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Quando se começa a ser Pediatra – Os primeiros passos de um médico interno
É nas urgências da Pediatria do Hospital de Santa Maria que encontramos Mafalda Castelão, médica interna, e com a fibra necessária de quem ainda agora começou o longo caminho da Pediatria.
Ex-aluna da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, seguiu as pisadas do Hospital de Santa Maria pela complexidade e desafio clínicos.
Encontramo-nos nas urgências da Pediatria onde me mostra parte das urgências, como uma anfitriã na sua casa, a sala de reanimação, os desenhos pintados nos corredores que pretendem amenizar a relação com os seus pequenos doentes.
O objetivo da nossa conversa foi perceber os primeiros passos, de um longo caminho, de um médico interno.
Porquê a escolha da Pediatria?
A Pediatria como especialidade acabou por ser um processo muito natural. Dentro de todas as especialidades médicas, era a que me suscitava maior entusiasmo pela diversidade de patologias que abrange, pela riqueza da semiologia pediátrica e pela possibilidade profissional de subespecialização em diversas áreas médicas. A primeira vez que senti o fascínio da Pediatria foi durante a faculdade, quando acompanhei uma criança com Doença de Kawasaki (doença febril, de inflamação dos vasos sanguíneos), durante o internamento. No momento da alta era uma criança completamente diferente daquela que entrou na urgência 6 dias antes, a rir e a correr pelos corredores. O potencial de recuperação das crianças é verdadeiramente extraordinário e penso que isso preenche um lado da prática médica que influenciou bastante a minha escolha.
Como vem parar a Santa Maria e qual é a realidade que se vive aqui?
Eu estudei na Faculdade de Medicina de Lisboa e, portanto, já conhecia um pouco o Hospital de Santa Maria, as suas equipas e as suas valências. Acho que o internato médico é um percurso crucial que define em muitos aspetos os médicos que vamos ser quando especialistas. Por isso, para mim era fundamental escolher um hospital com prestação de cuidados diferenciados e com atividade académica.
O dia a dia de um interno neste hospital é muito rico. Estamos expostos a uma grande diversidade de patologias, mas ao mesmo tempo encontramos doenças extremamente raras que muito provavelmente não teríamos a oportunidade de conhecer noutros hospitais. Temos Unidades e Pediatras extremamente especializados, com quem trabalhamos lado a lado e com quem aprendemos diariamente. Temos uma Unidade de Cuidados Intensivos Pediátricos com know-how e técnicas que são, neste momento, únicos no nosso país. Este contacto diário com os especialistas e com as unidades enriquece em muito o internato e acredito que nos forma melhores especialistas no futuro, com um percurso sólido e maduro.
Por outro lado, o Hospital está integrado num Centro Académico, o que é uma mais-valia para qualquer interno. Fazer investigação de forma complementar à formação clínica é, sem dúvida, um desafio, mas acho que é uma parte fundamental do crescimento profissional de um jovem médico. A atividade científica não é apenas complementar à atividade médica, pelo contrário, influencia a forma como aprendemos e como praticamos medicina. No entanto, ninguém faz ciência sozinho e não é possível para um interno fazer investigação se não estiver integrado em equipas, em departamentos e, em última análise, num hospital que compreenda e que promova essa atividade de investigação clínica.
O mesmo pensamento aplica-se à formação e ao ensino, e também nestas áreas o Hospital e o Internato Médico têm muito para oferecer. Apesar de ter iniciado a especialidade apenas há poucos meses, já tive oportunidade de receber e de dar formação, bem como de integrar equipas e projetos de investigação com projeção na medicina nacional e internacional, o que é realmente um privilégio no percurso de um interno de Formação Específica.
No que diz respeito à formação, infelizmente, o Departamento de Pediatria é ainda o único departamento clínico que faz urgência externa e ao qual o Hospital não disponibiliza formação em Suporte Avançado de Vida – uma formação fundamental para todos os internos que recebem doentes críticos diretamente da rua. Ao contrário do que se possa pensar, a formação em Suporte Avançado de Vida Pediátrico não aborda apenas técnicas de reanimação e desfibrilhação, mas abrange situações graves que são extremamente comuns em Pediatria, como a dificuldade respiratória aguda (asma, bronquiolite, aspiração de corpo estranho), o choque cardiovascular e alterações cardíacas que requerem intervenção imediata. Estas ferramentas são essenciais para quem trabalha no Serviço de Urgência Pediátrica e, infelizmente, esta é uma lacuna importante no nosso programa de formação de internos.
Como é que se lida com um paciente que raramente fala das suas queixas?
Um dos aspetos, para mim, mais fascinantes da Pediatria é precisamente a forma como fazemos a avaliação de uma criança doente. Há uma sensibilidade clínica, que se treina, na forma como se olha para uma criança e como se consegue, nos primeiros 5 segundos, identificar o sistema envolvido e avaliar a gravidade da situação, seja num recém-nascido que não demonstra objetivamente as suas queixas, seja num adolescente, que pode queixar-se, mas nem sempre de maneira direcionada. Penso que sim, passamos a compreender os sintomas de forma diferente ou, pelo menos, menos linear. E depois, temos toda a semiologia, que é muito rica na idade pediátrica e que revela muito sobre a doença e a sua gravidade.
A partir de que fase da formação académica e clínica é que um médico se sente capaz de exercer a sua atividade?
Não sei se existe um momento em que nos sentimos verdadeiramente 100% capazes. Acho que é um processo. Há um percurso no qual vamos adquirindo conhecimentos e vamos acumulando confiança com a prática e com a observação. Mas é um percurso que não sei se tem propriamente um fim, porque há sempre conhecimentos novos para aprender ou, no mínimo, para atualizar. E é isso que é desafiante na medicina.
Se olharmos para diferentes gerações de Pediatras uma coisa que se sente é que os mais novos combatem muito mais a administração de antibióticos e os mais velhos acham que o organismo das crianças é frágil demais para combater “sozinho” uma infeção. Quando é que se sabe que chegou a altura de ver no antibiótico um amigo?
Os antibióticos são, sem qualquer dúvida, “amigos”. A descoberta da penicilina foi um dos maiores avanços na história recente da humanidade e a utilização de antibióticos é, provavelmente, ainda a medida com maior impacto na redução da mortalidade, em todo o mundo, todos os dias. O que nos é incutido, e muito bem, é a administração racional de antibióticos, ou seja, utilizar o antibiótico nas situações certas e com a dose, frequência e duração corretas. Na Pediatria, há duas questões que se levantam com a utilização de antibióticos. Uma é compreender que febre não é sinónimo de infeção bacteriana, o que nem sempre é uma informação simples para passar a todos os pais. Mas penso que cada vez mais se vai diluindo a dúvida dos pais e cabe-nos a nós, profissionais de saúde, transmitir essa informação aos cuidadores sempre que houver oportunidade, no sentido de educar e de aumentar a literacia funcional da nossa população para a saúde. Em segundo lugar, enquanto prescritores de antibióticos em idade pediátrica, temos de ter a consciência da problemática real do desenvolvimento de resistências aos antibióticos. Por um lado, as crianças têm maior risco de desenvolver resistências porque são mais vulneráveis a infeções bacterianas do que os adultos saudáveis, o que as expõe a um maior número de ciclos de antibióticos durante a vida. Por outro lado, em termos populacionais, estamos a influenciar o perfil de resistências a longo prazo, o que é preocupante porque existem muito poucas alternativas em termos farmacológicos e um número muito reduzido de novos antibióticos a serem estudados neste momento.
Joana Sousa
Equipa Editorial