Reportagem / Perfil
O método e rigor de Joaquim Ferreira
Conheci-o no Dia do Candidato, um dia em que a Faculdade abre as portas a potenciais alunos, onde falou sobre o gesto de liberdade que é escolher Medicina como profissão e lançou o desafio de olhar para a postura de Vladimir Putin a caminhar. O braço caído ao longo do corpo de Putin, enquanto caminha e o que está por detrás desse movimento foi o tema de um paper que publicou na BMJ (uma das mais influentes e conceituadas publicações de Medicina no mundo), tema, aliás, falado também no Late Show de Stephen Colbert.
Sobejamente conhecido pelo trabalho já desenvolvido e pelos inúmeros cargos de liderança assumidos, é quase redundante dizer que é um excelente orador e que gosta de criar interesse nos outros, sem nunca dar por assimilado tudo o que tem a contar. Podia ser o caso prático do provérbio chinês que diz “não dê o peixe, ensine a pescar”. Disciplinado até no tom da voz e de perfil carismático, não é difícil detetar as evidentes características de um marcante Professor que abre pistas diversas para o vasto mundo que exerce enquanto médico, a Neurologia.
Estudou na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, proíbe-me de dizer com que média entrou, eu arrisco pelo menos a informar que Joaquim Ferreira teve das médias mais altas de sempre.
O que o fez escolher o curso de Medicina foi o seu espírito altamente competitivo. “Ir para alguma coisa que não fosse a mais difícil, para mim, era um desperdício”. Mas seria injusto dizer que hoje é médico só porque era difícil o caminho, a aptidão é uma parcela que faz parte de um vasto somatório de características da sua personalidade, nos traços que reconhece a si próprio sabia que havia sempre uma busca por aquilo que mais exigisse dele. Explicação talvez ainda mais fundamentada quando sabemos que fez ginástica desportiva de competição, desde pequeno. Começou a treinar aos 7 anos, aos 10 sabia já o que eram regras rigorosas, treinava 4 horas por dia, 6 dias por semana. Nenhum dos seus dias acabava antes das 22h. O primeiro grande responsável pelo método que, obviamente já lhe era intrínseco, foi o Professor de ginástica da Associação de Educação Física de Torres Vedras, alemão, deixara o seu país após a II Guerra Mundial. A competição deu a Joaquim Ferreira a disciplina aos músculos e à cabeça, o resto seguramente que terá vindo da genética familiar. A genética, essa que não exclui para explicar tantas características da condição humana.
Com uma mãe farmacêutica, cresceu no meio de um laboratório de análises clínicas, apesar de alguma tradição médica nas suas origens. Família disciplinadora e exigente diz-me que nunca o obrigou a seguir um determinado caminho, tem, no entanto, noção que a mimetização é uma característica dos mais novos quando olham para os seus exemplos.
Só deixou a alta competição quando entrou para a Faculdade. O rigor dos comportamentos esse nunca foi deixado, ainda hoje se rege por um sentido de responsabilidade e compromissos entre ele e a sociedade que não lhe permitem falhar.
Procura estar atento aos que trabalham consigo, reconhecendo o enorme privilégio de ter tido mentores brilhantes e generosos. Procurar replicar a generosidade académica de que beneficiou é algo que valoriza.
Quem o observa sabe que tem um comportamento muito disciplinador para com os seus colaboradores, mas também e essencialmente perante o próprio, elogio, aliás, feito por um conhecido Professor de Neurologia germânico que diz que o “Joaquim Ferreira é quase alemão”.
“Ir para Medicina é adiar uma decisão”, diz-me. De discurso lógico e com um alcance além daquele que parece à partida óbvio, solta calmamente pequenas provocações para nos fazer pensar, ou prender a atenção. É um exercício cativante de troca de palavras e forma de estar na vida. Deixa-nos a pensar nas coisas enquanto ele segue já mais à frente perante um outro tema que nunca é um tema qualquer, é sempre igualmente importante. Igualmente imperdível.
Foi convidado pelo Professor Castro Caldas para ir trabalhar com ele na Neurologia, a partir do 5º ano do curso de Medicina. O Professor perguntou-lhe se queria trabalhar em Neuropsicologia, ou em doença de Parkinson, o então aluno Joaquim optou pela segunda opção, porque entendeu que a doença de Parkinson tinha um componente mais “mecânico” e motor. E porque essa decisão também o ligaria à sua grande referência científica – a Professora Cristina Sampaio. Ainda aluno começou por ver doentes que estavam incluídos em ensaios clínicos e era Cristina Sampaio que fazia a ponte entre a Neurologia e a Farmacologia Clínica, o que fez com que se criasse uma área de investigação, a Neurofarmacologia Clínica. Entrou como interno de Neurologia e fez o internato. Todo o seu trabalho foi primordialmente desenvolvido entre o Laboratório e o serviço de Neurologia do Hospital de Santa Maria, à volta das Doenças do Movimento, onde se inclui a doença de Parkinson.
Com a saída de Cristina Sampaio para uma Fundação Norte-Americana, Joaquim Ferreira acabaria naturalmente por assumir a Direção do Laboratório de Farmacologia Clínica em 2013, quanto à relação de colaboração científica entre ambos “é presente e muito próxima”.
Quanto à Clínica Universitária de Neurologia “há uma tradição de ser um espaço de excelência e de liberdade em que todos têm a possibilidade de desenvolverem os seus projetos” e descreve que está rodeado por grandes figuras. “Tenho o privilégio de estar num serviço hospitalar que tem uma tradição notável: dos Professores Miller Guerra, António Damásio, José Ferro, Alexandre Castro Caldas, Teresa Paiva, Mamede de Carvalho, pessoas muito acutilantes e com quem vale a pena estar, mesmo que não seja para discutir Neurologia”.
Presidente do Conselho Pedagógico desde 2017 tem a seu cargo manter o equilíbrio entre docentes e discentes, zelando para que no fim ganhe sempre o mérito pedagógico. Este é um órgão da Faculdade com uma grande participação dos discentes, composto por seis docentes e seis alunos, Joaquim Ferreira tem o perfil claro de quem sabe desempatar qualquer divergência.
“Não foi procurado, mas acharam que eu podia desempenhar este papel e eu encarei-o como um desafio interessante, na sequência natural de responsabilidades anteriores na área da Educação Médica em Neurologia e aceitei”.
Um dos desafios imediatos é a implementação de uma nova APP que pretende simplificar e melhorar a avaliação da atividade docente e registar a assiduidade dos alunos. O objetivo é melhorar a qualidade do ensino e envolver mais os alunos usando um sistema dinâmico e ágil.
Acha que há uma lógica que suporta a sucessão de acontecimentos da vida, mesmo que de forma explícita não tenha procurado muitas das responsabilidades que acabou por assumir. Desde há vários anos que tem assumido responsabilidades na área da educação ligado à Sociedade Internacional de Doenças do Movimento. Há mais de 10 anos que coordena comités de educação, quer na Sociedade Internacional, quer na secção europeia, e isso permitiu-lhe desenvolver projetos educacionais que foram sendo reconhecidos dentro destas sociedades e que podem ser replicadas na Educação Médica em geral.
Exigente com os alunos e com o que eles possam transmitir aos doentes, a exigência não é poupada aos 6 filhos que mostram ser tão diferentes uns dos outros.
Para ser um bom pai “é preciso encontrar a mãe certa”, sucesso óbvio de uma dupla que se conheceu nos tempos da Faculdade, onde foram colegas de curso.
Nada se faz de forma individual e o mérito existe quando se funciona em conjunto, mas há, porém, uma responsabilidade muito silenciosa que lhe dita regras muito alinhadas todos os dias.
Ir para Medicina é adiar uma decisão? Ajude-me a entender…
Joaquim Ferreira: Ser médico permite fazer imensas coisas incluindo não ver doente! Posso ser neurologista, cardiologista, reumatologista, cirurgião, ou posso dedicar-me a áreas de investigação ou áreas mais tecnológicas que podem estar mais distantes dos doentes. É, portanto, adiar uma decisão abrindo um leque de opções que nos permite depois escolher. Este adiar de decisões é uma forma de cultivar a liberdade e este conceito de liberdade é uma das ideias que tento passar a quem está a começar Medicina. Isto aplica-se às nossas opções, às áreas que escolhemos para trabalhar e às instituições onde trabalhamos. Não depender de uma pessoa, ou de uma estrutura é um ato de enorme liberdade. Se eu sentir que o que faço hoje não é suficientemente motivador, e pensar que amanhã posso mudar-me para Los Angeles, por exemplo, dá-nos liberdade. Mesmo que até não seja possível e não o queira fazer, ter essa perceção de liberdade dá-me muita tranquilidade.
Aquilo que queremos aos 20, já não queremos aos 30, nem tão pouco aos 40 ou 50 anos? Mudamos com as décadas da nossa vida?
Joaquim Ferreira: Acho que devemos mesmo mudar. Deveríamos mudar. Primeiro porque o mundo muda e o que se procura aos 20, não é o mesmo que se explora nas décadas seguintes. Depois, ter metas por década não é um mau princípio. Quando fiz 30 anos zanguei-me bastante comigo porque havia ali uma quantidade de metas que ainda não tinham sido atingidas. No passado os médicos doutoravam-se tarde, quase em fim de carreira. Hoje é suposto que tal aconteça ainda durante o internato. Digo muitas vezes que é um privilégio ser aluno e ser interno! Essa é a fase da vida em que temos um pico de energia e criatividade. As nossas aptidões mudam com o tempo. Depois há o problema da monotonia gerar “doença”. Reconhecer o que nos dá mais satisfação e explorar as áreas onde somos mais competentes é uma qualidade. (Pensa um pouco) A passagem do tempo é cruel. Porque, por enquanto, é irreversível, porque está associado a um conjunto de problemas médicos inevitáveis e há que ter a sabedoria de adaptar o que somos ao que fazemos. Claramente tenho a preocupação de não estar a fazer o mesmo daqui a alguns anos. Penso assim ainda mais numa fase em que vejo que os nossos pais a envelhecer e estamos a ficar os patriarcas da família. Isto quer dizer que do ponto de vista pessoal, familiar, profissional e biológico devemos procurar mudar e adaptar-nos.
Em off explicou-me que a genética é uma forma de perceber a migração das populações. Pergunto-lhe se a genética poderá um dia responder melhor às dúvidas sobre as doenças de Parkinson e Alzheimer e que tão bem conhece.
Joaquim Ferreira: Portugal é um país muito interessante nesse aspeto. A doença de Parkinson, à partida, não é genética, ou seja, de transmissão hereditária, mas cerca de 5% dos doentes têm formas genéticas. Uma das causas genéticas é uma mutação que é particularmente frequente em Portugal e resulta do facto dos árabes terem estado na Península Ibérica e, portanto, particularmente prevalente em Portugal e em Espanha, mais do que em qualquer outro país do mundo ocidental. Por isso a resposta é sim, embora não seja a causa principal da doença. Sobre a doença de Alzheimer é a mesma coisa, se um doente me perguntar se a doença é transmissível, eu digo que não, mas existe sempre uma pequena percentagem de formas de doença que são de transmissão genética. É uma percentagem mesmo muito pequena, mas existe. São famílias que, em geral, têm muitos membros da família afetados e não só uma ou duas pessoas, como acontece infelizmente hoje em dia em muitas famílias Mas voltando ao começo da questão, para haver transmissão genética temos de considerar que são mesmo muitos os casos afetados e, em geral, começam em idades mais jovens do que as idades habituais.
O que é que o fez interessar-se por esta área tão misteriosa que é entender o cérebro humano?
Joaquim Ferreira: A razão são as pessoas. Num determinado momento cruzamo-nos com pessoas que nos seduzem para uma determinada área. Mas posso dizer-lhe, contudo, que se alguém me tivesse seduzido para eu ser cirurgião, nunca o poderia ser porque sou tão obsessivo que os tempos cirúrgicos seriam tão prolongados que não haveria administração hospitalar que me permitisse trabalhar. Desconfio que chegaria a casa e depois voltaria ao bloco para confirmar se estava tudo bem. (Ri) Dentro das áreas médicas, alguém me atraiu e um dia convidou-me para ir trabalhar para a Neurologia. Essa pessoa foi o Professor Castro Caldas. No dia em que eu fiz exame, o Professor pediu que fosse ter com ele ao Laboratório de Linguagem, onde ele tinha o seu gabinete. Eu inicialmente fiquei intrigado o que é que ele quereria, mas foi para me fazer um convite para vir trabalhar para a Neurologia. E ainda aqui estou.
Ainda aqui está… Falámos de um conceito muito interessante de liberdade em que me explicava que a qualquer momento pode mudar o que quiser da sua vida e sair. Mas por agora está aqui, porque quer. Mas este “aqui” é um Hospital que passa pelos mesmos estrangulamentos orçamentais que temos assistido na saúde e que são severos. Ainda assim é livre?
Joaquim Ferreira: Sim… Eu tenho a dizer que nunca deixei de fazer nada por restrições orçamentais. (Pensa em pouco) Temos que batalhar todos os dias para não nos tornarmos naqueles velhotes da série dos Marretas (Statler e Waldorf ) que estavam sentados no camarote e que passavam o tempo a queixar-se. Até pela nossa própria cultura há um enorme risco de nos tornarmos uns lamentadores profissionais e eu tento contrariar essa tendência. Prefiro dizer que nunca deixei de fazer nada que tivesse desejado, mesmo tendo restrições. Agora, obviamente, é preciso fazer opções e essas obrigam a que tente fazer algo de relevante e cientificamente interessante, que seja um incremento em termos de conhecimento, mas procurando os filões em que eu possa ser competitivo. Eu tenho que adaptar um pouco as minhas áreas de interesse àquilo em que eu posso ser competitivo. Quando não faço melhor é porque não sei, porque não consigo, ou não tive capacidade e aí eu sou o único a quem devo culpar. Mas este é um exercício diário que se tem de fazer. É mais fácil culpar o sistema, agora… se o nosso sistema nos faz perder energia? Sim. Se é ineficiente? Sim. É exasperante algumas vezes? Sim. Muito mesmo, mas só podemos ficar zangados uns minutos e depois temos que ir à procura de soluções. Ainda mais quando somos responsáveis por um grupo crescente de colaboradores. Aquilo que hoje me limita mais nas minhas opções são as pessoas que estão na minha dependência, nomeadamente em formação, em que a minha intervenção ainda é instrumental. Aquilo que me limita verdadeiramente é a responsabilidade perante os mais novos.
Quando somos muito bons alunos é porque nos é natural, ou porque nos empenhamos mesmo muito?
Joaquim Ferreira: Eu lembro-me que quando entrei na Faculdade os meus colegas olhavam para mim como alguém um pouco estranho. (Ri) Éramos um curso pequeníssimo, fomos o curso mais pequeno de sempre, dele fazia parte o Professor João Eurico, entrámos apenas quarenta em 1986… Porque é que alguém tem boa nota? Porque tem uma capacidade de trabalho e/ou disciplina enorme. Eu era muito “marrão” se é isso que me pergunta. (Ri) Mesmo antes da Faculdade eu passava muito tempo a estudar e fazia competição desportiva que exigia já muita autodisciplina e compromisso.
Nós somos essencialmente uma herança daquilo que nos passaram na infância?
Joaquim Ferreira: São duas coisas, há uma parte que é biológica, independentemente da educação que nos deem, nós nascemos assim, é um priming, está nas nossas “proteínas”. E depois há outras coisas que são moduladas pela educação, pelas experiências, pelas vivências que temos.
Pai de seis filhos tem claramente uma amostra razoável que lhe permite dizer que todos os seus filhos são diferentes. Ainda assim calculo que tenha dado as mesmas referências e regras a todos. A personalidade nasce connosco?
Joaquim Ferreira: Tenho essa convicção. Tenho dois gémeos, nasceram com dez minutos de intervalo e têm personalidades completamente diferentes. Enquanto um é aventureiro e desportista, o outro é mais receoso e dado a atividades culturais.
Mas consegue explicar-me se biologicamente já nascemos com uma assinatura de personalidade?
Joaquim Ferreira: O cérebro é um órgão poderosíssimo. Eu brinco frequentemente dizendo que os neurologistas são especiais porque lidam com um órgão notável e deparamo-nos com fenómenos muito intrigantes. Eu tenho doentes com limitações motoras graves que durante o sono ficam ágeis e levantam-se de uma forma atlética. Ou seja, durante o sono todas as suas limitações desaparecem, quando eles sonham que estão a lutar com alguém, sentam-se na cama e lutam mesmo. Tenho outros doentes que não conseguem andar e, quando sobem para uma bicicleta, pedalam sem limitações. Já viu a complexidade deste órgão? Daí a minha procura de seduzir os mais novos para estas matérias que são fascinantes. E tenho pessoas muito novas a trabalhar comigo que são brilhantes, muito melhores do que eu. E eu não quero que se percam num trajeto de dificuldades, que por vezes é cruel. Não quero que algo os impeça de crescer e é o país que fica a perder porque eles acabam o seu treino e vão embora, muitos deles.
Tenta segurar alguns cá?
Joaquim Ferreira: Não. Fico triste, fico a perder, mas não os tento segurar. Até porque o meu passo de seguida é tentar construir uma ponte e fazer com que nos tentemos entreajudar. Eu continuo a tentar abrir-lhes portas, mesmo fora do país, e eles continuam a ajudar os mais novos aqui e assim ficam as pontes.
Esse sentido de missão ficou ainda mais apurado no Conselho Pedagógico?
Joaquim Ferreira: Eu sou daqueles que faz algumas“ maldades” aos alunos. Se tenho uma aula a começar às 09h e os alunos começam a chegar às 09h05 / 09h10, eu digo-lhes “boa tarde” quando eles entram. Ou se chegarem ainda mais tarde digo “boa noite”. Acho inaceitável a falta disciplina em alguns dos nossos comportamentos quotidianos. Esta instituição é heterógena como qualquer grande Instituição. Contudo tem algo que nem todas as Instituições podem dizer que têm. Tem docentes, investigadores outros profissionais de grande qualidade.
O que de pior pode suceder a alguém com qualidades, é passar por um conjunto de locais sem nunca se cruzar com pessoas verdadeiramente brilhantes. E eu fui, na verdade, um privilegiado ao longo dos anos, porque me cruzei com pessoas fantásticas, verdadeiramente brilhantes e generosas e só assim ficamos a saber o que é o topo do espectro de competência. Eu olho para este nosso Campus como um local com um potencial fabuloso. Tem um hospital com um potencial enorme, uma Faculdade com uma história brilhante, e um Instituto de Investigação Biomédica com um impacto científico crescente. Estas são as características ideais para formar profissionais de saúde clinicamente competentes, bons pedagogos e com uma atitude acutilante.
A razão que levou o Professor Castro Caldas a convidar-me foi o facto de ter discordado dele durante uma aula prática. Naquela altura, e ao contrário de ter-se sentido questionado, achou que aquele aluno que o “provocava” podia, se calhar, vir a ser um bom colaborador. Depois conheci a pessoa mais importante na minha formação científica que é a Profª. Cristina Sampaio e que era a Diretora deste Laboratório (Farmacologia Clínica) e que como já referi está nos EUA; ela é uma pessoa notável e que eu procuro “copiar” na atitude generosa e crítica perante a ciência e a Academia. Acho, inclusivamente, que ela ficaria chateada comigo se eu não tivesse este comportamento. É seguramente a minha referência principal em termos de pensamento científico.
Sei que uma das suas preocupações é a questão das avaliações dos alunos aos Professores. Facto é que continuam a ser poucos os que colaboram e preenchem os inquéritos…
Joaquim Ferreira: Os alunos têm imenso poder. Ganharam-no nos últimos anos e eu não estou a julgar se é bom ou mau, é um facto. Mas depois, em alguns momentos, não estou seguro que usem esse poder para as causas mais relevantes. Perdem tempo em detalhes que valorizam e não são suficientemente participativos em aspetos, a meu ver, bem mais relevantes. Aqui incluo a avaliação do ensino.
As avaliações são anónimas, certo?
Joaquim Ferreira: São anónimas.
Então não o fazem porquê? Por preguiça?
Joaquim Ferreira: Não posso usar esse adjetivo. Acho que a razão é outra. Os alunos, tal como os docentes, são grupos com interesses diferentes. E, portanto, aqueles que conhecemos melhor e que são mais participativos nas atividades da Faculdade podem não ser representativos dos 2 500 alunos desta casa. E há um grande grupo de alunos claramente menos despertos e motivados para responderem a estas solicitações.
Mas para ser justo tenho de dizer que encontro igual heterogeneidade do lado dos docentes!
Qual é o seu principal desafio enquanto Presidente do Conselho Pedagógico?
Joaquim Ferreira: É relembrar a todos os docentes que o objetivo principal desta Escola é formar médicos competentes e que é um privilégio ser docente desta Casa. Mesmo sabendo que quem faz investigação básica está muito focalizado na produção científica dos seus laboratórios... E os docentes das áreas clínicas têm de encaixar a atividade docente em atividades clínicas muito exigentes.
Isto é apenas relembrar a missão da nossa Escola.
O segundo desafio é gerar condições que façam com que a área da Educação Médica seja também uma área de investigação. Eu estou convencido que os médicos que fazem investigação ou têm um treino em metodologia científica são “melhores” médicos. Da mesma forma, se estimularmos a área de investigação em Educação Médica, contribuiremos naturalmente para melhorar a qualidade do ensino.
E por último gostaria que fosse quase espontâneo reconhecer os nossos alunos no futuro. Não pelo reconhecimento facial, o que seguramente seria simpático, mas pela atitude nos aspetos técnicos da prática médica, na forma como comunicam e na forma acutilante de atuarem como profissionais e pessoas.
A divisão de 6 docentes para 6 discentes não é equitativa demais?
Joaquim Ferreira: (Ri) Eu acho que é um enorme privilégio para os discentes estarem representados no Conselho em igual número que os docentes. Mas não tenho a certeza que os discentes vivam essa realidade desta forma que descrevo… Há dois elementos que enobrecem esta participação dos alunos. Uma é a questão do número global de membros e a segunda é o facto de serem pares, ou seja, cada um dos seus votos vale o mesmo que o dos docentes. Mas nem sempre assumem o seu voto como individual, mas antes como representantes de um grupo. Têm uma atitude muito coletiva e isso acaba por tirar algum potencial à participação individual de cada um deles. Na prática, um discente é igual a um docente e isto é algo que procuro relembrar-lhes e peço para se despirem da atitude quase “sindical” de representar os alunos. Era importantíssimo assumirem-se como membros individuais. Mas nem sempre consigo. Eles são muito cuidadosos a emitir opiniões sem validar previamente com o grupo.
Às vezes fica zangado com eles?
Joaquim Ferreira: Sim, já aconteceu...
E o que é que resulta depois dessas reuniões?
Joaquim Ferreira: Em geral corre tudo muito bem. Porque os alunos que fazem parte do Conselho são alunos especiais. Dá um enorme prazer trabalhar com eles. Às vezes fico zangado porque sucedem pequenos desvios ao que tínhamos acordado e haver uma sólida relação de confiança é fundamental. Eles sabem que têm de mim tudo o que eu possa dar, mas eu espero deles a mesma disponibilidade, porque o objetivo é comum.
O que é que se pode fazer para envolver mais os alunos nas atividades da Faculdade, inclusivamente as avaliações dos professores?
Joaquim Ferreira: Quando há algo que não funciona bem de forma persistente, temos que repensar o sistema. Se no modelo que implementámos para avaliar o ensino, a frequência de respostas é baixa, então temos que pensar em mudar o formato. Depois, é natural que numa instituição com mais de 100 anos, haja quem esteja menos motivado, mesmo para pequenas mudanças. Este ano, já no 1º ano, vamos começar a ter um sistema em que os alunos registam a assiduidade e avaliam as aulas através de uma APP. No fim de cada aula teórica, teórico-prática e seminários, eles vão responder a duas perguntas muito simples. Como avaliam a qualidade global da aula e se a aula atingiu os objetivos a que se propôs. O objetivo principal desta medida é que, internamente, e num ambiente construtivo e positivo, haja alertas que permitam, de forma progressiva, melhorar a qualidade do ensino.
Os Professores gostam de ser avaliados?
Joaquim Ferreira: (Hesita e pensa um pouco) Depende. O “depende” é uma resposta que está sempre certa porque em todas as áreas de conhecimento há sempre exceções. (Ri) Qualquer novo método de avaliação gera sempre alguma dúvida, porque há um elemento de desconhecimento sobre o que vai suceder e como vamos ser julgados. E muitas vezes as razões para avaliar podem não ter a ver com a qualidade da aula! Mas estou convicto que será algo que naturalmente todos compreenderão e será também uma ótima oportunidade de autoavaliação.
Passando em revista tudo o que tem a seu cargo faz-me perguntar se a acumulação de funções e projetos o faz descuidar alguma coisa?
Joaquim Ferreira: Corremos sempre esse risco. É uma das minhas angústias matinais. Aliás, tenho duas angústias. Uma é de sermos um “bluff”, ou seja, haver uma discrepância entre aquilo que defendemos e aquilo que efetivamente somos. Ou seja, não nos enganarmos a nós próprios e aos outros. A outra angústia prende-se com a gestão do tempo. Somos educados a estar disponíveis e responder sempre positivamente. Mas o tempo não é elástico e há momentos em que começamos a falhar. Nesse momento temos de tomar decisões e largar atividades que nos dizem bastante. Depois temos de ter ótimos colaboradores e aprender a delegar e confiar.
É obsessivo pela perfeição?
Joaquim Ferreira: Sou obsessivo com o detalhe e intolerante com a não verificação e o desleixo.
Mas sabe delegar. Como é que se conjuga isso?
Joaquim Ferreira: (Ri) Tem de falar com as pessoas que trabalham comigo. Se forem honestos nas respostas, dir-lhe-ão que não sei delegar, ou que delego o suficiente. Mas, em última instância, para o bem e para o mal, é a mim que têm de pedir responsabilidade.
De onde lhe vem esta tranquilidade que parece tão profunda? É mesmo real ou é uma máscara de autodisciplina de quem está a pensar em quinhentos assuntos ao mesmo tempo e não para de os assimilar?
Joaquim Ferreira: (Ri às gargalhadas) Fico contente se transparece essa tranquilidade. Quem coordena tem, pelo menos, de tentar transmitir essa tranquilidade. Tem direito a deixar transparecer alguma preocupação, mas só durante uns segundos... Depois tem de assumir as responsabilidades, definir uma plano e resolver.
Quais são as suas maiores crises profissionais?
Joaquim Ferreira: Tem muito a ver com orçamentos, recursos humanos, manter compromissos e garantir a sustentabilidade dos projetos. As maiores crises e preocupações são sempre matérias que envolvem outros. Preocupo-me que não haja falhas que afetem as instituições que represento.
Continuo sem perceber como é que se consegue encaixar tantos projetos profissionais e ainda ter um projeto familiar grande. Já me falou que é preciso escolher a mãe certa, mas há que ser também um pai certo, ou não?
Joaquim Ferreira: (Fica um silêncio e ouve-se uma porta a chiar devagarinho, parece que o tempo parou) O problema não são os miúdos. Para quem tem este perfil de vida sabe que há múltiplas solicitações, viajamos imenso, saímos muito. E é curioso porque, às vezes, paro para pensar sobre o que une e motiva quem tem este perfil. As pessoas que têm cargos de liderança nas Universidades, em Sociedades Científicas ou em grupos internacionais de investigação, são todos muito parecidos. São aquilo a que chamamos outliers, não são representativos, são diferentes. E porquê? Porque têm uma capacidade enorme de trabalho, porque são os que respondem sim quase compulsivamente, são os que estão sempre disponíveis, são os que cumprem com os compromissos. E quem é que fica a perder? A família. É preciso ter uns companheiros fantásticos para que corra bem.
Os companheiros fantásticos encontram-se por sorte ou é um longo trabalho?
Joaquim Ferreira: Não é sorte, seguramente têm muita influência as escolhas que fazemos como meta de vida. Claro que é bom cruzarmo-nos com pessoas interessantes, mas o resto não é por acaso.
Joana Sousa
Equipa Editorial