Reportagem / Perfil
A Maria dos cabelos escuros
Em 1979 nascia uma série animada que viria a ser exibida em Portugal em 1987, no programa da RTP Agora Escolha - Ana dos Cabelos Ruivos, assim se chamava. Vinda de um orfanato e adotada por um casal de irmãos já com alguma idade, a Ana de 10 anos sonhava com o mundo sempre acordada. A falar a uma velocidade estonteante para o raciocínio de uma pessoa comum, tinha qualquer coisa de mágico que nos criava identificação e admiração. A Ana fazia-nos vibrar como crianças porque conseguíamos acreditar que a própria tristeza podia ser romântica.
Muitos anos depois reencontrei a Ana na pele de uma Maria de cabelos escuros.
Com a ideia de criar um Fundo que possa trazer mais dinheiro para a investigação em Portugal, ouvi a Maria a falar pela primeira vez em público, quando apresentou um dos seus sonhos, o Fundo João Lobo Antunes. Nesse instante percebi que tínhamos de a ouvir.
Maria Manuel Mota é a Diretora Executiva do iMM João Lobo Antunes e uma das cientistas de maior referência mundial pela investigação que dedicou ao parasita da malária. Prémio Pessoa em 2013, pelos seus mais de 20 anos de avançadas investigações científicas, Maria Mota move a sua curiosidade sem fim. Talvez tudo tenha começado com um livro de citologia (que permite avaliar o aspeto das células, o seu crescimento e função) que a mãe lhe deu ainda em tempos de escola. Em poucos anos estaria a perguntar como é que as células se comunicam entre si e como é que o parasita da malária entra dentro do nosso corpo e se alimenta de nós. Ainda hoje pergunta como é que pode privar o parasita desses recursos que o alimentam, matando-o ou enfraquecendo-o de vez.
Mulher do norte, Maria Manuel Mota nasceu em Gaia a 27 de abril de 1971; o sotaque não se perdeu nestes anos a viver mais a sul. Filha de pais muito conservadores foi-lhe depositada a expectativa que, depois de 10 anos a estudar piano e de tirar um curso seguro e convencional, tornar-se-ia professora, profissão que seria harmoniosamente compatível com uma vida tradicional de mãe exemplar e dona de casa. Mas Maria não quis que lhe ditassem o destino que só a si pertencia. Depois de se formar em Biologia, e ainda meio perdida, seguiu para o mestrado em Imunologia da Professora Maria de Sousa. Foi quando a conheceu que percebeu que ia ser cientista. No mestrado conheceu outros curiosos como ela e que vinham de vários lugares do mundo, com eles percebeu que tinha de partir para um dia poder regressar. Seguiu para Londres onde afirma com uma ligeireza que jamais denunciaria inseguranças que não falava nada bem inglês, conta-me que nos primeiros meses em Londres quase não percebia as conversas à sua volta, mas nada a demoveu até porque diz que o medo nunca a impediu que se atirasse de cabeça. Hoje os seus papers são escritos na perfeição nesta língua e como fala a correr tem desculpa para os erros que ainda possa dar na oralidade, diz-me a rir.
Sempre sem medo das suas próprias barreiras doutorou-se em Parasitologia Molecular, na University College of London. Mais tarde, fez pós-doutoramento no New York Medical Center.
Entre 1999 e 2001 desenvolveu investigação no Laboratório da New York University Medical School, onde também deu aulas.
Regressou a Portugal em 2002, onde liderou o grupo de investigação do Laboratório de Biologia Celular da Malária, no Instituto Gulbenkian de Ciência. Em 2005, entrou para o iMM como Group Leader (Investigadora Principal) da Unidade de Malária, ao mesmo tempo que dava aulas sobre o parasita seu conhecido, na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Nos últimos 5 anos foi ainda Professora Convidada na Escola de Saúde Pública da Universidade de Harvard.
Condecorada pelo Presidente da República com a Ordem do Infante D. Henrique no Dia Internacional da Mulher de 2005, Maria Mota seria eleita, em Maio de 2016, para integrar a Organização Europeia de Biologia Molecular (European Molecular Biology Organization – EMBO). Pelo mérito e a excelência do trabalho que tem desenvolvido nos últimos anos, recebeu ainda o prémio Pfizer em 2017.
Muito direta, diz espontaneamente o que pensa e sabe que isso pode intimidar o seu interlocutor. Comenta que fala mais rápido do que o pensamento a acompanha, coisa que por vezes lhe prende as palavras e lhe tira o ar. Quem com ela trabalha diz que “basta dar um frame à Maria que ela a seguir constrói sozinha o filme todo”, rebate a dizer que é muito boa a fazer ligações entre assuntos que podem ter intervalos de anos e isso na Ciência é precioso, mas a inteligência não é a sua melhor característica.
Talvez tanta vibração explique que desde miúda fosse chamada de “piolho elétrico”, aliás, porque foi assim desde cedo, tenta autodisciplinar o seu entusiasmo nas palestras, mas a paixão pelo que faz tira-lhe a racionalidade do ritmo.
Acha que a vida é muito boa apesar de dizer que tem “desculpa” já que tudo lhe correu sempre bem e cedo demais. Sabe que há quem veja a sua espontaneidade como uma tontice desapropriada para uma senhora cientista de 47 anos, mas apesar de gostar que lhe reconheçam os méritos do trabalho, não é vaidosa por estatutos. Detesta perder tempo com coisas sem importância, porque o tempo mal lhe chega para o essencial, que fará para tudo, por isso está naquilo em que acredita, faz aquilo que acredita.
Sobre convicções, sabe que talvez não seja a exemplar “mãe galinha” que a sua mãe sonhou, ”já aconteceu que quando reparo as calças já mal servem às minhas filhas e lá vou eu a correr comprar a roupa dessa estação”. Sobre as suas “companheiras de vida”, a Vânia e Inês de 12 e 16 anos, respetivamente, sabe, no entanto, que no essencial tentou não falhar. Quanto ao rótulo de dona de casa, também não o adora, mas faz questão de explicar que é “certinha” e não vive na desarrumação, nem sem regras.
Com a filha mais velha, a Inês, tem a série favorita do momento, “How to get away with murder”, nenhuma pode ver um episódio sem a outra. Mas a Vânia de 12 anos não escapa às sessões de cinema em família onde às vezes se junta o atual namorado.
“Será que a posso tratar por Maria?”, pergunto-lhe com a convicção que não é de formalismos. “Por Maria e por tu, ou achas mal porque é uma entrevista?”.
Saiu uma filha completamente fora da caixa para uns pais tão conservadores…
Maria Mota: Eu sou um misto de coisas, porque eu tenho as regras deles para muitos aspetos da minha vida, mas depois não gosto de perder tempo com estas coisas de ser dona de casa. Mas se estou numa festa, por exemplo, e cai comida no chão, eu vou logo apanhar, aquilo sujo faz-me muita confusão. Mas às vezes controlo-me, mesmo, para não fazer isso para não ser mal interpretada, porque acabo por criar facilmente ambientes austeros à minha volta. As pessoas têm receio de mim porque sou muito direta, talvez ditatorial, eu gosto das coisas como eu gosto e quero que façam como eu gosto.
E é assim pessoalmente ou também profissionalmente?
Maria Mota: É. Então na parte de trabalho se eu quero de uma maneira tem mesmo de ser dessa maneira. Estou sempre aberta a que me digam que não tenho razão, não há ninguém das minhas equipas que me possa acusar de não os ter ouvido, e às vezes até mudo de opinião.
Ah, então muda de opinião?
Maria Mota: Mudo muitas vezes. Ainda ontem estava no aeroporto e o Ângelo, da minha equipa, ligou-me a dizer, “não concordo nada com o que escreveste” e eu não estava de início a concordar de todo com opinião dele, mas depois de me explicar melhor, acabei por lhe dar razão. Eu afinal não tinha pensado ali num determinado aspeto que fazia a diferença. Mas há coisas que eu gosto de uma maneira e faz-me confusão que depois não sejam dessa maneira…
Volto atrás no tempo, de novo, e imagino-a num ambiente fechado. Faz o curso de Biologia no Porto, depois o mestrado onde, aliás, conhece a Professora Maria de Sousa. É nessa altura que o seu mundo abre as portas para o Mundo todo?
Maria Mota: Sem dúvida. Eu tive mesmo uma educação muito fechada, a minha mãe não achava aceitável eu chegar a casa com um namorado depois de escurecer e isto eu já tinha 20 e tal anos. Eu tenho noção que já fiz muitas coisas na vida que não vão de acordo com os cânones dos meus pais, ainda assim eles apoiaram-me sempre. Estão sempre do meu lado, apesar de nem sempre concordarem e a minha mãe é muito direta, diz tudo o que pensa. Isto para dizer que a ida para Londres eles não esperavam, de todo, mas entenderam que era bom para mim e a minha decisão de vida. Os meus pais têm os dois 80 anos, respeitam-me imenso, mas é engraçado porque ainda hoje fazem muitos comentários, principalmente em relação às minhas filhas.
Tem graça comentar isso porque li, numa das suas entrevistas, que a dada altura deixou as suas filhas com os avós porque tinha que trabalhar e que reclamaram a dizer “o pai delas ligou 3 vezes, tu nem uma”.
Maria Mota: (Ri) É porque eu parto do princípio que a minha mãe é uma boa avó. Parece que se ligar até estou a controlar. Sinceramente nem me passou pela cabeça ligar, eu estava a trabalhar. Muitas vezes me perguntam isso, “como é que com duas filhas se consegue trabalhar tanto?”. Neste momento é diferente porque eu e o pai estamos separados, mas se estivessem comigo hoje, às 08h10 estariam à porta da escola, a partir dessa hora eu parto do princípio que a escola é capaz de cuidar delas e por isso não tenho que controlar nada. Eu acredito no sistema, acredito nas pessoas, até prova em contrário. Hoje sou eu que as vou buscar, uma às 19h no ténis e a outra às 19h15 no British.
Isso significa que tem tempo para elas?
Maria Mota: Tenho. E como estou há 15 dias fora de casa (andou em viagens várias por diferentes convites internacionais que recebeu) significa que tenho que ir às compras antes de as ir buscar. Quando chegarem terão o frigorífico cheio. Acho que também é isso que os pais dão. Os pais providenciam aquilo que os filhos necessitam, mas acima de tudo providenciam um ambiente confiável. Claro que a partir de uma certa idade, também eles devem ajudar a contribuir com pequenas tarefas: pôr a mesa, ir à loja do lado comprar uma alface, essas coisas simples. Depois temos de lhe dar tempo e o tempo é que temos de mais caro, mas obviamente dou-lhes o meu tempo porque estar com as minhas filhas é uma experiência fantástica. Hoje vamos ter noite de cinema, a minha equipa já sabe que, se hoje me ligar, eu não vou responder até elas irem para a cama. Isto é o que eu tenho para dar às minhas filhas, no fundo, dar-lhes o meu mundo. E os pais não podem ser mais obrigados que isso, a dar aos filhos o mundo deles. Eu tenho uma grande amiga, que surgiu recentemente na minha vida, mas que é muito importante para mim; conheci-a em 2009, é uma cientista muito conhecida do MIT (Massachusetts Institute Technology), queria entrar na minha área de investigação e ligou-me por Skype, desenvolvemos uma amizade fortíssima. Ela é filha de emigrantes indianos, mas com grande formação académica e têm uma cultura completamente distinta da nossa. Num dos nossos encontros nos EUA, estávamos a jantar e ela perguntou-me quando tinha sido a primeira vez que pensei que gostava de mudar o mundo. Na altura até achei aquela pergunta arrogante, quem é que pode mudar o mundo? Depois percebi. No primeiro dia em que ela entrou na escola, o pai levou-a e disse-lhe que a escola era a sua primeira ferramenta para poder vir a mudar o mundo. Isso hoje emociona-me e afinal não era arrogância. E isto pode e deve passar-se aos filhos.
Mas a Maria já fez imenso para mudar o mundo, porque estes estudos que duram há 20 anos têm mudado bocadinhos de mundo, numa tentativa clara de erradicar a doença da malária que mata por ano quantas pessoas?
Maria Mota: Neste momento são meio milhão de crianças; a cada minuto morrem duas crianças. Mas quando eu comecei a trabalhar morriam, por ano, 3 milhões. Agora está a aumentar um pouco novamente. O grande esforço financeiro que está a tentar travar tudo isto vem da Fundação Gates. Mas está a surgir um problema agora é que a África subsariana está a ficar com valores que nunca teve antes, os níveis de transmissão estão a aumentar porque as condições climatéricas mudam e há mais mosquitos e com o aumento das populações em África, a situação explodiu. Desde os últimos dois anos que não estamos a conseguir diminuir.
Mas podemos estar a falar de uma migração da doença?
Maria Mota: As ferramentas que temos conseguem manter este nível como está, mas se baixarmos a guarda pode ser um desastre. Já se nota um cansaço financeiro enorme, porque isto implica um número enorme de pessoas para manter tudo e as pessoas quando vêm que a doença começa a abrandar têm tendência para começar a relaxar. Quando isto acontece – e já aconteceu antes, no século anterior - temos depois picos com surtos terríveis.
Que pergunta ainda lhe falta fazer para barrar o crescimento do parasita da malária? Porque uma das suas questões persistentes é: se o parasita se alimenta de recursos, então se eu lhe tirar esses recursos ele morre. Falta-lhe descobrir que recursos são esses?
Maria Mota: Essa é a minha pergunta e a do laboratório todo desde 2002. Este parasita vive à nossa custa, então é muito simples, nós damos-lhe qualquer coisa que o mantém vivo. O problema é que não vai ser assim tão simples, porque há um cocktail de respostas possíveis. Conseguimos encontrar muitas peças do puzzle, e por isso vamos publicando, indicando os possíveis caminhos para lá chegar; mas sendo um cocktail vai ser muito mais difícil de justificar a razão clara, porque vai juntar muitos componentes. Ainda assi, acredito que há uma destas peças do puzzle que vai pesar e evidenciar-se. E neste momento eu até acho que tenho um projeto que pode vir a dar a resposta. Mas se calhar acho isto, sempre que descubro algo. (Ri) Somos umas boas centenas de equipas pelo mundo a tentar descobrir as respostas para a malária e a verdade é que estamos a querer fazer melhor que a Natureza. O parasita da malária pode reinfectar o mesmo ser humano durante toda a sua vida. Nós estamos a tentar inibir algo que a Natureza jamais alguma vez conseguiu.
Isso não é ambicioso demais pensar que podemos fintar a Natureza?
Maria Mota: Há um lado de ambição, mas também sem ela não conseguimos avançar. Foi essa ambição que nos deu conhecimento e já salvou milhões de vidas. Agora, se a vamos erradicar é outra coisa. Porque uns pensam que se deve erradicar a doença e outros acham que deve ser uma doença crónica. Mas tendo o nível de cronicidade que tem, hoje em dia, cria profundos problemas económicos e rouba qualidade de vida nas pessoas doentes. Temos de conseguir fazer melhor.
É incontornável não se falar da FCT e da falta de atribuição de financiamento para a continuidade desta investigação. Tudo apontava para que lhe fossem atribuídos recursos e não foram e isso foi recebido com espanto, por si e pela comunidade. Como é que se reagrupa uma equipa assim? E mesmo questionando se leram bem o seu CV e o projeto diz que não vai contestar. Então e agora?
Maria Mota: Não há muito mais para dizer. Está em causa o meu ordenado profissional e isso envolve também a minha vida pessoal porque eu preciso de ter um ordenado. Mas tenho que deixar claro que nós cientistas, quando concorremos, sabemos que vamos a jogo onde as nossas ideias são avaliadas em paralelo ao nosso CV. O Sr. Ministro argumentou publicamente que foram só analisados os últimos 5 anos de carreira; na nossa equipa isso não era bom argumento porque estes últimos anos foram riquíssimos e o maior pico da nossa produtividade. Em relação ao projeto proposto, acredito que se debruça sobre algo importante e explica muito bem o que pretendemos, mas a verdade é que pode não estar assim tão bom. Há um processo de peer review (revisão por pares) em que outros cientistas nos avaliam. Fico surpreendida, mas isso quer dizer que acharam que havia projetos muito mais interessantes que aquele. Tenho que ter um plano B. Eu fui a jogo e tenho de aceitar, tenho sempre de partir do princípio que o sistema funciona. É tal e qual como a história de por as minhas filhas na escola, se estão lá é porque confio então não vou estar a duvidar e a controlar.
Aplica esse princípio em tudo na vida?
Maria Mota: Para viver em sociedade temos que viver assim. Parto do princípio que todos fazemos isso bem. Eu dirijo uma instituição com essa base e é assim que tenho de ver as coisas. No dia em que alguém falha e em que correu algo mesmo mal faço para que deixe de participar na minha vida e aí tenho de ser frontal e dizer que essa pessoa tem de ir embora.
Custa fazer isso?
Maria Mota: Imenso. Fico duas ou três noites sem dormir, mas depois de tomar a decisão, acabou. Mas sei que fiz bem e que foi a decisão certa e portanto, não tenho dúvidas, mas tomar a decisão e até à sua execução é uma coisa terrível. Mas depois de decidido está decidido e é porque foi justo. Atenção não é por um erro, é por um comportamento consistente de falhas.
Apesar de não ter ganho a bolsa da FCT vai seguir com a sua investigação?
Maria Mota: Sim. Essa bolsa pagaria o meu salário, mas o iMM vai pagá-lo até arranjar outras formas de o pagar. Mas não é só o meu caso, aconteceu a mais dois Group leaders do iMM, assim como outros dois conseguiram obtê-lo. É importante salientar que o iMM tem uma equipa externa de avaliadores que validam os nossos Cv’s e aquilo que os investigadores querem fazer. Depois, com base nisso, avalia-se que pessoas se querem manter, ou não, e é nessa fase que se ponderam os planos A, B, C, até esgotar os planos todos. Eu e a minha equipa não somos mais especiais por eu ser a diretora. Essa isenção é garantida da seguinte forma, primeiro toda e qualquer avaliação é feita sempre por experts da área científica e externos ao iMM (e normalmente ao país), seguida de uma decisão da direção. No meu caso e no da minha equipa quem recebe as avaliações externas e toma decisões sobre estas questões é o Bruno Silva Santos (Vice-Diretor), por isso é que temos no Board of Directors mais do que uma cabeça; quando ele é avaliado, cabe-me a mim esse papel. As regras são muito claras. Se eu tenho ligações próximas com outros investigadores, não sou eu que tomo as decisões finais, é sempre o Bruno que trata desses casos.
Agora atenção, a vida de cientista é sempre uma vida de grande stress, já aconteceu estarmos à espera de um financiamento grande e ele não vir, depois candidatámo-nos no ano seguinte e aí já ganhámos. “Apertar o cinto” é algo que nos acontece muitas vezes e temos de saber viver assim.
Esses são os momentos em que tem de fazer as escolhas e perde o sono?
Maria Mota: Claro. Mas também são os momentos onde decidimos o que vamos estudar. E nem sempre isso é mau. Nunca tive de despedir ninguém por causa destes apertos financeiros. Nesta equipa ninguém é despedido de um momento para o outro. Mas há projetos que eu gostaria de continuar e não posso porque não há dinheiro para isso. Há muitas ideias que eu queria desenvolver e só há um tempo específico para elas, porque depois mais alguém pegará nessas ideias e as vai desenvolver. Eu gosto de acreditar que podemos ter tudo na vida… mas nem sempre isso acontece. Também há quem queira ter um iate e uma casa de sonho num destino tropical e não temos de ser infelizes só porque não o conseguimos.
É materialista?
Maria Mota: Não sou apegada às coisas. Detesto acumulação de objetos. Aliás todos os natais faço uma limpeza aos brinquedos das minhas filhas e dou a outras crianças. Elas já me acusaram de as traumatizar (ri), porque dei uma família de cães de peluche que estavam na prateleira há mais de um ano sem ninguém lhes mexer, só a ganhar pó. Não imagina as coisas que elas recebem! Eu tanto gosto de uns brincos de fantasia sem marca, como de uns de ouro que eram da minha avó. Não ligo nada ao valor financeiro, mas claro que valorizo as coisas; adorava ter uma vida confortável sem me preocupar com o dinheiro e, por exemplo, olhar para um destino bonito e agarrar nas minhas filhas ou no meu namorado e poder ir. Mas nos últimos anos aprendi a dar muito valor a determinados momentos. Ver o mar e ficar apenas sentada a olhar … isso devo-o ao meu companheiro atual.
Há pouco falava-me da dupla Maria / Bruno. Sei que em 2020 haverá eleições para novo mandato de Diretora Executiva e Vice-Diretor. As pessoas com quem falei dizem-me que trabalhar com esta dupla é, no mínimo, estimulante. A Maria vai recandidatar-se? A dupla vai continuar?
Maria Mota: Sabe que ninguém é insubstituível. Eu não sou arrogante, mas também não sou falsa modesta, ou seja, sei dizer e acho que nós fizemos uma boa equipa e por isso escolhi o Bruno. Apesar de sermos diferentes… Ele é muito pragmático, se for preciso diz que o tempo dele acabou e que se não decido em 5 minutos, ele tem de sair... e sai. Adoro trabalhar com ele e diria que ele pensa (a maior parte das vezes) o mesmo de mim. Mas há uma coisa, ele é Vice-Diretor, se alguma coisa correr mal, a culpa é minha. E isto aplica-se a tudo, a todos. Se algo correr mal, a responsabilidade é minha.
Não sei se muitas pessoas, numa situação de crise ou conflito, assumem a culpa…
Maria Mota: Nem sempre é fácil o que se vive aqui. Os últimos anos têm sido muito tumultuosos. Passámos a fazer parte do perímetro orçamental do Estado (finalmente conseguimos sair), tivemos grandes momentos de stress em que nos podíamos ter virado uns contra os outros.
Não é possível adaptarem-se à realidade que o Estado vos dá?
Maria Mota: Eu acredito que quando não se caça com cão, não se caça. Não se caça com gato. Isso não existe! Se queremos fazer ciência a nível internacional, nós podemos nem ter os recursos todos, mas temos de ter meios e recursos suficientes. Temos de ter as condições. Não estamos a fazer um discurso de “meninos ricos” que querem sempre mais, não é isso, as nossas regras não são compatíveis com os prazos do Estado. Numa experiência em que precisamos de um reagente, não podemos ficar à espera 24 dias pela sua autorização. Para isso não vale a pena continuarmos, porque não é compatível.
Foi por isso que criou o Fundo João Lobo Antunes?
Maria Mota: Foi para isso. Mas sejamos realistas, para sermos autos-sustentáveis o iMM precisa de €150 milhões. Mas não é para os gastar é para ficar como fundo em que só se usam os “juros”.
E assim auto alimentavam-se?
Maria Mota: Sim. É como funcionam as melhores estruturas internacionais, as mais relevantes. E é assim que um instituto deve ser. Qualquer pessoa que faça a gestão de um fundo sabe que não se deve gastar mais de 4% do valor total do fundo ao ano. O iMM precisa de 5 a 6 milhões de euros ao ano, fora as especificidades de cada projeto de investigação. O que cada um de nós gasta no seu laboratório é dinheiro que entra específico para cada investigação. E o que é que me preocupa? Se perdemos a capacidade de manter um ambiente vibrante e as pessoas mais criativas e dedicadas, que constituem toda a estrutura iMM, a forma como nos “alimentarmos de ideias” entre todos, então os melhores vão embora. Mas se os melhores saírem, também diminui o dinheiro que é investido nos outros que ficam. Tudo definha.
No dia em que recebeu o Prémio Pessoa disse, àqueles que tinham acabado de lhe atribuir o prémio e onde estavam algumas figuras de Estado, e sobre a falta de recursos na Ciência: “vão asfixiar a criatividade, matar o génio e estrangular a ciência”. Achei extraordinário não se conformar com um “obrigada” e ir tocar nas feridas.
Maria Mota: Mas eu terminei com um elogio. (Ri). Eu não sou negativa, mas as verdades têm de ser ditas. Ainda há poucos dias estive em França, no Consulado Português, e estava lá o Ministro da Ciência, ele teve um discurso muito positivo, mas temos de nos confrontar com a realidade. Quando eu falei, também disse coisas positivas, mas claro que tive de tocar nas feridas. Eu não falo mal por falar, mas acho que temos que pensar o que queremos fazer, como queremos que seja, não só o presente, mas acima de tudo o futuro e não devemos perder o nosso tempo precioso para não avançar nada.
A Maria tem fragilidades como qualquer ser humano e assume-as abertamente porque é uma mulher muito inteligente. E não são só apenas as fragilidades do iMM, nem as que dizem respeito ao parasita da malária. Diz-me, tão naturalmente, que nem sempre é segura e que quando tem crises convoca os amigos mais especiais e precisa de atenção, quer debater os problemas e fazer a catarse “parte da resolução da minha crise é falar dela”. Chora o que for preciso e naquele momento não há outro problema, depois arruma e passa.
Durante muito tempo choveram-lhe propostas de trabalho, EUA, Austrália foram alguns dos destinos principais. Talvez muitas vezes se tenha sentido tentada a ir, mas enquanto as filhas forem menores de idade sabe que não sairá do país porque está fora de questão afastá-las do pai, “assim como está fora de questão convencer o pai delas a ir”. Provavelmente ficará no país porque o tempo também passa e apesar de não lhe eliminar a paixão pela Ciência, tem outros sonhos que adoraria cumprir. “Transmitir o conhecimento à sociedade portuguesa, sensibilizando que todos devem basear a sua formação, seja ela qual for, no conhecimento, sejam empregados de mesa, cientistas, ou o que for”. Acha que “o gosto pelo saber não pode ser de uma elite, mas uma riqueza transversal a toda a sociedade”; Entende que falta espírito crítico para que se saiba questionar o mundo, como tal, “o método científico é perfeito para aprender a questionar, a pesar os pós e contras, a testar e depois tomar decisões sem ser baseadas na ignorância”.
A Maria é um turbilhão de ideias que nos contagiam, falo-lhe da Ana dos cabelos ruivos, mas não a conheceu, é pena, senão entenderia por que razão são iguais.
Joana Sousa
Equipa Editorial