Reportagem / Perfil
Professora Ana Isabel Lopes - Entrevista

Seria fácil pedir-lhe que descrevesse o seu percurso académico e profissional até chegar aqui. Escolheu a especialidade de Gastro dentro da Pediatria. Mas o que a fez seguir este caminho?
É-me difícil sumarizar em poucas palavras tantos anos de trabalho, mas devo dizer, que é com o maior orgulho que assumo um percurso académico e profissional centrado na grande Escola que para mim foi e continua a ser a Faculdade de Medicina de Lisboa e o Hospital de Santa Maria. E reconheço-o independentemente de outros válidos contributos formativos externos, tais como estágios em centros internacionais de referência que tive oportunidade de realizar. Quer como aluna de Medicina, jovem interna de Pediatria ou pediatra-docente-investigadora, tive o grande privilégio de conhecer e ser discípula de grandes Mestres e referências da Medicina de hoje e de sempre. Pessoas de exceção e influências determinantes que me deixaram o forte imprinting do seu saber, espirito visionário, praxis e exemplo. Destaco, entre muitos outros, em diversos contextos e estádios formativos, os Professores A. Torres Pereira, M. Diaz Gonçalves, M. Lurdes Levy, J. Salazar de Sousa, J. Gomes Pedro, F. Coelho Rosa, Rui M. Victorino.
A convite do Professor Torres Pereira iniciei a atividade docente ainda aluna do 4º ano de Medicina, como Monitora na disciplina de Microbiologia do 3º ano do Curso de Medicina, no saudoso Instituto Camara Pestana, prosseguindo depois como Assistente Convidada ao longo de 11 anos. Iniciada numa fase precoce da minha carreira no âmbito de uma disciplina pré-clínica, considero-a uma das mais importantes experiências profissionais, determinante na aquisição de sólida experiência pedagógica (ensino TP e P). Destas vivências guardo saudosas lembranças: a elevada interatividade com os alunos nas aulas práticas com gratificante feed-back, o excecional ambiente de toda a equipa do Instituto (docentes, discentes, técnicas de laboratório).
Assumi desde o início os desafios de uma carreira “híbrida”, exercida integralmente, num exigente e difícil equilíbrio de interesses, pressupondo um verdadeiro espírito de missão nas três frentes indissociáveis: ensino, assistência e investigação. Uma vez concluído o curso de Medicina, percorri em paralelo todas as etapas de ambas as carreiras (hospitalar e académica), embora privilegiando nos primeiros anos, claramente a carreira hospitalar, face às elevadas exigências da especialização (5 anos) e subespecialização pediátrica (3 anos); foi possível dar ênfase subsequentemente à carreira académica, designadamente após o doutoramento.
A atividade desenvolvida decorreu em períodos de grandes mudanças, com impacto no conhecimento clínico-científico, na organização dos sistemas de saúde, na prática clínica e nos modelos de ensino. Se a Medicina clínica foi sempre para mim uma inquestionável vocação, a Pediatria foi uma paixão. Não tive dúvidas na escolha da especialidade abrangente que é a Pediatria (foi o que me atraiu, ser uma verdadeira “Medicina Interna” com vários cenários potenciais de subespecialização). Não tive dúvidas na escolha do Serviço de Pediatria do HSM para a realização do internato, cujo modelo de organização (departamentação com unidades diferenciadas) foi verdadeiramente pioneiro a nível nacional. Ao longo do internato que é longo, quase todas as áreas da Pediatria hospitalar me fascinavam, mas sobretudo as que envolviam uma componente técnica, como a Gastrenterologia e a Neonatologia (ambas em fase de grande expansão). Neste período tive a oportunidade de realizar estágios opcionais, designadamente nas áreas de Neonatologia e Cuidados Intensivos: Special Care Baby Unit, John Radcliffe Hospital, Oxford; Community Paediatric Department, Radcliffe Infirmary, Oxford, Urgência de Neonatologia, Serviço de Pediatria do Hospital S. Francisco Xavier, Escala de Cuidados Especiais Pediátricos (HSM), Escala do 1º Subsistema Nacional de Transporte do Recém-Nascido em Risco (HSM). Após concluir a especialização em Pediatria, de entre as várias possibilidades de escolha, optei convictamente pela Gastrenterologia, na sequência do convite para integrar o quadro da Unidade de Gastrenterologia por parte do Professor J Salazar de Sousa (Diretor do Serviço de Pediatria), o fundador da Gastrenterologia Pediátrica Portuguesa e uma das suas grandes referências a nível internacional. Na Unidade de Gastrenterologia, primeira escola nacional de Gastrenterologia Pediátrica e centro de referência nacional, adquiri formação e experiência em todas as suas vertentes (Gastrenterologia, Hepatologia e Nutrição, Técnicas Endoscópicas, Biopsia Hepática, Phmetria). Completei a formação com estágio de um ano em Hepatologia/Transplantação Hepática na Université Catholique de Louvain (Cliniques S. Luc, Bruxelas) (um dos maiores centros internacionais). Realizado numa fase em que se iniciava o transplante hepático em Portugal, foi marcante no meu percurso (primeira pediatra nacional com competência nesta área), proporcionando-me treino diferenciado e exposição a um modelo organizativo clínico e investigacional de excelência.
Nos anos subsequentes realizei todas as etapas formais da carreira hospitalar (Concursos para Provimento como Assistente Hospitalar com Perfil, Assistente Graduado, Titulação como Gastrenterologista Pediátrica pela Ordem dos Médicos e Concurso para Chefe de Serviço de Pediatria). A Gastrenterologia Pediátrica é hoje uma subespecialidade fascinante, muito dinâmica, com múltiplas subáreas de interesse clínico, técnico e investigacional. A minha intervenção como Coordenadora da Unidade tem a privilegiado diferenciação técnica e clínica dos elementos da equipa em todas as suas áreas de intervenção (Gastrenterologia, Hepatologia e Nutrição). Tem sido um trabalho extremamente exigente, com responsabilidade assistencial direta por todos os setores: o Internamento, Consultas várias, Hospital de Dia e Técnicas, adicionalmente à Chefia de Equipa de Urgência Pediátrica até 2012 e desde então Escala de Prevenção em Endoscopia Digestiva Pediátrica (que criei, sendo a única na zona sul do país). Exerço também as funções de Coordenadora e de gestão clínica de outra Unidade Funcional do Departamento de Pediatria, a Unidade de Técnicas. É uma Unidade verdadeiramente pioneira no seu género a nível nacional em Pediatria, que tem como missão a realização de procedimentos de diagnóstico/terapêutica em ambiente pediátrico de acordo com os mais elevados padrões.
Entretanto, voltando ao plano académico, após iniciar o internato de Pediatria, transitei do ensino da disciplina de Microbiologia para o ensino das disciplinas de Pediatria, inicialmente como Assistente Convidada e após o Doutoramento como Professora Auxiliar; só anos mais tarde, após a realização do concurso para Chefe de Serviço de Pediatria, assumindo a coordenação de duas Unidades Clínicas/ centros de referência (Unidade de Gastrenterologia Pediátrica, Unidade de Técnicas de Pediatria), me seria possível retomar as etapas seguintes da carreira académica: Provas de Agregação, Professor Associada e mais recentemente Professora Catedrática. O exercício da docência não é uma competência inata, nem derivada exclusivamente da experiência profissional. Exige um percurso persistente de contínuo trabalho, incluindo formação, atualização, estratégia e inovação pedagógica. Sob princípios e diretivas orientadores, fui moldando um estilo próprio e até intuitivo de ensino, resultante de autoaprendizagem e contínua procura de abordagens atrativas e eficazes. A atual mudança de paradigma de modelos educacionais face à complexidade dos desafios atuais no ensino médico (excessivo número de alunos, os condicionalismos hospitalares,..), impõem também na nossa Escola, a necessidade de reestruturação ensino clínico, envolvendo toda a Escola. Neste contexto, é difícil missão repensar a organização curricular de uma Disciplina Clínica, preservando o desejável equilíbrio entre mudanças conjunturais e necessidade de estabilidade pedagógica. No plano conceptual, os modelos predominantemente biológicos da doença foram substituídos por modelos holísticos e ecológicos (modelo biopsicossocial), integrando variáveis epidemiológicas, psicológicas e socioculturais, valorizando múltiplos co-determinantes da saúde e da doença. A Medicina é cada vez mais centrada no doente e menos na doença. Todos estes fatores têm impacto decisivo no ensino médico pré e pós-graduado. O futuro médico “pluripotencial” deverá ter uma formação global nas perspetivas, clínica, cientifica, humanista, bem como em comunicação, gestão em saúde, ensino e investigação.
O Ensino Pré-Graduado da Pediatria tem em consideração as caraterísticas da Pediatria como medicina de grupo etário e os princípios orientadores da Educação Médica, integrando duas vertentes fundamentais: a de Saúde e Bem-estar e a de Doença. Mas o principal desafio residirá na adequação e aplicabilidade prática de um programa à realidade institucional e nacional, refletindo trends emergentes. O modelo de ensino dependerá sempre de variáveis como o número de alunos, a carga horária possível, o espaço disponível para o ensino, as caraterísticas dos serviços clínicos, o número e disponibilidade dos elementos do corpo docente. Como Regente da Disciplina de Pediatria do 5º ano, em articulação com a Coordenação da Disciplinas e com os inputs de docentes e alunos, tenho promovido adaptações evolutivas no ensino, refletindo mudanças conjunturais e visando sempre elevados standards. Salientaria: o incremento da exposição clínica (qualitativa e quantitativa) do aluno, incluindo maior numero de aulas práticas e teórico-práticas; a melhoria dos ratio docente/discente (redução do numero de alunos por turma, envolvimento crescente no ensino dos hospitais afiliados); o aumento percentual de aulas práticas/ teórico-práticas baseadas em casos clínicos e na discussão de problemas; a descentralização e promoção do ensino em contextos e cenários clínicos diversificados, a utilização de estratégias, metodologias e técnicas de ensino diversificados e propiciadores de maior exposição e treino clínicos do aluno (incluindo aulas vídeo-gravadas, aulas teórico-práticas de urgência, aulas com modelos/simulação).
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Como tem conciliado a atividade clínica com a académica, não deve ser fácil?
De facto, nunca foi nem será fácil.
Abreviando: trabalho, trabalho, trabalho……..e também,…… organização e boa gestão do tempo.
Ao longo destas etapas, os desafios e exigências têm sido inevitalmente crescentes, tanto ao nível assistencial, como da investigação e da formação médica (Pré/Pós-Graduada), ao assumir, por exemplo, em determinada altura, as regências de várias disciplinas (Introdução à Medicina da Criança e da Família, Pediatria Módulo VI II, Disciplina Optativa de Pediatria), a Coordenação do Núcleo de Investigação do Departamento de Pediatria, a Presidência de uma Sociedade Científica e last but not least, a atividade de investigação. De facto, a curiosidade e gosto pela pesquisa científica, a par dos desafios e incertezas inerentes à profissão médica, incentivaram-me precocemente para o envolvimento na investigação clínica. Os anos de intenso estudo, trabalho e vivências clínica e académica, apesar das reconhecidas vicissitudes perante a (ainda) indefinição de um modelo institucional para o docente clínico e investigador, têm sido extraordinariamente gratificantes. Na sequência do doutoramento na área da infeção pediátrica por Helicobacter pylori e integrada como Investigadora Convidada na Unidade de Imunologia Clínica do IMM, tenho dedicado particular interesse à área da imunopatologia da mucosa gastrointestinal e interação bactéria-hospedeiro humano. Neste contexto e com o objetivo de validação de técnicas específicas de identificação de H.pylori e de imunohistoquimica em material de biopsia, estabeleci então protocolos de colaboração com grupos de referência nacionais (Serviço de Anatomia Patológica do HSM, INSA) e internacionais (Bordeaux) e realizei estágios e visitas de estudo em centros de referência (Gotemburgo, Bordeaux, Instituto Gulbenkian de Oeiras), que seriam decisivos para a prossecução dos projetos em curso.
Como Médica que nunca interrompeu a atividade clínica, considero o meu percurso de investigação ilustrativo de um modelo não ideal de desenvolvimento científico de um investigador clínico. Confrontei-me, de facto, com constrangimentos na conciliação da exigente formação do internato de especialidade e atividade docente, com a prática da investigação. Esta só viria a ser possível após conclusão do treino de especialidade. Iniciei então o projeto de Doutoramento na minha área de interesse, obtendo financiamentos do Ministério da Saúde. Vivenciei como outros colegas, através da experiência pessoal, as dificuldades inerentes à necessidade da obtenção prospetiva de casuística própria representativa e de material biológico (inexistência à data de biobanco), bem como a inexistência de tempo protegido para investigação (muito trabalho “after hours”). Este modelo de investigador-médico ("an endangered species", como referia Wyngaarden), além do mais “free-lancer”, semelhante ao de muitos outros clínicos da minha geração, é inaceitavelmente longo e dificilmente compatível com o desenvolvimento de projetos de investigação internacionalmente competitivos; considero no entanto importante a experiência e maturidade clínica para o desenvolvimento autónomo de investigação clinica. Presentemente o cenário é bastante mais favorável, dispondo as instituições hospitalares de incentivos para fomento da atividade de investigação e de alguma flexibilidade institucional para não desperdiçar vocações. São disso exemplo o regulamento do interno-doutorando, bem como iniciativas das universidades e de fundações privadas, visando proporcionar qualificação científica avançada às novas gerações de médicos.
Ao longo de toda a minha carreira, parte substancial da atividade tem sido dedicada também ao ensino pós-graduado. Esta componente da vida académica tem decorrido em diversos contextos, incluindo participação em Mestrados, Programas de Doutoramento, Cursos e Formação Avançada, Sessões Formativas do Serviço. Inclui ainda o apoio e supervisão na apresentação/publicação de trabalhos (comunicações livres, publicações incluindo revisões de casuística, casos clínicos e trabalhos originais), bem como a formação integrada de Internos de diversos graus, do Internato Específico e do Internato do Ano Comum, de Assistentes Hospitalares, adicionalmente a Tutora de Estágio profissionalizante do 6º ano. Tem constituído ainda um privilégio ser Orientadora de Formação do Internato Específico de Pediatria desde 1999, a convite dos Internos. Paradigma por excelência do papel do Mentor clínico, orientando como role model o percurso global do interno, tem sido uma atividade exigente na tripla vertente assistencial, formativa e de investigação, mas muito estimulante e gratificante.
Sendo todas estas atividades complementares e sinérgicas e potenciando-se reciprocamente, persiste alguma frustração pessoal neste modelo de carreira académica: a dificuldade em manter o desejável ritmo regular de produção científica. De facto, as múltiplas e absorventes atividades concorrenciais, reduzem significativamente o tempo dedicado (apesar da acumulação de elementos clínico-científicos relevantes para publicação). O envolvimento precoce de jovens internos, jovens especialistas e alunos, em projetos de investigação dos serviços (inseridos ou não em Programas Doutorais ou em Ciclos de Estudos Especiais), será determinante para o desenvolvimento da investigação clínica. Fui e serei sempre uma clínica a tempo inteiro, independentemente da minha dedicação paralela ao ensino e investigação. Gostaria por isso de salientar o contributo fundamental que no meu caso teve e continuará a ter a atividade assistencial e a experiência clínica acumulada ao longo de muitos anos. Com toda a sua exigência, riqueza e diversidade, constitui a base nuclear de toda a minha atividade académica, fomentadora e propiciadora da qualidade no ensino, das questões investigacionais, do desenvolvimento de projetos de investigação clinica/translacional e da produção científica.
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Regente de Pediatria na Faculdade, é a Coordenadora Pedagógica de todo o 5º ano do curso. À medida que os alunos ganham conhecimento científico, tornam-se mais exigentes com o Professor?
É previsível que assim seja, atendendo não apenas ao ganho cumulativo de conhecimento, mas igualmente de aptidões, de competências e sobretudo de maturidade intelectual e clínica, desde o início ao final do curso. A formação dos futuros médicos como elementos ativos, críticos e empáticos da sociedade começa no estádio pré-profissionalizante. Através de uma educação transformadora baseada na cultura de profissionalismo, o aluno desenvolverá gradualmente capacidades relacionais (e não só comunicacionais), uma atitude ética, mas igualmente um compromisso de responsabilidade e de exigência/excelência na sua aprendizagem e na sua prática. No plano do conhecimento científico, a integração no curriculum pré-graduado dos avanços da medicina e de oportunidades de investigação, promoverá uma perspetiva mais abrangente e crítica, incentivando por exemplo precocemente a emergência do perfil de médico-investigador.
De facto o Ensino da Medicina, simultaneamente uma preparação universitária e uma formação profissional, é exemplarmente representativo do papel da Universidade na inspiração de médicos de exceção e futuros líderes. O commitment das Faculdades de Medicina é fulcral na construção da identidade do futuro médico e de um percurso profissional individual. Aliás a Escola no seu todo, incluindo fatores “ecológicos” (valores, cultura, comportamentos -“o espírito da escola”), representa um verdadeiro role model no ensino, na prestação de cuidados e na investigação, num ambiente de compromisso individual e coletivo. Neste contexto gostaria de enfatizar os notáveis contributos e meritório desempenho dos nossos alunos para as diversas atividades da Escola, integrando com elevado brio, competência e proatividade os respetivos órgãos (de que são exemplo, entre outros, os inquéritos de satisfação relativamente ao ensino). Contributos igualmente bem ilustrados no portfolio de iniciativas e atividades da Associação de Estudantes da FMUL, que muito orgulhará a nossa Escola. Estes aspetos são extremamente importantes, como fatores promotores do progresso educacional, quer na perspetiva da docência, da investigação ou das atividades de gestão académica institucional.
Pessoalmente, o exercício de Regência da disciplina nuclear (Modulo VI II) e Optativa de Pediatria do 5º ano, bem como de funções de gestão académica, designadamente no Conselho Pedagógico (até 2017), na Coordenação Pedagógica do 5º ano e na Comissão de Implementação do Ensino Clinico, em constante interface e dialética com os alunos (Comissões de Curso, Comissões de Ano, etc), têm constituído exigentes e estimulantes desafios, no equilíbrio entre o desejável e o possível. Num processo de permanente reflexão e diálogo institucional com todos os stakeholders (docentes, discentes, elementos dos secretariados e de outros órgãos de gestão da faculdade), são criadas sinergias imprescindíveis à melhoria contínua do processo educacional e ao fomento do espírito da Escola. Relativamente às Disciplinas de Pediatria (integrando 3 Disciplinas do Currículo Nuclear, o Estágio Clinico Profissionalizante e 2 Disciplinas do Currículo Optativo), envolvem um elevado número de alunos (superior a 1300 em 2017, incluindo alunos do Programa Erasmus) e de docentes. O seu bom funcionamento requer elevada organização e neste contexto, cumpre-me destacar a competência e o excecional trabalho desenvolvido ao longo dos anos pela responsável pelo secretariado das Disciplinas, Paula Belmonte (BAD-FMUL), tanto no apoio ao Ensino Pré como Pós-Graduado.
Gostaria também de reforçar a importância atual de um core formativo pediátrico sólido na fase pré-graduada para a atividade do futuro médico, sobretudo face à reestruturação das carreiras médicas com a preconizada transição do aluno do estágio profissionalizante para o internato específico. Poderá estimar-se que uma elevada percentagem dos futuros médicos terá envolvimento na prestação de cuidados em idade pediátrica (como pediatras, MGF). No ensino da Pediatria, os outcomes, modelos e estratégias educacionais deverão refletir a dinâmica evolutiva vertiginosa dos conhecimentos fundamental e clínico, da evidência em ciências de educação, da organização das estruturas de saúde e necessidades das populações. A evolução da patologia e da organização dos cuidados por exemplo, tem importantes implicações na formação pré-graduada. De facto, a nível de um hospital terciário, por definição, a prestação de cuidados é de natureza complexa, transdisciplinar, refletindo a contribuição major da doença crónica. Dificilmente o aluno terá oportunidade de contactar com o amplo espectro da normalidade; para exposição à diversidade de patologias nos diversos grupos etários pediátricos, os condicionalismos referidos impõem um elaborado e rigoroso planeamento de conteúdos, metodologias e cenários de ensino, de modo a corresponder aos objetivos formativos. Por último, tem sido também muito gratificante e informativo, o contacto com os alunos no âmbito da realização do Trabalho Final de Tese de Mestrado (orientação, júri). Constituiu igualmente um trabalho de equipa muito produtivo a elaboração com dois discentes de uma proposta de Mentoring para a FMUL. Admito que os Programas Académicos de Mentoring no ensino médico, com forte envolvimento dos alunos, possam vir a ter um papel na formação pré-graduada e na criação de modelos educacionais, como instrumentos essenciais ao processo de desenvolvimento pessoal e profissional.
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Qual a importância de pertencer à Comissão de Ética? Conseguem-se implementar ideias e mudar valores?
As Comissões de Ética (CEs) hospitalares e de Centros Académicos, constituem sem dúvida importantes pilares institucionais na nobre missão da salvaguarda de valores éticos, deontológicos e humanistas, inerentes ao exercício das atividades assistencial, docente e de investigação, como exemplos de integridade, rigor e excelência. No entanto, o seu atual âmbito de intervenção é muito mais abrangente do que se poderia supor “à priori”, incluindo não apenas as funções consultiva e normativa, mas sobretudo reflexiva e “educativa” num sentido lato. As temáticas do foro bioético, de crescente complexidade face à vertiginosa evolução do conhecimento técnico-científico, de modelos/ sistemas de saúde, de práticas clínicas e de investigação (cada vez mais “antecipatórias” de paradigmas socioculturais emergentes e vice-versa), exigem necessariamente novos “olhares” e abordagens no processo de decisão de questões/dilemas éticos e conflitos de valores (e no desenvolvimento de normas reguladoras). Neste sentido, o atual papel das CE, pressupõe uma grande abertura à realidade contemporânea das sociedades em que se inserem, refletindo a(s) mudança(s) emergente(s) e podendo reciprocamente ser determinante e inovador na sua promoção.
A Comissão de Ética do CAML/HSM-CHLN, integrando elementos com diferente background, expertise e perspetivas (sua grande riqueza e mais valia), é por excelência um fórum privilegiado de amplo diálogo intra e inter-institucional, de reflexão e decisão bioética, num modelo exemplar verdadeiramente transdisciplinar, extravasando largamente as funções de natureza técnica. A nível pessoal, a atividade na Comissão, tem-me proporcionando uma perspetiva “no terreno” muito ampla e realista dos dilemas éticos atuais e contextos inerentes à prática de investigação em diversas áreas do conhecimento (e não apenas pediátrica), suas virtualidades e condicionalismos. Acima de tudo, tem sido uma experiência profissional e humanística única e um exercício de permanente aprendizagem e evolução (verdadeiramente “food for thought”). Neste contexto, considero de grande relevância atual a componente bioética na formação médica pré e pós-graduada em todo o ciclo de vida profissional (formação contínua), a meu ver merecendo futuramente maior destaque nos programas de formação (“skill “transversal).
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Tem casos clínicos que leva para casa, não os esquecendo mal saia do consultório?
A essência da arte de ser médico pressupõe uma perspetiva holística, humanizada e uma abordagem relacional com o doente e o seu “ecossistema” familiar, escolar, social… e não simplesmente gestos automatizados como uma prescrição terapêutica para alívio dos sintomas. Pressuposto da atividade médica, é particularmente evidente no que respeita ao papel do Pediatra. De facto não se esquecem os doentes, nem o serviço nem os seus problemas! “Levam-se para casa”, vai-se estudar o caso raro, o dilema diagnóstico, o porquê da ausência de resposta terapêutica, a última evidência da pubmed, ….Esta é uma constante diária ao longo da vida do pediatra hospitalar, em regime praticamente de “disponibilidade permanente” (sobretudo se contextos clínicos de particular gravidade ou complexidade), elucidando colegas, dando feed-back e apoiando as famílias das crianças. No meu caso pessoal, o foco total nos doentes e no Serviço (incluindo também necessariamente atividades de gestão clínica) foi a minha autoexigência ao optar pelo regime de trabalho hospitalar em regime de exclusividade. Outra componente extremamente importante para o outcome é o trabalho em equipa, centrado numa estreita interação entre equipa médica e de enfermagem, sobretudo na doença crónica. O vínculo único estabelecido entre a criança/família e o pediatra fica para sempre. É gratificante ainda hoje sermos regularmente visitados por adultos que seguimos enquanto crianças/adolescentes. Também reconhecemos a frequente dificuldade de alguns jovens com doença crónica na transição para a Consulta de Adultos, assumindo igualmente a nossa coresponsabilidade por uma atitude por vezes demasiado “paternalista” e dificuldade no “corte do cordão umbilical”.
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Se lhe pedisse para descrever o significado de palavra criança, numa só palavra, o que me diria?
A resposta a esta questão (com várias respostas…) corre sempre o risco do(s) lugar(es) comum(s) …..mas estas duas palavras contêm muito da essência de Ser Criança: “Sonho” e “Resiliência”. Ambas representam que tudo é possível, que não há obstáculos intransponíveis, o que é também transposto para a doença e para o processo terapêutico. Por isso é tão gratificante a Pediatria e todo o Pediatra reflete muito da Criança que já foi e que vê todos os dias.
Formalmente, apenas em 1989, na Convenção dos Direitos da Criança (Assembleia Geral das Nações Unidas), foi “aprovado” o conceito de “Criança”, como todo o indivíduo dos 0 aos 18 anos de idade. A Pediatria, como Medicina de um grupo etário abordando o ser humano em desenvolvimento, diferenciou-se em subespecialidades para responder à multiplicidade de necessidades da população-alvo, mas nunca perdeu a visão da essência pediátrica: o ser humano na sua individualidade bio-psico-social em estádios sucessivos tão distintos como o período perinatal, a idade pré-escolar, a idade escolar e a adolescência. Como especialidade médica e disciplina abrangente, integra todos os aspetos da saúde e bem - estar da Criança/Jovem e suas etapas de crescimento e desenvolvimento no ciclo de vida, bem como a patologia aguda e crónica especifica. O papel do Pediatra hoje, tendo como alvo um ser humano em constante mudança bem como o papel dos pais na triangulação clínica, inclui também a advocacia das necessidades e a promoção do superior interesse da Criança. E apesar dos extraordinários avanços na ciência biomédica e dos cenários futuristas (impacto da descodificação do genoma humano e de tecnologia recombinante nas estratégias de prevenção e tratamento personalizado, no controlo de patologia infeciosa e não infeciosa, na melhoria na sobrevida e qualidade de vida), que inevitavelmente serão refletidos na Pediatria, o encontro interpessoal da relação medico-criança-família deverá permanecer a essência da arte de ser Pediatra/Médico.
Não querendo banalizar o tema, limitar-me-ei (et pour cause) ao óbvio: “A Criança é o futuro do Homem”. Neste sentido, a importância das políticas de saúde dirigidas à idade pediátrica, com impacto no adulto. Embora as crianças não votem, deverão estar no centro de todas as políticas (económicas, sociais, ambientais,…) e não apenas das de saúde. Aliás, esta perspetiva “ecológica” está subjacente à organização dos programas de saúde no ciclo de vida (com inicio no período pré-natal). É a metáfora alargada da “aldeia inteira” para educar uma criança. A ênfase nos grupos de maior vulnerabilidade (criança, idoso,..), como sabemos, é apanágio das sociedades mais evoluídas. O perfil da patologia pediátrica tem vindo a modificar-se ao longo das últimas décadas, como ilustrado pela evolução dos principais indicadores de saúde. À escala mundial, a mortalidade pediátrica continua a ser atribuível a causas evitáveis (doença respiratória aguda, diarreia, malária, infeção VIH /SIDA, malnutrição). Nos países afluentes, apesar da drástica redução da mortalidade no primeiro ano de vida, devido à melhoria dos cuidados perinatais e controlo da patologia infeciosa, mantêm-se ainda elevadas a mortalidade devida a causas externas, evitáveis, como os acidentes de viação e a morbilidade devida à doença crónica (ex. aumento da doença atópica em geral nos países industrializados).
A obesidade, a doença oncológica e a patologia social ou comportamental (depressão, comportamentos de risco), assumem dimensão preocupante. A doença crónica aumentou em todos os grupos etários, com a problemática inerente da adesão terapêutica e da transição para os serviços de adultos, bem como a prevalência da criança com deficiência ou com necessidades especiais. Outro aspeto relevante, é o reconhecimento de determinantes precoces (restrição de crescimento intrauterino) de patologias do adulto (obesidade, diabetes, patologia cardiovascular). Estes exemplos são elucidativos do peso relativo que no presente e no futuro próximo terão os fatores do ambiente/epigenéticos e do importantíssimo papel da prevenção e educação para a saúde neste contexto. Inquestionavelmente Portugal atingiu indicadores na área da saúde materna e infantil, idênticos aos dos países mais desenvolvidos do mundo, sendo reconhecido como caso de sucesso. Estas grandes conquistas dos últimos 30 anos, resultaram sobretudo de programas específicos para a área materno-infantil. Estes aspetos, enfatizando o investimento na prevenção precoce, no desenvolvimento e na vulnerabilidade ao longo do ciclo de vida, têm determinado uma redefinição das prioridades de saúde, com impacto também nos conteúdos do Ensino Médico Pré e Pós-graduado.
Voltando à questão inicial (definir “Criança” em duas palavras) para concluir, deixaria apenas o eloquente simbolismo de Fernando Pessoa:
“A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou……..”
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Joana Sousa
Equipa Editorial
