Reportagem / Perfil
Andreia Daniel - A Presidente da AEFML
Em tempos de conturbação política no país e onde a liberdade era escassa, entre crises académicas e conflitos com a polícia política, a Faculdade de Medicina era chamada de “santuário da liberdade”, pois nela a polícia não entrava, nem afrontava os estudantes que se reuniam ainda sem uma Associação formalmente constituída. Ali discutiam-se livremente os problemas e as aspirações dos estudantes.
Algumas décadas depois já não se levanta a questão da fragilidade da liberdade, mas a herança histórica pesa e orgulha a quem à Associação pertence.
Preside hoje a esse grupo que prefere o coletivo aos ideais individuais. O peso da responsabilidade e os mais de 100 anos de história da Instituição onde estuda faz com que saiba que todas as decisões que são tomadas exigem investigação prévia e análise, até porque hoje seguem um caminho que já lhes foi conquistado.
Andreia Daniel é a Presidente da Direção da Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa desde 14 de junho, data que marcou a tomada de posse dos órgãos sociais para o mandato de 2018/2019.
Escolheu a Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa por ser a mais antiga e com maior reconhecimento histórico. As boas notas permitiram sempre que escolhesse aquilo que mais gostava. “Sendo a saúde algo inerente a todos nós, ajudar os outros era algo apaixonante” e que fazia parte da sua natureza.
Alentejana, mais precisamente de Beja, deixou os pais e a irmã mais nova e veio sem hesitação atrás do seu futuro. Desde que entrou na Faculdade, viveu sempre em pleno e rápido começou a envolver-se na AEFML, entrou em 2016 e não saiu mais. Diz que estar na Associação traz-lhe, aliás, esse espírito humano e preocupado com os outros.
Nunca teve uma ideia clara do que queria ser na vida de médica, fascinava-lhe a cirurgia e reconhece que é “ mais virada para esse tipo de procedimentos”, mas precisa de contactar com as novas especialidades que o 5º ano lhe reserva agora para ter o conhecimento mais justo de todas as opções.
Em momento algum se lamenta, muito menos se queixa da exigência do seu papel. Vê as dificuldades de algumas matérias como desafios e não como sustos e diz que “a vida de médico é uma vida de longa aprendizagem”.
Não é a presidência da AEFML que remete a responsabilidade da medicina para segundo plano, entra bem cedo para começar o dia com aulas e só depois “perde algumas horas de sono para poder dar resposta a todas as solicitações”, justifica que tem o hábito de trabalhar até tarde porque a noite a inspira a trabalhar, mas é fácil perceber que tenta apenas encaixar o tanto que faz no ritmo dos minutos que se encaixam em blocos de horas.
Conciliar o trabalho da Associação, no qual se envolve quase desde que aqui entrou, é uma dose que se aguenta, mas não fosse o rigor e o método de boa estudante alguma coisa ficaria para trás. “Quanto mais se avança no curso as exigências são maiores, isto explica que os Presidentes pertencem a anos mais avançados, geralmente pertencem ao 5º ano”. Experiência e formação já adquiridas são condições imperativas para quem tem perfil de Presidente.
Cada mandato é apenas de um ano, ano esse que considera ser um prolongamento de um trabalho anteriormente desenvolvido e não momento para se brilhar sozinha.
Com um olhar sempre apaziguador recebe-me na Associação, traz uma t-shirt preta com as siglas da AEFML, a Andreia é o exemplo que a simplicidade é o espelho de uma enorme riqueza interior. Mas é também o símbolo de um grupo de gente responsável e com um sentido de dever muito apurado com os outros. Mas não serão esses os fundamentos essenciais num bom médico? “Queremos o melhor para esta casa e fazer o melhor trabalho para os alunos. Mas não somos uma empresa, nem uma máquina, fazemos isto pelos estudantes e porque gostamos muito”. E é assim que começa a nossa conversa.
O que é que faz um aluno de Medicina que já por si tem de ter um perfil muito metódico e empenhado, o que é que o faz ainda envolver-se num projeto como a Associação de Estudantes?
Andreia Daniel: Isso é muito interessante porque aquilo que nos move é precisamente aquilo que vem da Faculdade, a minha vinda para a Associação teve sempre ligação à minha estadia na Faculdade. Foi sempre o que me moveu, claro que estar na Associação é exigente, mas quando a Faculdade exige mais, então, claro, temos de nos focar mais nisso. Mas nós somos muito focados enquanto Associação, nós somos dentro das Associações do país a que tem das mais longas histórias e destacamo-nos muito por sermos metódicos, com atividades muito estruturadas e pensadas. Eu acho que estas características refletem o que é o perfil de um médico e a responsabilidade que isso tem na sociedade e nós transpomos esses conceitos para o associativismo. Agora, claro que aqui dentro temos limitações, mas também grande maleabilidade para poder criar de novo. Quando temos um problema, temos capacidade para criar também a solução e se lá fora por vezes é difícil construir algo que seja realmente nosso, aqui é possível porque é parte de nós, mas sempre em vista para os outros. E claro isso foi reforçando a minha relação com a própria Faculdade e motivou-me ano após ano.
E passo por passo chegas a Presidente da AEFML. Como é que este processo acontece?
Andreia Daniel: Como havia só uma lista cada pessoa propunha-se ao seu lugar. Nós temos de ter sempre um número ímpar de membros. O ano passado éramos 27 e este ano fomos 29, como aumentámos a carga de trabalho na Associação, também achámos pertinente aumentar o número de membros. É importante referir que não queremos sobrecarregar demasiado quem aqui está, porque aquilo que queremos é ser médicos. Temos um núcleo de gestão, composto pelo Presidente e Vice-Presidentes, depois temos o Tesoureiro, o Secretário e os Vogais divididos pelos restantes departamentos. Para além da Direção temos as Comissões Organizadoras para os vários projetos, envolvendo a restante comunidade estudantil interessada.
Vir aqui parar é um bocadinho pessoal, é achar que há coisas que queremos fazer e que somos capazes de dar o nosso contributo ao projeto. Mas é importante que nunca se encare esta tarefa como algo individual, porque somos muito uma equipa e funcionamos como tal. Aqui dentro não se fazem projetos sozinhos, mas é preciso lutar pelos objetivos e não desistir, porque tudo se começa com uma pessoa e depois outra junta-se e vai sendo assim que se constrói uma lista e depois disso construindo sonhos. Depois é trabalhar esta máquina que já trabalha muito por si, é só redirecionar o caminho. A continuidade é importante porque há “batalhas” e ideias que não se conseguem pôr em prática num ano e a continuidade permite isso. Também é importante dizer que quem vem de ano para ano tem de mudar algumas coisas, para que tudo dê certo e para isso também é preciso saber trazer essa herança do que vem de trás.
Achas que AEFML é representativa da opinião maioritária dos alunos?
Andreia Daniel: Somos muito fortes na representação dos estudantes, trabalhamos muito na Associação Nacional dos Estudantes de Medicina, que é uma Federação que reúne as associações de estudantes de medicina do país; Trabalhamos desde há pouco tempo na Federação Académica de Lisboa que reúne as associações da cidade de Lisboa, aqui trabalham muito para a universidade e para o trabalho de associativismo, está muito ligada ao governo. Este é o nosso principal trabalho enquanto Associação, porque nos movemos muito pelos direitos dos estudantes. Claro que criamos imensas atividades, mas só nos mantemos saudáveis se tivermos uma representação do estudante muito forte, isso é através do reconhecimento. Eu acho que os estudantes reconhecem a importância deste nosso papel.
Os estudantes precisam de ser bem defendidos? Eles não estão por si só defendidos ao estarem numa instituição?
Andreia Daniel: Nós trabalhamos muito a par com a Faculdade porque aqui, e desde que estou na Associação, existiu sempre uma vontade da Faculdade de trabalhar a par da Associação, para resolver muitos dos que são os problemas e as dúvidas dos estudantes. Mas há reformas de fundo… Dou um exemplo de uma reforma de fundo do ensino clínico, sempre foi nossa vontade integrar a comissão e também dar uma voz aos estudantes que pudessem estar representados. Isso foi ouvido pela parte da Faculdade. E é claro que se preocupam com os alunos, mas nós enquanto Associação estamos no plano principal porque temos contributos a dar. Nós trabalhamos focados para as questões da Faculdade e preocupamo-nos em criar documentos e estruturar a nossa opinião para a podermos depois defender. Isso é importante até para a própria Instituição que assim conta com uma opinião sustentada, tendo argumentos baseados na realidade.
O vosso compromisso com a instituição é claro e o grau de responsabilização que assumem, também. Mas como é que depois se explica que esse empenho não se veja refletido nos inquéritos de avaliação aos professores, inquéritos esses que se mantêm aparentemente com uma baixa adesão?
Andreia Daniel: As taxas de preenchimento dos inquéritos de avaliação ao ensino são, de facto, ainda reduzidas e para os professores podem não espelhar aquilo que é a realidade do aluno numa certa área disciplinar. A verdade é que é uma cultura que se cria. Nós temos inquéritos de avaliação de ensino estruturados, feitos pela Faculdade, há muito pouco tempo. Quem criou, os então hot topics, foi a Associação através do Departamento de Pedagogia e Educação Médica; e para nós foi alvo de grande contentamento quando a Faculdade passou a assumir isso.
Interessante. E então nessa altura era mais eficaz o preenchimento?
Andreia Daniel: Penso que não fosse assim tão relevante a discrepância entre as duas partes. Mas a verdade é que é uma cultura que se cria e que deve partir da Faculdade, mas não deve ser algo imposto, e não é. Ou seja, não existe uma obrigatoriedade de preenchimento aos inquéritos, o que significa que os alunos preenchem apenas se quiserem.
Achas que deveria ser obrigatório?
Andreia Daniel: As coisas têm sempre algumas condicionantes. Se for obrigatório nós, obviamente, vamos ter uma taxa de respostas maior, mas provavelmente também teremos respostas mais enviesadas e se calhar também não teremos a realidade do que é o panorama da nossa Faculdade. Neste momento e como é atualmente quem os preenche diz a realidade porque é facultativo e por isso a taxa é inferior. Acho que é tentar encontrar o equilíbrio entre duas partes. Idealmente queremos sempre ter a realidade e ela deveria ser o que o aluno preenche. A AEFML tem apelado aos alunos para preencherem os inquéritos, aliás, temos feito grandes campanhas de divulgação nos inquéritos de avaliação do ensino. Inclusivamente, nos últimos, até fizemos pequenas filmagens a apelar ao preenchimento, os Professores Fausto Pinto e Joaquim Ferreira fizeram vídeos, os discentes do Conselho Pedagógico também, bem como a AEFML. Será eficaz por se mostrar a importância deste nosso pedido conjunto e não as consequências. Aquilo que tentamos passar como mensagem é que a nossa voz é ouvida e que será uma desmotivação se deixarmos de ser ouvidos.
Enquanto Associação é importante para vocês se o Diretor é uma pessoa concreta, ou se é outra? Há aqui uma ligação de datas curiosa que é a tua eleição de Presidente da Associação, pouco tempo antes do Prof. Fausto ser reeleito Diretor.
Andreia Daniel: É mesmo muito importante a escolha do Diretor porque ele é a figura de representação máxima da Faculdade. Assim como é importante a relação que temos com o Diretor e o trabalho que mantemos com ele. Para nós é importante a pessoa que está à frente da Faculdade, mas tanto quanto isso é importante o diálogo, a comunicação e o trabalho que podemos estabelecer com ele. É claro que o Diretor tem as suas metas para a Faculdade, bem com a Associação também tem as suas, mas temos pontos coincidentes no caminho, como é o caso da reforma do ensino clínico, ou mesmo no ensino pré-clínico, ainda em questões sociais como as propinas. São tudo preocupações simultâneas. A candidatura desse Diretor é já um trabalho de continuidade, isso é muito importante porque já existe estabilidade e com isso conseguiram-se coisas muito boas, como o Gabinete de Apoio ao Estudante, que acolhe projetos como o Solvin’it, o Espaço S e Mentoring, questões muito importantes para nós. Ter um Gabinete de Apoio ao Aluno é francamente um tema importante e já com uma estrutura representativa da Faculdade, neste momento ter a Rita Sobral (funcionária da Faculdade que está com este Gabinete) connosco ajuda a organizar muito do que são as atividades e permite forte acompanhamento dos alunos bolseiros.
Tens falado umas quantas vezes no Mentoring, que é um projeto com grande foco no acolhimento ao aluno, principalmente na fase mais difícil que é quando ele chega a um lugar novo. Os estudantes quando entram aqui precisam muito de apoio?
Andreia Daniel: Bastante. E muito neste curso. Muitos chegam aqui e nem são de Lisboa, largam os pais e vêm para uma cidade muito maior e que não dominam, e a Faculdade é aquele lugar que puxa por todos nós. E claro que sendo uma Faculdade que está dentro de um Hospital, é preciso ter uma estrutura que agarre os alunos. É preciso alguém que lhe diga, “mesmo que não precises, existe aqui alguém para ti”, porque às vezes chegam aqui e não têm ninguém da família e ainda não conhecem amigos. Chegam a uma cidade que o preço das casas é um flagelo, estamos aliás a criar informação só de apoio com alojamentos. O Mentoring reflete bem a sua utilidade porque, todos os anos, tem tido cada vez mais mentores.
Qual é a vossa posição em relação à praxe?
Andreia Daniel: Existe praxe na Faculdade, por um grupo que não está na dependência da Associação, é a Comissão de praxe e que é independente. Eles organizam a praxe, a que horas começa, que atividades vão fazer. A praxe é um pouco mais intensa no momento em que decorrem as matrículas, mas a Associação continua com as suas atividades, a decorrer em simultâneo, e a relação é confortável para ambas as partes. Dentro do nosso espírito o que é ser médico somos muito conscientes para saber onde fica o espaço de cada um e isso é muito saudável. Nós acreditamos que a experiência de um novo aluno na Faculdade deve ser plena e por isso a experiência da praxe facultativa, ninguém obriga ninguém a ir à praxe.
Daqui por um ano, quando olhares para trás o que queres ver cumprido enquanto representante máxima da AEFML?
Andreia Daniel: Tem graça porque neste momento estamos a voltar de férias (a nossa entrevista foi feita a 28 de agosto) e estamos a olhar para o que já foi feito, o que falta fazer e estamos a orientar os caminhos a partir de agora. Neste mandato propusemos olhar para o panorama geral e a ver os que estava mal para os alunos, por exemplo, que reparações e obras precisamos, mas também ao nível da representação dos estudantes. Como dizia há pouco, a Federação académica de Lisboa é algo novo, nós só entrámos com associados o ano passado e portanto é um desafio muito grande porque a Federação trabalha muito para a cidade de Lisboa e isso tem o seu peso porque a Universidade está aqui inerente. Temos também o encontro nacional de direções associativas que é um fim de semana que junta todas as associações e onde se discutem as questões ligadas ao ensino superior e que depois são levados ao governo. Portanto temos muito para ver.
Também queremos continuar a trabalhar na reforma do ensino clínico e que é uma batalha que queremos continuar a travar porque é preciso construir um documento sólido, juntamente com os professores que sabemos que é imprescindível o seu apoio.
Andreia Daniel tem como grande preocupação a questão do número de médicos que vão ficar sem acesso à especialidade. Vê como uma solução para regularizar o problema de médicos a mais sem acesso, a redução dos numerus clausus e tem-se debatido por isso.
Acabar o curso e começar rotinas de trabalho talvez venha a ser o grande momento da sua vida e que anunciará um grande ciclo que começa, mas deixar a sua primeira casa dos últimos anos, onde formou a sua família lisboeta será algo que para já prefere não se confrontar demais.
A seguir à Andreia alguém virá ser a sua continuidade, mas para já este é o momento dela, apesar do seu coletivo, e tudo fará para deixar um legado a todos os estudantes, sejam ou não associados.
A nós cumpre-nos a obrigação de acompanhar os seus passos e desejar-lhe um excelente mandato.
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Joana Sousa
Equipa Editorial