Reportagem / Perfil
Catarina Sousa Guerreiro, a Professora que nos faz a visita guiada à nova Licenciatura de Ciências da Nutrição
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A Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa inicia uma nova Licenciatura já a começar no próximo mês de setembro.
Depois da criação em 2008 do Doutoramento em Doenças Metabólicas e Comportamento Alimentar e de em 2012 se ter criado o Mestrado em Nutrição Clínica, 2018 / 19 promete ser o ano letivo que arranca com o curso de Ciências da Nutrição.
Numa fase em que o tema da Nutrição assume cada vez mais relevo na sociedade, a Faculdade de Medicina viu como fundamental a criação de um projeto integrado e em articulação com os seus vários patamares formativos (Licenciatura, Mestrado e Doutoramento) e sempre com abertura possível para a investigação científica dentro desta área.
Sendo matéria destacada dentro das diversas faculdades, a Nutrição precisava, no entanto, de ir para além de um tema ou de uma disciplina. Catarina Sousa Guerreiro, teve e tem um papel determinante na criação desta nova Licenciatura. Foi este o motivo que nos levou a falar com ela.
Alfacinha nascida e criada, adora o seu bairro do Arco de Cego e diz que pensa na organização da família para que se ande o menos possível de carro. Tem nas suas raízes tudo o que poderia explicar a sua personalidade humilde e discreta, de quem recebeu como educação que os verdadeiros valores nunca se autopromovem. Filha e neta de médicos, o pai António Sousa Guerreiro, especializou-se em Medicina Interna e é um saudável concorrente seu, já que é Professor na Universidade Nova de Lisboa. A mãe, agora reformada, trabalhava como coordenadora do gabinete de planeamento da Reitoria da Universidade Nova de Lisboa. Pai e mãe deram-lhe os rumos que, sem tomar consciência, viriam a ser conjuntos com os seus.
Ao ouvi-la recordar as suas origens percebe-se que o profundo sentido de família talvez lhe tenha sido herdado dos avós maternos que criaram 10 filhos. Da grandiosa família que se juntava ao almoço de Domingo na casa dos avós, na Avenida EUA, ficou a tradição de ainda hoje se organizar os lanches de Domingo, ou o jantar de Natal.
Catarina formou-se em Dietética e Nutrição da Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Lisboa, quando acabou o curso sentiu que precisava de continuar a aprender. Seguiu para o Mestrado onde conheceu as Professoras Helena Cortez Pinto, Ermelinda Camilo e Marília Cravo, foi esta última que viria a mostrar-se muito importante na sua vida e até aos dias de hoje. Professora Gastroenterologista, Marília Cravo desafiou Catarina para ir estagiar com ela no IPO e estudar a relação entre os genes, a alimentação e o desenvolvimento de doenças. Na verdade é de Nutrigenética que se fala e de que forma esta interação pode ser um fator de risco num contexto neoplásico (proliferação descontrolada de células, que pode ser benigna ou maligna). O Mestrado de Nutrição Clínica na Faculdade de Medicina ficou concluído com sucesso, bem como o estágio onde aplicou as suas investigações. Foi nessa altura (2005) que a ESTeSL a convidou para ficar como Professora, ao mesmo tempo fazia um caminho semelhante na Faculdade de Medicina, como Assistente convidada.
Chegar ao Doutoramento foi para Catarina um processo muito natural e lógico, na sequência daquilo que determinou ser a sua vida profissional. A Nutrigenética mantinha-se como o foco, e se primeiro tinha investigado sobre o cancro colo-retal, agora olhava para as causas da doença inflamatória do intestino, a doença de Crohn.
Descreve sempre tudo o que foi conquistando com extrema simplicidade, como se qualquer um o pudesse fazer. Mimetizou o que tinha aprendido na doença de colo-retal e transportou as questões sobre as influências da Nutrigénetica, na sua nova área de estudo. Nessa altura conviveu com os doentes de Gastroenterologia do IPO e de Santa Maria, Hospital que herdara também nas suas origens, quando o avô materno Coriolano Albino Ferreira, então administrador do HSM (1956 e 1961), chegou a viver, vindo de Coimbra com a sua família no enorme edifício cinzento. “A minha mãe diz que se lembra de andar a brincar por aqui pelos corredores e jardins do Hospital. Aliás, o quarto onde dormia a minha mãe e os meus tios é atualmente uma das enfermarias. É engraçado, não é? Mal eu sabia que também iria andar pelos mesmos lugares”.
Reunidas as condições curriculares e de personalidade, Catarina tinha tudo para coordenar o novo curso de Ciências da Nutrição. “Recordo-me como se fosse hoje… de férias em pleno mês de julho, foram vários os telefonemas com o Dr. Luís Pereira (Diretor Executivo) para conseguirmos ter a 06 de outubro de 2016 a proposta do nosso processo do curso finalizada. A verdade é que a Faculdade tem alguns médicos que estão perto da área da nutrição, mas criar uma proposta de raiz não foi nada fácil. Mas foi criada e entregue em tempo útil. Facto é que correu tudo bem e ficou muito bem classificada na agência A3ES (Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior) e a Ordem dos Nutricionistas também deu o parecer positivo à nossa proposta”.
Tudo estava pronto para se avançar com a nova licenciatura em 2017, Catarina Sousa Guerreiro e Joana Sousa, ambas Professoras, ocuparam as duas vagas para se avançar com a preparação do curso. “Ter a Professora Joana (Sousa) ao meu lado é excelente porque nos completamos muito bem. Ela vai ser um suporte fundamental, digo aliás, acho que não me atreveria a vir sem ela”.
Era abril de 2017 e tinham a expetativa de ter tudo pronto para abrir em setembro desse ano. Por restrição orçamental e dando foco a outras áreas, como a Física, consideradas como primordiais, por decisões governamentais, decidiu-se não abrir as vagas para que o curso acontecesse. As Universidades ficavam assim sem espaço para poder dar resposta à procura dos novos cursos.
Como um ano depois nada se alterou na abertura de novas vagas, numa gestão harmoniosa entre o Diretor Fausto J. Pinto e o Reitor da Universidade de Lisboa António Cruz Serra, reorganizaram-se as vagas internamente, considerando que para a Licenciatura de Ciências da Nutrição ficariam destinados trinta lugares de um curso tão ansiado.
Atualmente Lisboa tem apenas a ESTeSL com uma formação politécnica na área da Nutrição e duas instituições privadas que vão colmatando a vasta procura. A destacar neste projeto da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa há um ponto muito forte. O projeto conta com ligação à Faculdade de Motricidade Humana, onde vai buscar a parte do exercício físico, e com a Faculdade de Farmácia, mais focada na análise toxicológica bromatológica dos alimentos. Lecionado primordialmente na Faculdade de Medicina, no novo Edifício Reynaldo dos Santos, não se descarta no entanto a hipótese de se dedicar dias concretos de formação nas outras duas faculdades implicadas. “Existirão dias destinados às aulas que ocorrem na Faculdade de Farmácia ou Motricidade Humana. Vamos promover interação entre escolas e docentes, mas faremos tudo para garantir a comodidade dos alunos”.
A par do percurso de Professora, Catarina exerce também uma atividade clínica com grande foco do papel da nutrição nas doenças do intestino. Acha que só está nos projetos enquanto eles forem benéficos para si, mas principalmente, apenas e só, se sentir que pode dar alguma coisa para os enriquecer. E apesar de parecer que foi quase sem querer que os passos se foram sucedendo, os factos comprovam que seria injusto acreditar que foi só assim.
Em 2011, altura em que terminou o Doutoramento, enviou o seu CV para a Fundação Champalimaud, foi chamada em 2015. Colabora com eles desde então nas consultas de Nutrição, uma vez por semana, e pretende manter o laço.
A filha Júlia foi a primeira a nascer, tem hoje 6 anos. Depois chegou o João, agora com 4 anos e só depois o Manuel que tem um ano de vida. Do tempo agitado que já tem, sabe que a esta gestão de energia e ao novo curso ainda se junta o Mestrado em Nutrição Clínica, a disciplina no curso das Ciências da Saúde e as optativas de Nutrição.
Os quase 39 anos fazem com que Catarina Sousa Guerreiro leve muito a sério o peso de ir coordenar um curso na Faculdade onde tanto se especializou.
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Como é que chegámos aqui a esta decisão do novo curso, uma vez que no passado já tinham existido outras formações?
Catarina S. Guerreiro: No passado a Faculdade teve um Curso de Dietética e Nutrição criado e pensado por pessoas muito importantes na área da Nutrição, como a Professora Ermelinda Camilo, que tentaram criar um curso à luz de um contexto europeu e que estava bem pensado... A questão é que em Portugal as coisas eram diferentes. Aqui tivemos uma ebulição de acontecimentos, nomeadamente a criação de uma ordem profissional que define agora quais os cursos que dão acesso à profissão. O que aconteceu no passado é que apesar de estar bem pensado para o contexto europeu, nacionalmente o curso não reunia alguns dos requisitos base. A verdade é que o Professor Fausto Pinto assumiu este novo projeto com muita convicção e ele é muito persistente naquilo que deseja e como tal fez tudo para que este curso se tornasse possível. E conseguiu.
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Enquanto conversávamos disse que “nós achamos que somos muito novos e depois já não somos tão novos quanto isso”. Sente que este é um arranque que tem algum peso?
Catarina S. Guerreiro: Estamos numa Faculdade com peso institucional muito forte, com muita história, e claro que muitas vezes penso que o papel que aqui vou assumir vai obrigar-me a tomar posições e a assumir um lugar...claro que isso obriga-nos sempre a crescer. Eu penso que a Nutrição vai ter de conquistar o seu espaço próprio. Mas até à data é importante que se diga que não nos deparámos com nenhum obstáculo. Zero. Ainda agora tivemos uma reunião só de docentes do 1º ano, para preparar o próximo ano letivo, essencialmente médicos, porque as disciplinas de Nutrição surgem essencialmente a partir do 2º ano e estávamos com algum receio sobre como seria o primeiro embate. Todos os docentes têm demonstrado muito interesse e entusiasmo com a nova licenciatura. Depois há a Direção que nos tem dado a maior abertura para tudo aquilo que vai sendo necessário e o mesmo posso dizer sobre toda a parte dos serviços administrativos. Ou seja, não tem havido dificuldades, o que há é só a consciência das responsabilidades. Na verdade, este ano que não abrimos foi bom para nós. Claro que na altura sentimos que estávamos a “morrer na praia”, quando recebemos a notícia em julho, mas o facto é que nos permitiu consolidar as relações institucionais, consolidar projetos de investigação e traçar muito bem as metas para onde queremos ir.
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Tem ideia do perfil de alunos que vão receber?
Catarina S. Guerreiro: Tenho. Como estive estes anos ligada ao contexto académico da nutrição, acho que conheço as mudanças do público face a 2002, ano em que havia a outra licenciatura. Agora o aluno que vai para Nutrição é diferente daquele de antigamente, porque a esmagadora maioria não vem para este curso com objetivo futuro de entrar em Medicina posteriormente. Se dantes o aluno colocava Medicina nas primeiras opções e só depois escolhia a Nutrição, esse quadro agora julgo que mudou. Neste momento há muita mais gente que escolhe Nutrição e quer mesmo Nutrição. Penso que isso estará relacionado com o enorme relevo que a nutrição tem no nosso dia-a-dia.
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Há um conceito de vida saudável que este Diretor defende veemente e que é uma das suas bandeiras, “Por uma Universidade Saudável”, um programa de prevenção onde a Faculdade de Medicina terá um papel importante.
Catarina S. Guerreiro: Quando tirei o curso achava na altura que o caminho normal era sair da faculdade e ir trabalhar para um hospital, achávamos que íamos lidar sempre com a doença. Eu nunca quis ir para Medicina, nunca tive a pretensão de ser médica. Mas na minha geração tínhamos muito a pretensão de trabalhar na área clínica. E a grande mudança é que, quem hoje procura Nutrição, não pensa mais assim, alguns pensarão só na clínica claro, mas outros já pensam nutrição aplicada ao desporto, ao marketing alimentar, ou seja, nutrição como promotora do bem-estar. Agora também é verdade que cada vez mais esta ligação ao bem-estar está associada a modas. E nós aqui neste novo projeto não podemos ser os “velhos do Restelo”, teremos de conseguir acompanhar a evolução dos comportamentos e atitudes relacionadas com nutrição, mas, teremos de ser sérios e credíveis nas abordagens a essas novas tendências. Existe por parte dos media a tendência de levar as questões relacionadas com a Nutrição para o seu lado mais mediático, muitas vezes tentador. Temos enquanto academia de saber acompanhar as tendências mas sabendo bem quais os pilares da nossa atuação.
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Esse ponto de equilíbrio entre modernidade e tradição está bem definido neste arranque de curso?
Catarina S. Guerreiro: Eu sei que estamos dotados de professores que nos vão dar muitas respostas. São Professores muito experientes que nos ajudarão, à luz da evidência científica, a desmistificar alguns dos mitos e questões relacionados com a nutrição. Que casa será a melhor para este grande desafio do que a nossa? Temos docentes academicamente de excelência com conduta baseada nas melhores práticas clínicas. Isto para que lhe dizer que não sei já à partida qual será o ponto de equilíbrio, mas estou muito segura dos alicerces.
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Com uma família numerosa isso faz-me pensar no ritual que tinham à mesa. Completamente defensora da tradição, o que nos conta a sua mesa familiar?
Catarina S. Guerreiro: Os meus avós promoviam muito os almoços, o convívio à volta da mesa, e mesmo depois de os perder, tentamos manter esse ritual. Agora ao Domingo almoçamos num restaurante que todos consigam chegar facilmente, cada um vem à hora que pode e quando pode. Mas depois há sempre o lanche na casa de algum tio ou primo. Só primos somos 29 e no Natal somos mais de 80. E é um jantar de Natal sem grandes luxos, onde o que conta é o espírito de família. Cada um leva alguma coisa porque o mais importante mesmo é conseguirmos estar todos juntos.
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E faz sentido dizer que nós somos o que comemos?
Catarina S. Guerreiro: Acho que sim. Pode parecer uma ideia chavão, mas acredito mesmo nela. Por acréscimo eu trabalho numa área muito ligada à parte gastrointestinal e cada vez mais nós sabemos que aquilo que se passa nos nossos intestinos e na nossa microbiota (intestinal) parece ter influência, até na maneira como nos comportamos. Ora, se eu estiver saudavelmente nutrido, de uma forma adequada ao meu organismo, então isso só poderá traduzir-se em melhor qualidade de vida. Nesse sentido, seremos muito aquilo que comemos.
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Acha que se criou um grande fundamentalismo, nestes últimos anos, sobre o corpo e a parte estética? O estereótipo da mulher perfeita influencia a decisão alimentar?
Catarina S. Guerreiro: O problema é que eu acho que nos dias de hoje já estamos a acrescentar outros estigmas por cima deste. Esse é o basal, o da mulher com um corpo perfeito, o que faz com que se incentive um padrão alimentar de restrição. Mas em cima disso agora a tendência é mexer-se de forma abusiva na seleção alimentar, criando-se dietas inacreditáveis. Esta nova tendência de restrição é perigosa, e sabe porquê? Porque ao contrário do que devíamos não estamos a personalizar nada, mas sim a massificar a exclusão. E esta exclusão não é só com vista ao ideal de corpo perfeito, que até é mensurável, mas é principalmente com vista a outros ideais que nem conseguimos quantificar e que tem em vista um qualquer bem-estar. Mas o bem-estar nunca pode surgir à custa das dietas de exclusão desequilibradas. E tudo isto tem consequências, ou momentâneas, ou a longo prazo. Aquilo que precisamos é de um padrão alimentar muito variado. Pode parecer mais um chavão, mas quantos de nós na maioria das vezes de forma inconsciente não tem a tendência de comprar sempre o mesmo tipo de legumes ou mesmo tipo de fruta ou até de peixe. Sabe o que acontece? Os minerais, as vitaminas, ou por outro lado os aditivos ou os pesticidas serão sempre os mesmos, e o nosso organismo fica sujeito de forma muito prologada ao mesmo leque de compostos. Se variarmos o que comemos, não corremos esse risco. Depois há outro problema. Já não somos tão moderados como éramos no passado e muito importante não fazemos o exercício físico ajustado ao que comemos. A nossa perceção acerca das doses que devemos consumir está totalmente desajustada. Quantos de nós não fica satisfeito se a dose que nos servem em determinado restaurante não for “simpática” Aumentamos as porções e mexemo-nos cada vez menos. Não tem ideia de como dez mil passos por dia podem ser úteis nesta equação. Portanto, eu até diria mais, nós somos o reflexo do equilíbrio entre aquilo que comemos e aquilo que nos mexemos.
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Se conseguisse lembrar-se de um só sabor ou de um cheiro das mesas de domingo da casa dos avós, que sabores lhe viriam à memória?
Catarina S. Guerreiro: (Não hesita em responder) Das torradas bem fininhas acabadas de fazer. O cheiro associado a isso e o sabor estão muito presentes porque era algo que havia sempre. Sempre… (faz um sorriso e some-se a voz) E há. Ainda há…
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Falta pouco tempo para que Catarina Sousa Guerreiro possa por à prova o sucesso de tudo o que foi construindo para este curso. Pela frente espera-lhe um primeiro ano com trinta alunos, num curso que durará quatro anos e terá um grupo docente único, composto por três Faculdades de referência (Medicina, Farmácia e Motricidade Humana). Será um curso com uma grande expressão teórico-prático e com casos práticos de resolução. No final de tudo e no último ano haverá um semestre para estágio e tendo em vista protocolos, não só hospitalares, mas em áreas diversas que permitam dar a perspetiva ao estudante do que podem vir a ser no futuro.
Num futuro breve estes potenciais nutricionistas poderão seguir as pisadas de Catarina e enveredar pela parte clínica (em contexto público ou privado), ou optar por centros desportivos, creches e escolas, ou outros centros de ensino e investigação, seguir o caminho da indústria agro- alimentar e farmacêutica, ou empresas de restauração e instituições públicas ou provadas de âmbito social ou civil.
Setembro está quase a chegar e promete vir repleto de novidades. A nós resta-nos desejar bom trabalho a todos e toda a sorte a Catarina Sousa Guerreiro, porque merece-a incondicionalmente.
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Joana Sousa
Equipa Editorial