Roteiro da Memória
Professor Martins e Silva – história de um livro de memórias
Encontro-o a estudar documentos com mais de um século de vida. Falar com ele é ouvir parte da história do ensino e das instituições. É entender que na vida os ciclos se repetem como ladainhas que pretendem repetir uma ideia até ela ficar resolvida e por isso são precisos séculos para que a ladainha não se repita mais.
Explica que para se apreender o conteúdo das muitas páginas que lê por dia, é preciso saber fazê-lo transversalmente, técnica que apurou de tanto estudar e diria eu que, seguramente, poucos o saberão fazer assim.
Toca nas antigas folhas de papel como se tocasse pele recente ainda a formar camadas de resistência à vida. A idade dos livros merecem-lhe respeito especial porque trazem a sabedoria e as respostas que explicam que a vida e a História vivem por etapas e repetem-se.
Contador de história das estórias, fala da raiz dos assuntos depois de os ter ido conhecer a fundo. Entre tempos de silêncio e namoro com os livros, ouve-os e busca-os num encontro incessante de saber e compromisso com a verdade das coisas.
Demasiado correto para falhar o tempo marcado no relógio, adia por meia hora a nossa conversa porque um compromisso o obriga a chegar minutos depois. Mostra-me um livro que é raridade de conteúdo e preço e que resgatou a tempo de matar a sede do saber que não lhe acaba - "O Hospital Real de Todos-Os-Santos da Cidade de Lisboa".
Conhecemo-nos na inauguração da nova Biblioteca da Faculdade, “tens de o entrevistar, porque é uma oportunidade para saberes o que fez pelo nosso ensino e pela Faculdade”, dizia alguém que trabalhou com ele durante anos. Ao perceber que tinha sido antigo Diretor da Faculdade, rapidamente o procurei e propus uma conversa. Ao início explicou que quando está a trabalhar numa coisa é quase obsessivo o seu método e foco, mas “talvez um dia, quem sabe”, dois dias depois chamou-me e marcamos a uma entrevista.
Bom aluno em ciências naturais, João Alcindo Martins e Silva tinha particular interesse pela dissecação de animais, colecionando imagens e diagramas para aprender mais sobre o tema. Talvez tenha sido esta a razão para escolher Medicina. Empenhado em terminar o curso e apesar de todo o seu interesse diz, no entanto, que nunca se preocupou demasiado com as classificações apesar de terem sido boas. Acabou a licenciatura com uma tese sobre o sangue, especificamente sobre as porfirinas, componentes importantes bioquímicos da hemoglobina e outras hemoproteínas, co-responsáveis pelo transporte de oxigénio na corrente sanguínea e, nos restantes tecidos, intervindo na respiração celular e sistemas de destoxificação. Interessado na parte experimental com análise de animais em laboratório, percebeu que era a investigação que lhe despertava o maior interesse. De modo que depois de se licenciar em Julho, foi fazendo upgrades em hematologia laboratorial e dando continuidade ao trabalho anterior, acabando por se atrasar na entrega de documentação para o internato médico. Mas precisava de encontrar uma saída profissional já que a investigação sobrevivia praticamente sem apoios, existindo na altura apenas a Gulbenkian no que tocava a financiamentos. Os seus mentores da altura aconselharam-no a ir para Moçambique, para o Instituto de Investigação Médica, cujo diretor, Dr. António Franco, viera de visita a Lisboa, e procurava um assistente à altura, embora mais orientado em estudos para microbiologia e parasitologia. Posteriormente, por acordo entre os diretores e preferência pessoal, foi colocado na Universidade de Lourenço Marques, como 2º assistente de Química Fisiológica, onde poderia dar continuidade aos trabalhos em que se interessava.
Acabado de casar, assim que terminara o curso, mudou-se com a sua mulher, para Moçambique em 1968. Pai de quatro filhas no total, a primeira e a terceira nasceriam lá, a segunda nos EUA e a última já depois do regresso a Lisboa. Além das aulas, recomeçou a investigação sobre porfirinas, através de rastreios em humanos. O Doutoramento em Química Fisiológica viria a surgir, mantendo o mesmo interesse pelas porfirinas. Antes, porém, houve que ultrapassar um problema: “Um mês depois de ter chegado a Moçambique estavam a chamar-me para a recruta em Mafra. Na altura o Professor Veiga Simão, Reitor e homem extraordinário, moveu o céu e a terra e conseguiu, com o Estado Maior das Forças Armadas, que as minhas obrigações militares viessem para Moçambique, na condição de aí fazer o doutoramento”. Aproveitou os quatro anos de espera que lhe foram concedidos (o prazo limite terminava aos 30 anos de idade) para realizar um primeiro estágio num centro de renome internacional então existente na Universidade de Cape Town (África do Sul) e para um outro, de um ano, em Seattle, na Universidade de Washington, onde pode realizar quase toda a parte experimental da tese.
Ao perguntar se não pensara ficar pelos EUA, disse que não faltaria à palavra, que era de honra. “Não era isso que estava combinado. A Gulbenkian e a Universidade de Lourenço Marques tinham pago para eu poder ir para os EUA investigar, eu não ia defraudar essas Instituições. Além disso, comprometera-me a cumprir serviço militar obrigatório”. Nem o convite para ficar nos EUA o fez pensar duas vezes.
Na altura já doutorado, fez a tropa em Moçambique, entre 1972 e 75. “Em quatro anos, que era o tempo limite, consegui fazer a tese toda, escrevendo a parte final enquanto estava na recruta. Já com trinta anos tinha, então, de conciliar a tese e assumir o seu “papel militar”. Acordava às 4h da manhã para a escrever e só depois seguia para o quartel. Todos os dias fazia trinta quilómetros para lá chegar”.
Escreveu e defendeu a tese e, “dois dias depois, estava no mato”. Apesar de não gostar de falar muito desses tempos de tropa diz que se sentiu revoltado, pois estava a ensinar na Universidade, tinha uma especialidade médica e acabou por seguir como médico de companhia para um posto na fronteira norte. Além da parte militar, cabia-lhe a função de delegado de saúde e a direção de um pequeno hospital. Viveu o 25 de abril nesse mesmo mato que o esperava e diz que o acaso o fazia ouvir nesse dia Zeca Afonso. Foi pela rádio que soube das notícias do seu país. Já ansiava pela boa nova que, aliás, era sussurrada entre próximos e em que sabiam que as Forças Armadas fariam algo em breve.
Regressou a Portugal no último avião que trouxe os militares e civis que ficaram para o fim, para deixar de vez o país em que iniciou tantos passos. Desses tempos lembra a pacífica Lourenço Marques como uma bela cidade que foi, também ela, assombrada pelo medo, reflexo de uma agitação política e social que não prometiam bom desfecho. “Pus as minhas filhas e a minha mulher numa ambulância militar para o aeroporto. Na altura em que percorríamos a avenida que nos levava ao aeroporto estávamos rodeados de um lado e do outro de musseques (casas de palhota que foram inundando a cidade) e nas vésperas tinha havido mortes ali… Ao chegar ao aeroporto estávamos rodeados de paraquedistas, militares, foi agitado”.
João Martins e Silva regressou anos mais tarde a Moçambique, onde revisitou alguns dos seus lugares. “Voltei a ver a casa onde tinha morado, era azul, muito bonita e eu tinha-a estreado naquela altura. Quando cheguei lá ela não tinha cor, estava degradada e a cidade que tinha sido tão bonita, tinha agora as casas forradas com barras de metal e um homem à porta a vigiá-las; era uma cidade limpíssima, cosmopolita, muito avançada e agora as casas estavam sobrelotadas de gente e com animais a viver lá dentro, moíam o milho dentro das casas, os elevadores tinham deixado de funcionar”.
A experiência de médico fortaleceu-se em Portugal. “Até meados dos anos 90 exerci clínica privada, mas não era a essa a minha paixão, eu gostava de ter respostas certas, resultados concretos e não suposições. Havia uma escala de imprecisão na Medicina clínica que apesar de muito interessante me fazia sentir que, entre dois amores, pesava mais a investigação”.
Sempre ligado à Faculdade de Medicina e instalado que estava no país, recomeçou em 1975 no Instituto de Química Fisiológica, como Professor auxiliar extraordinário em 1978, e catedrático em 1980. Assumira, entretanto, a responsabilidade do ensino da Bioquímica e, logo depois da organização de um espaço próprio que viria a ser um novo instituto, com o mesmo nome. Subdiretor da Faculdade desde 1991, então dirigida pelo Professor Torres Pereira, viria a substituí-lo no cargo de Diretor em 1994. Após a jubilação, nesse ano, do Professor Carlos Manso, que também fora o seu diretor em Lourenço Marques, assumiu a responsabilidade dos dois institutos, por sua proposta fundidos num único, sob a designação de Bioquímica. “Mesmo enquanto Diretor continuei a dar as minhas aulas três vezes por semana, além das responsabilidades inerente à direção do Instituto de Bioquímica, que incluíam uma forte componente de investigação”.
A criação dos estudos hemorreológicos e da microcirculação deram continuidade às suas investigações anteriores.
Diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa entre 1994 e 2005, os que com ele trabalharam nessa altura relatam que uma das suas grandes características era fazer documentação histórica de tudo, até das rotinas. E isso fez com que nascessem os despachos e as normas e que todos soubessem com o que contavam. “O papel tinha essa importância, publicava-se e todos passavam a tomar conhecimento”.
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Conhecido por ser um homem de detalhe, a sua atenção aos espaços fez com que os ampliasse e modernizasse. Nem uma lâmpada por acender lhe escapava ao olhar minucioso e disciplinado. Rigoroso com o ensino, mudou o 6º ano da Faculdade para que tivesse contemplado um estágio exclusivamente clínico, hospitalar e em centros de saúde. Responsável pela criação do IFA (Instituto de Formação Avançada) entendia, ainda, que para se exigir mais das equipas era importante especializá-las, isso fez com que os funcionários passassem a ter formação técnica superior.
Quem com ele trabalhou recorda que o dia começava cedo e que até o sol durar era dia de trabalho. Recordam também que ouvia jazz e música clássica enquanto trabalhava e emprestava discos aos seus colaboradores. Cumpridos os anos de direção, saiu rápido e cedo, dizem. Doze anos sem o encontrarem, hoje visitam-no e revisitam memórias conjuntas, mas lamentam que tenha saído assim.
O que o fez reformar-se ainda novo e o facto de ter ido embora sem uma celebração ou homenagem, ainda hoje é alvo de algumas dúvidas. Ficam as reflexões do próprio a quem não falta objetividade e precisão nos argumentos.
Claramente um homem reservado, o que o fez, ainda assim, candidatar-se à direção da sua instituição de sempre?
Prof. Martins e Silva: Eu pertencia a um grupo das Ciências Fisiológicas, um grupo de Professores que reclamava não ter as condições que eram necessárias. O hospital tinha crescido muito e havia várias carências, era preciso mais espaço e modernizar o que já existia. Com entendimento governamental, havia a possibilidade de uma construção, mais concretamente, um edifício próprio para as Ciências Fisiológicas. O projeto de Instituto das Ciências Fisiológicas teve vários “acidentes”, sofria atrasos sucessivos e de tal maneira assim foi que o tempo passou e acabou por desaparecer a verba, restando apenas um curto financiamento que permitira somente um estudo prévio de projeto, nada mais. Falando com o Diretor da altura, o Professor Torres Pereira, mostrei o meu descontentamento pela situação. Acho que nessa altura ele entendeu que eu podia ser uma boa ajuda para ele e como estava a precisar de um Subdiretor, nomeou-me. Eu aceitei com a condição de ficar com o pelouro do Instituto das Ciências Fisiológicas. Assim foi. Ele, entretanto, jubilou-se e eu candidatei-me a Diretor. E depois houve uma eleição curiosa…
Curiosa porquê, o que aconteceu?
Prof. Martins e Silva: Porque pela primeira vez houve três candidatos, os outros dois mais velhos e não eram propriamente nomes desconhecidos. Fui eu que fiquei e desenvolvi o trabalho que era preciso desenvolver.
Isso quer dizer que encontrou problemas?
Prof. Martins e Silva: Quando queremos implementar coisas há sempre outros interesses instalados. Não se justifica esmiuçar os obstáculos, mas somente os avanços conseguidos. Um dos meus primeiros atos como Diretor foi proceder ao lançamento da 1ª pedra do Instituto das Ciências Fisiológicas no local onde hoje se encontra, com a designação final, de Edifício Egas Moniz.
Com aquela cerimónia pretendi desbloquear um processo que se arrastava em prejuízo dos interesses da Faculdade, o que foi conseguido pela reativação do PIDDAC nos anos seguintes. Mesmo assim, o andamento processual foi lento: adjudicação do concurso internacional para a construção a ser concluída em três anos (1997); início da construção e nomeação da comissão instaladora (1998). O novo edifício, redenominado Edifício Egas Moniz (2004), foi oficialmente inaugurado pelo Primeiro-ministro Durão Barroso somente em 24 de Abril de 2004. No mês de Setembro seguinte foi considerado em condições para ensino e investigação, sendo então ensaiado um processo de gestão administrativa autónoma, que se revelou eficaz.
A par da construção e ativação do edifício houve muitas solicitações, internas e externas. Nas internas sobressaía o estado de degradação das instalações afetas à Faculdade, que desde a fundação em 1953/54, estavam integradas no edifício comum com o Hospital de Santa Maria. Gradualmente, procedeu-se à respetiva recuperação, além da construção de pequenos edifícios no “pátio dos alunos”. Em 1995 foi solicitada a intervenção da Reitoria da Universidade de Lisboa para, junto da administração do Hospital de Santa Maria, promover a definição do campus da FMUL na cerca comum (1995);o projeto “Campus da FML” foi aprovado e definido em 2004. Justificou-se, ainda, alguma reorganização administrativa, com a introdução de uma rotina de ações de formação e atualização do pessoal, a criação de novos gabinetes com funções específicas que integravam pessoal administrativo e acompanhamento por um responsável docente, a introdução progressiva de rede multimédia, com acesso limitado à Internet e Intranet (1996); Instalação progressiva da rede voz/dados/Internet a todas as unidades não clínicas do edifício comum (97 e anos seguintes), a introdução da Autoavaliação interna anual (1994), promover a definição do campus da FMUL na cerca comum (1995);
Entre as determinações exteriores, cabe destacar o início das Avaliações Externas, dinamizada pela Associação das Universidades Europeias (AUE) e por iniciativa da FMUL (patrocinada pela Fundação Luso-Americana), em 1997. Na altura, por iniciativa das quatro Faculdades de Medicina então existentes, e apoio das respetivas Reitorias, discutia-se, a nível nacional, que era preciso modificar o ensino médico. Por fim, foi publicado um decreto que estabelecia que as reformas no ensino seriam bastante acompanhadas pelo Governo, facilitando este, economicamente, as necessidades das instituições. Nesse sentido a FMUL preparou a intenção de um Programa de Desenvolvimento (1998). Seguiu-se a apresentação ao Grupo de Gestão em Saúde de nomeação governamental, de uma proposta para Apoio ao Desenvolvimento e Modernização da FML (2000); na sequência foi preparada uma Proposta de Contrato de Desenvolvimento do Ensino da Medicina (2001). Por fim, a Faculdade, através da Reitoria, assinou, em apresentação pública do Plano Estratégico para a Formação nas Áreas da Saúde, o “Contrato de Desenvolvimento para a Formação em Medicina na Universidade de Lisboa” (Dezembro de 2001) sendo, em 2002, designada uma comissão de acompanhamento pela FMUL. No Contrato de Desenvolvimento estavam previsto três edifícios. Um deles estava já em conclusão, fora suportado por verbas do PIDDAC, mas o Governo resolveu incorporá-lo do Contrato. Dos restantes dois edifícios propostos pela FMUL, e confirmados no Contrato, um destinava-se a realojar o histórico Instituto Bacteriológico Câmara Pestana (sendo redenominado Edifício Reynaldo dos Santos), enquanto o segundo, muito mais pequeno, instalaria a nova Biblioteca Central que precisava de condições suplementares, e reinstalaria o Instituto de Formação Avançada, dando-lhe acesso amplo à formação pós-graduada e contínua aos médicos que dela viessem a precisar. Deste edifício planeado ainda lá está delimitado o espaço. A condição implícita naquele Contrato de Desenvolvimento consistia na aceitação de mais alunos, como viria a suceder.
Entretanto, prosseguia o novo plano curricular da licenciatura em Medicina, iniciado para o 1º ano do curso (1995/96) e, sucessivamente, para os anos seguintes, até ao 6º,como estágio clínico profissionalizante (2000/01). Na pré-graduação há a destacar a colaboração internacional num bacharelato em Biotecnologia (de certo modo antecipador de futuras envolvências no âmbito do “Programa de Bolonha”), a organização nacional de dois novos cursos de licenciatura na área da Saúde (Nutrição e Microbiologia), a coparticipação (com o Instituto Superior Técnico) num curso em Engenharia Biomédica, ativado o suporte pedagógico à extensão do 1ºciclo do curso médico matriculado na Universidade da Madeira, e preparada a fase experimental para o ensino à distância, a ser iniciada em cursos de formação avançada promovidos pela FMUL.
Já nessa altura se falava da construção desse segundo edifício?
Prof. Martins e Silva: Sim. Já nessa altura havia um plano anterior, acordado com a Reitoria.
E estava na mira de servir que fins esse segundo edifício?
Prof. Martins e Silva: Serviria para investigação, também. Era intenção da Reitoria transferir o Instituto Bacteriológico Camara Pestana, que estava numa situação de grande limitação em pessoal e funções. Pretendia-se reverter a Instituição e convertê-la para este edifício novo. Este projeto foi todo adjudicado, como já referido.
E como tal havia, supostamente, verba?
Prof. Martins e Silva: Pois não, o problema foi esse. Prometiam-se e assinavam-se compromissos oficiais, mas depois surgiam as dificuldades orçamentais. (Nota: decorria o primeiro mandato do Eng. António Guterres enquanto Primeiro-ministro). Na verdade, só depois de eu já ter ido embora é que a Reitoria conseguiu a verba para fazer o edifício Bacteriológico Camara Pestana. O tal terceiro edifício nunca aconteceu mas talvez, quem sabe, ainda venha a suceder. Há sempre uma esperança e, como exemplo, temos o da construção do Hospital Escolar de Lisboa, em que foi preciso esperar cerca de 30 anos…
Entretanto reformou-se…
Prof. Martins e Silva: Sim, aos 63 anos, não queria continuar mais.
Porquê?
Prof. Martins e Silva: (Sorri) Sabe que eu acho que tive e tenho uma enorme capacidade de aguentar as coisas, mas há uma altura que temos de saber dizer que basta.
Uma das minhas frentes foi em relação ao Edifício. Este Hospital quando foi construído pretendia-se que fosse um hospital / faculdade e quem se mexeu para isso foi o Professor Francisco Gentil, um homem extraordinário que conseguiu resultados incríveis. Sabe que ele conseguiu junto de Salazar vender essa ideia de juntar hospital e ensino? E conseguiu. O Instituto de Oncologia, por ele antecipado desde a 1ª década do século XIX numa enfermaria de cirurgia, sob a sua direção do, então, Hospital Escolar de Santa Marta. Esse Instituto, despojado dos entraves diversos que existiram no projeto de Santa Maria, viria a ser inaugurado anos antes. Eu tenho os trabalhos dele, era um líder. A certa altura, e ao ler o que ele escrevia, percebi que se repetia muito com a ideia de que as pessoas, quando não estão à frente de algo, não querem que esse algo aconteça. E sistematicamente ele focava esta situação. O Professor Francisco Gentil, com a verba que o Governo concedera à Faculdade de Medicina de Lisboa, interveio na compra de uns terrenos que na altura eram a Quinta da Nazaré, onde agora está implantada a cerca do Hospital de Santa Maria. A construção do Hospital-Faculdade começou com a designação de Hospital Escolar de Lisboa e quando o hospital estava quase a ser inaugurado, o Governo fez sair um decreto em que o designava como Hospital de Santa Maria, alegando que, pela tradição, os hospitais tinham sempre nomes de santos. Até veio o Cardeal Cerejeira benzer a capela.
Houve um período em que os administradores do hospital tinham sensibilidade para a Faculdade. E eu confirmo isso daquilo que tenho estado a ler. O primeiro hospital escolar fora o de Santa Marta e quem o dirigia era a Faculdade, o administrador do hospital reportava ao diretor. Com o de Santa Maria já não foi assim. Inicialmente e durante muitos anos depois (até época mais recente) os professores catedráticos eram os naturais diretores dos serviços hospitalares, além de nomeados para comissões internas e direção clínica. Porém, deixaram de ser diretores do hospital, cabendo a administração exclusivamente ao Ministério do Interior e, posteriormente, ao da Saúde. A importância relativa da Faculdade no conjunto que integrava ressentiu-se destas modificações, gradualmente consolidadas por legislação dirigida, quase em exclusivo para a assistência médica a prestar pelos hospitais centrais, situação em que se encontrava o Hospital de Santa Maria. “Timidamente” surgiam umas referências ocasionais ao ensino médico prestado nos “hospitais escolares”, mas o que dizia respeito a esse ensino (orçamento, contratações de pessoal, eventuais apoios de âmbito logístico) cabia ao Ministério da Educação, embora “ausente ”prático da governação conjunta.
Houve uma altura em que possivelmente percebeu que contava com pouco apoio dos seus próprios pares…
Prof. Martins e Silva: Sim. Talvez houvesse algum interesse em que a Faculdade fosse mais calma, menos interventiva.
Mas contava-me que uma das suas frentes tinha sido a parte das novas construções, mas não foi só…
Prof. Martins e Silva: Outra das minhas frentes foi a reforma do ensino médico e isso também consegui implementar. A reforma tinha muitos obstáculos. Este hospital tinha sido construído para um total de 600 e tal alunos. Só. Ora, na altura do 25 de abril a Faculdade chegou a ter, só em alunos, mais de 4000 pessoas. Entravam todos porque não havia numerus clausus. Atualmente entram uns 370 ao ano. Mas este edifício Hospital-Faculdade foi construído a pensar em 90 alunos por ano, no primeiro ano podiam entrar uns cem ou um pouco mais porque depois haveria sempre os que desistiam. Mas isto significa que qualquer excedente, já ia dar problemas. Nos diversos trabalhos que escreveu sobre o assunto, o Professor Francisco Gentil alertou que não se daria a mesma atenção aos alunos e criar-se-iam potenciais riscos, quer na formação, quer no exercício médico. Chegámos a ter alturas em que havia doentes que se iam embora porque tinham um médico e dezenas de alunos a olhar para eles. Não fazia qualquer sentido.
Mas o Professor alertou para essa necessidade de se criar limites?
Prof. Martins e Silva: Exato e o que se fez foi subdividir o ensino das disciplinas clínicas, de modo a reduzir o número de alunos nas turmas de enfermaria. Faziam-se turnos. Fazia-se um ensino intensivo e rodavam as matérias por blocos. Mas havia oposição, porque tal significaria repetir matérias duas ou três vezes em cada ano. No entanto, aplicou-se esta medida, mas parece que depois da minha saída voltou a ser como era. Reimplementei, também, desde 2000/2001, o estágio clínico no 6º ano (como estágio clínico profissionalizante) até então um ano de ensino normal com aulas teóricas e práticas. As disciplinas que eram do 6º ano foram redistribuídas ou reconvertidas para anos anteriores, o que criou necessidade de remodelar todo o sistema. Claro que isso causou problemas adicionais. Através de sucessivas reuniões de ano com os regentes e coordenadores das disciplinas clínicas, tal como sucedera com as disciplinas básicas e pré-clínicas, e a preciosa colaboração das comissões de acompanhamento e de avaliação curricular, as coisas lá se iam fazendo.
Deparamo-nos com outro problema, é que chegando ao estágio era impossível fazê-lo todo aqui porque não havia lugar para todos, pelas razões atrás referidas. Por outro lado, era importante que a formação prática decorresse em vivência com outras experiências clínicas em outras instituições hospitalares e, também, no que cabia à saúde comunitária, em centros de saúde. Então, a grande revolução foi acordar a colaboração (diga-se, entusiástica e participativa) de hospitais e centros de saúde, sobretudo integrados nas Associações Regionais de saúde do distrito de Lisboa, sul do Tejo e Ilhas. Mas os pais e os alunos não reagiram muito bem à ideia de uma saída temporária de Lisboa. Paralelamente, houve coisas muito positivas, nomeadamente o empenho das autarquias que disponibilizaram casas e alimentação, sentiam que as suas cidades iam ser dinamizadas e daí mobilizarem-se tanto. Havia uma caderneta que os alunos tinham como orientação para os aspetos concretos da aprendizagem clínica que lhes era exigida, a ser certificada pelos seus orientadores de estágio. Era um sistema de um para um (médico e aluno). Havia uma “máquina” montada que informava ao aluno onde ia começar o estágio, em que dia, quais os seus orientadores e, por estes, as informações sobre o seu rendimento.
Mas qual foi o problema disto? Um problema de Ministérios. Os médicos estavam motivados e acreditavam que estavam a contribuir para o crescimento destes alunos, mas esse trabalho adicional não lhes era pago. Acabavam por estar sobrecarregados. Ainda se conseguiu que eles tivessem um cargo, alguns de “Professor voluntário”, mas começava a haver alguns entraves.
Por fim, o Presidente do Conselho de Administração do Hospital de Santa Maria, que coincidiu com o meu último ano de mandato, foi uma figura demasiado negativa para os interesses da Faculdade. Viria a ser substituído ao fim de um ano polémico. Por exemplo, rompendo com a tradição de sempre, não convidou a direção da Faculdade para a cerimónia de aniversário do Hospital, com a presença do Dr. Jorge Sampaio, então Presidente da República. Entendi que não devia fazer-me convidado, pelo que não compareci. A ausência não foi bem aceite por parte de alguns colegas, cuja intervenção costumava flutuar ao sabor dos seus próprios interesses.
Mas cumpriu o seu mandato de Diretor até ao fim?
Prof. Martins e Silva: Sempre. Só não me recandidatei. Mas cumpri o meu grande e inicial propósito que foi concretizar a edificação do Instituto das Ciências Fisiológicas, inaugurado em 2004. A missão cumprida deu-me um dos argumentos para sair. Dos outros não falo.
Dizem-me que se foi embora de uma forma discreta e silenciosa. E sem uma homenagem.
Prof. Martins e Silva: É verdade, não houve homenagem… quero pensar que resultou do precedente de alguns anteriores professores que saíram antes de tempo, pelo que a partir daí nunca houve muitos afagos a quem tenha decidido sair por iniciativa própria.
Acha que tiveram essa interpretação de abandono precoce? “Virou-nos as costas antes de tempo e por isso não lhe mostramos a gratidão devida”.
Prof. Martins e Silva: Talvez…
Por onde andou depois da sua saída?
Prof. Martins e Silva: Mas sabe que não me afastei totalmente, eu era Professor convidado do Técnico, no âmbito da licenciatura conjunta em Engenharia Biomédica. Ainda mantive essa ligação durante três anos, até 2008, vinha aqui a esta Faculdade dar as aulas de metabolismo e endocrinologia que decorriam no Egas Moniz. Depois, fui para “outros mundos”. Eu tenho diversos interesses, um deles é o de pintar, o que permitiu recuperar uma prática precocemente suspensa nos meus anos 20. Outro hobby é o da história da medicina e temas contextuais em cada época. Já fiz e publiquei vários trabalhos. Há cerca de 10 anos que leio e escrevo sobre a História da Medicina no Médio Oriente. Até tenho um trabalho pronto para publicação nos EUA, faltam pormenores de acerto bibliográfico. Mas, suspendi ambos para ver adiantar um trabalho sobre alguns aspetos centrais da história da Faculdade até 1955.
Quando é que o Professor Fausto lhe lança este desafio para escrever sobre a História desta Instituição?
Prof. Martins e Silva: Encontramo-nos na inauguração da Biblioteca nova e tínhamo-nos visto dias antes porque tinha vindo oferecer um livro que tinha publicado - “Sobre a circulação do sangue e anotações cardiovasculares: comentários a um livro do século XVIII”. Falamos um pouco e foi nessa altura que o Professor Fausto me disse que a Faculdade devia ter um livro sobre a sua História. Como eu já andava a fazer umas pesquisas sobre documentos do hospital escolar, acabei por aproveitar já parte da informação e por isso agora estou aqui a ler e a pesquisar mais documentos.
E agora que tem estado cá, voltou a reviver algum do entusiasmo passado?
Prof. Martins e Silva: (Fica a pensar) Sabe que voltar atrás implica reviver e há coisas que não são agradáveis. Enquanto uma pessoa está afastada não pensa mais e depois quando volta lembra-se de uma pessoa, ou de outra, de este ou aquele momento e nem tudo é agradável… Mas há outras coisas que são.
E agora estou neste livro e é nisto que me quero empenhar e para chegar até ao fim, tenho de fazer as coisas bem.
Escreve livros sobre a História da Medicina, das Instituições. Se escrevesse sobre a sua vida omitiria algum dos seus capítulos?
Prof. Martins e Silva: Eu nunca apago nada. Defendo muito a transparência. Sendo coisas más ou boas, sabemos que nunca fizemos tudo bem, mas é esse conjunto de coisas que nos forma e pela qual pagamos. Não, não apagaria nada!
Joana Sousa
Equipa Editorial