabalhar em equipa, depois já não têm tanta vontade de individualmente escaparem a essa equipa. Mesmo os mais individualistas, quando veem a equipa a funcionar, têm mais constrangimentos em serem individualistas.
Que inputs são necessários dar para se ter uma equipa mobilizada?
João Eurico: É importante haver muita comunicação, ela tem de ser objetiva. É preciso estar atento aos momentos em que temos de dar feedback individual às pessoas e ter essa constante disponibilidade. Devemos ser justos e premiar adequadamente, dentro da medida do possível, quem produz mais, quem tem mais capacidade. Mas é importante também detetar se há pessoas com problemas e procurar ajudá-las. Depois, é tentar olharmos, todos em equipa, para o que vai acontecendo. Eu tento sempre estar o mais possível presente na vida dos outros, mas tenho noção que às vezes também me correm mal algumas intervenções. Às vezes sou injusto e, por várias vezes, fiquei com a sensação frustrante de ter feito o comentário negativo, no momento errado, podia ter esperado mais, podia ter pensado melhor. Mas procuro corrigir-me em relação a isso e evitar, ao máximo, ser o elemento perturbador da equipa. Numa equipa onde está tudo a correr bem não se deve estar a agitá-la, mas se ela tremer, por qualquer motivo, então volta a ser necessária uma intervenção. Convém não intervir demais, não expor demais, não aparecer demais e não desgastar a imagem. Isto é importante para que todas as pessoas tenham voz e espaço, coisas fundamentais para dar certo.
O tema da gestão de tempo remete-me para uma das habituais críticas que tenho ouvido aos estudantes e que diz respeito à falta de tempo dos professores com eles. Comparam com a Nova e apontam o rácio de professor para aluno como uma das grandes fragilidades. Eles têm razão? Como é que se pode inverter a relação?
João Eurico: Têm razão, têm sim. E este é um problema grave. Quando entrei nesta Faculdade éramos apenas 40 alunos no meu ano. E agora são 360 e em alguns anos quase 400. Tudo isto se passava na mesma estrutura que eu tinha, evidentemente que na minha altura havia menos docentes, mas assim torna-se difícil dimensionar o ensino. Na minha opinião, este é um problema inerente às características da Faculdade e que faz com que agora os professores se tentem desmultiplicar em múltiplas funções. Só é resolúvel partindo ao máximo cada um dos anos. Temos de criar múltiplos grupos e fazer um ensino que, nalguns momentos, pode ser presencial em conjunto, nas aulas teóricas e na interface eletrónica (Moodle); mas depois a parte curricular obrigatória, as teórico- práticas, os seminários, as práticas, têm de ser em grupos, o mais pequeno possível. Isso quer dizer várias coisas, ao longo dos anos de estudo, acho razoável, que nos anos pré-clínicos, uma teórico-prática tenha 20 alunos e uma prática 10/12. Uma aula de 2 horas, onde devem existir perguntas, se tiver 20 alunos, já está no limite superior desejável.
Agora, no ensino clínico este número tem de ser diferente, à volta de um doente não podem estar mais de 4 alunos, isso implica dezenas de turmas. Se imaginar 400 alunos, num ano, são quase 100 turmas. Para esta fragmentação temos de ter muitos assistentes disponíveis e isso levanta também problemas logísticos complicados. Temos de ter a certeza que todas as pessoas que recebem os alunos estão em condições de os receber. E nós não temos a certeza absoluta disso. Dou-lhe um exemplo prático, sou o responsável pelo estágio hospitalar do 3º ano em que temos pequenos grupos de alunos, no máximo 2, eles, por sua vez, estão com múltiplos tutores. Dezenas e dezenas de tutores, durante 6 semanas, vão estar com os alunos. Não tenho a certeza se vai correr tudo bem com todos os tutores. Consigo controlar o responsável por esses tutores e passar mensagens, mas não o consigo fazer individualmente. Mas isto também acontece nas aulas práticas em que temos 4 alunos e temos dezenas de assistentes e, claro, que não temos a certeza se todos eles estão, verdadeiramente, motivados e disponíveis. Claro que isso pode trazer problemas, mas acredito que sejam pontuais. Depois, ainda temos outro cenário e que diz respeito às teórico-práticas e aos seminários, quando temos mais de 20 pessoas numa aula e precisamos de criar interação. É muito difícil a participação real das pessoas, algumas dispersam-se por completo, eclipsam-se da aula. Depois, há aquelas com mais características de liderança e de interação e que acabam por tomar conta da aula. Nesta situação é muito difícil acalmar esta pessoa e dar-lhe feedback negativo, porque ela está a participar, mas a dada altura é necessário travá-la porque há outros que querem falar.
Perante esta realidade que me descreve, como é que um bom aluno se torna muito bom médico? O que é que o torna especial em relação aos outros?
João Eurico: São pessoas mais exigentes, aproveitam todos os momentos que lhes damos e retiram o máximo de cada momento. Eu diria que há um conjunto de alunos que são os melhores aqui como seriam os melhores em qualquer lugar para onde forem.
Identifica-os facilmente?
João Eurico: Claro! São aqueles que são muitíssimo competentes e que seriam assim em qualquer faculdade do mundo. Estes alunos, quando entram num ambiente, tentam perceber como tudo se faz, tentam aprender tudo e têm um enorme espírito de autocrítica, de dedicação e são exigentes com eles, com os outros. Consequentemente, dentro deste ambiente de ensino difícil, com sobrecargas e alguma falta de proximidade, eles conseguem sempre exigir. Quando estão com um docente eles exigem imediatamente e ao fazerem-no aprendem e fazem com que os outros à volta aprendam, colocando tudo numa fasquia diferente. Além de tudo isto, são pessoas com boa capacidade de relacionamento humano e portanto, quando chega o momento de interagir com o doente, não têm qualquer problema. Depois avançam, avançam, avançam e quando chegam ao último ano, claramente, estão acima dos outros. Mas o grande objetivo da Faculdade não é ter estes alunos extraordinários, o objetivo é produzir uma plataforma mínima da maior qualidade que se consiga atingir e não deixar que ninguém, abaixo dessa plataforma, esteja capacitado para passar de ano. Quando se atinge essa plataforma, então, consideramos que isso é o mínimo. Depois, quando chegam ao contacto clínico estão muito bem formados porque absorvem todos os cenários. Outro passo é conseguirmos reter os melhores no nosso centro académico. Mas este Hospital é muito duro e exigente o que faz com que muitos queiram sair e, claro, que isso afeta a nossa capacidade de recrutar os melhores.
Deixe-me colocar um cenário completamente fictício, mas que tem por base sabermos das restrições orçamentais que a saúde tem. Como é que se pode ser um bom médico se não houver os recursos e materiais necessários para intervencionar um doente que é urgente?
João Eurico: Aqui dentro deste Hospital o problema não é não tratar o doente por falta de recursos financeiros. O problema principal é a carga brutal de doentes que existe sobre a estrutura do Hospital. Este não consegue responder atempadamente, embora responda sempre do ponto de vista técnico com os meios mais adequados. O problema é a sobrecarga desmesurada. Este Hospital tem que ensinar jovens médicos, tem que ensinar os estudantes de Medicina, tem que tratar dos casos mais complicados de todos, ao mesmo tempo que tem um sistema de referenciação que é livre e que recebe qualquer doente, independentemente da gravidade e complexidade. Tudo isto pressiona de tal maneira a estrutura toda que dificulta muito a vida aos recursos humanos e financeiros da Instituição. Esta é uma peça de uma lógica muito importante de resolver para o sistema nacional de saúde.
No cruzamento de tantas iniciativas e gerindo tantas áreas. Há espaço para ser só o João?
João Eurico: Bem… Pois…Eu procuro que esta atividade me deixe ter espaço para ser só o João. Para muitas pessoas dentro do meu relacionamento eu sou apenas o João e para que este meu outro universo profissional funcione tão bem, eu tenho, por vezes, de ser só o João. São estas pessoas da minha vida privada que me permitem, aliás, uma maior humanização da minha atividade. Se me movesse só pelas coisas técnicas, a motivação não se mantinha. Faço um esforço para não afetar a minha vida pessoal.
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Para o futuro sucesso do Hospital e dos seus médicos João Eurico da Fonseca espera que os casos mais leves, de primeira linha, possam sair de Santa Maria para outros hospitais próximos, ficando assim o Hospital menos exposto às intempéries e às flutuações do sistema nacional de saúde. Ainda assim, vê como positivo o treino que diz ser fantástico de um médico que tem de lidar com todo o tipo de realidades, ganhando uma bagagem que em poucos lugares se adquire.
Continua a sentir a responsabilidade de sustentar o Campus, o Centro Académico Médico de Lisboa, do qual faz parte, fortalecendo o papel fundamental que cada elemento tem: Faculdade, iMM e Hospital. É no contacto com as três realidades que diz que se profissionalizam mais os médicos e aproximam mais da realidade clínica os cientistas.
Quem sai a ganhar? Os alunos e a Faculdade.
E todos os doentes que continuarão sempre a existir.
Joana Sousa
Equipa Editorial