Roteiro da Memória
O Roteiro da Memória da Professora Carlota Saldanha
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Nascida e criada na Beira, em Moçambique, chegou a Lisboa com 17 anos e veio para ficar.
Em pequena apenas se afastava dos pais para ir aos escuteiros ou para ir fazer os exames a que os deveres escolares obrigavam. Recorda as praias, as festas que organizava com as amigas e as brincadeiras de recreio em que podia andar de patins ou jogar à bola com os rapazes. Enquanto estudante, sempre achou que os livros da Biblioteca do seu Colégio não bastavam ao seu “querer saber”.
De voz doce e olhar determinado, quem nos recebe é Maria Carlota Saldanha Lopes, ou a Professora Carlota.
Desde cedo soube que queria estudar no Instituto Superior Técnico por ser um lugar “extremamente ordenado”, porque considera “o facto de haver regras fundamental em qualquer decisão que tome” diz,” mas haver regras, não significa que não haja lugar à criatividade ou liberdade, quando falo em regras refiro-me a regras básicas, que cultivo no laboratório ou em casa”.
Engenheira Química de formação é do Ensino e da Investigação que faz carreira. Defende um maior leque de disciplinas optativas e os anos intercalares para que os alunos possam ir para outros locais, aprender outras áreas, porque “é importante perceber que a vida não é um abrir e fechar de gavetas, porque este abrir e fechar de gavetas desumaniza as pessoas”.
Tem na FMUL, tal como no Instituto Superior Técnico, as suas segundas casas.
Mãe de dois “quarentões” tem plena noção de que tudo o que obteve até hoje foi privando os seus filhos de muita coisa, embora todo o tempo que passava com eles fosse de dedicação a 100%, “ eles sempre souberem que podiam contar comigo”. Em breve tenciona voltar a Moçambique, porque prometeu à neta que estaria presente no seu aniversário e o prometido é devido.
Foi homenageada pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e por todos os que com ela trabalharam, e porque não pode parar, não faz muitos dias soube que vai receber mais um prémio, o Farhraeus Medal Award, da European Society of Hemorheology and Microcirculation (ESHM) a ser-lhe entregue em Cracóvia, no congresso “ The Joint Conference of Three Societies, ESCHM-ISCH-ISB , em Julho , onde proferirá a “Farhraeus Lecture”. A nomeação para este prémio resulta da votação dos representantes nacionais de cada país europeu que integram a European Clinical Hemorheology and Microcirculation Coordinating Committee.
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No dia 19 de março a Professora foi a grande Homenageada, o que sentiu nesse dia?
Carlota Saldanha: Foi uma grande surpresa! Primeiro, o Professor Miguel Castanho tinha-me dito que precisava de falar comigo na semana seguinte e chegado o dia, chamou-me, eu levei o caderninho. Começou por me dizer que com a vinda do Professor Sayon Roy, para apresentar a “iMM Monday Lecture”, faríamos uma sessão mais alongada onde falariam o Diretor da nossa Faculdade, Professor Fausto Pinto e o Professor José Fernandes e Fernandes eu, longe de imaginar, fiquei muito entusiasmada e comentei “que bom, o Professor Sayon Roy vai ficar muito contente”. Achei uma excelente ideia! E ficou assim…
Depois quando cheguei aqui ao gabinete a, Ana Silva-Herdade começou a rir-se e disse “passei o domingo angustiada, pois apesar de saber de tudo, tinha-lhe dito que não sabia”, e eu, ainda sem perceber, disse “vai ser ótimo, vai ser uma bonita festa”. Ela, pensando que eu tinha percebido continua, “ temos de arranjar um almoço, ou um lanche”. Eu concordei e referi que poderíamos arranjar umas chamuças, e coisas assim, porque sei que o Professor Sayon gosta muito de comida indiana. E passou-se. Ao final da tarde desse dia, e porque parei um pouco de pensar no que estava a escrever, veio-me à ideia uma série de frases soltas e pensei “espera… isto é um dois em um”. Porque eu sei que, quando alguém se vai embora aqui do Instituto de Bioquímica, o Professor Miguel Castanho gosta muito de organizar uma pequena comemoração de despedida.
Só me apercebi na realidade quando o Professor Miguel me diz, “o Professor Fernandes vai fazer uma lição em sua homenagem”, só aí é que me apercebi que a homenagem era para mim. Fiquei bastante emocionada, fiquei mesmo muito contente. Não estava nada à espera.
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A Professora iniciou a carreira de docente na FMUL em 1973, como foi conciliar a vida académica com a vida familiar numa altura tão conturbada?
Carlota Saldanha: Eu iniciei funções aqui após ter terminado um curso do Centro de Estudos Avançados da Fundação Calouste Gulbenkian hoje Instituto Gulbenkian de Ciência que posteriormente foi considerado como um Mestrado, e na altura já havia em casa, uma grande partilha dos afazeres familiares. Quando vim estava grávida, embora não se notasse, portanto o Professor Carlos Manso não deu por nada. Só mais tarde é que percebeu. Aliás éramos duas, ambas entrámos grávidas. Entretanto em junho nasceu o meu filho, em pleno pós 25 de abril, e só estive um mês em casa. Nesta altura sim, já foi um pouco complicado. Era verão, recordo-me que tinha de estudar mas também queria sair com o pequeno para apanhar sol.
Em termos profissionais, o 25 de abril não me afetou. A não ser talvez, em 1975, com a entrada de mil e tal alunos, e tínhamos aulas teóricas na Aula Magna, e então era um bocado complicado de gerir.
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Nos anos anteriores havia menos afluência de alunos?
Carlota Saldanha: Sim, muito menos! Nos anos anteriores não só havia menos alunos, como estes eram normalmente mais velhos. Eu lembro-me de, em anos anteriores, dar aulas no anfiteatro de Anatomia em que os alunos eram mais velhos. Mas foi sempre uma experiência muito gratificante.
A investigação que se fazia era uma investigação apelativa, mas era muito difícil, porque tínhamos más condições. Eu vinha do Centro de Estudos Avançados da Fundação Calouste Gulbenkian onde à noite nós fazíamos uma requisição e no dia seguinte, já tínhamos disponível ou o livro ou o reagente. Tínhamos tudo.
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Foi na Fundação Gulbenkian que a Professora iniciou carreira na investigação?
Carlota Saldanha: Comecei no IMI, era um Instituto que havia no Poço do Bispo, mas aí a experiência não foi muito boa, porque não se cumpriam horários e não considero que tenha aprendido muito. Depois surgiu esta oportunidade do Professor Van Uden ter aberto o primeiro curso de Bioquímica para Engenheiros do Centro de Estudos Avançados da Fundação Calouste Gulbenkian, e aí sim foi bastante bom. Tudo o que aprendi de Bioquímica foi com Professores Ingleses, Americanos e alguns Portugueses, em termos de experimentação animal. Foi um curso muito completo. Posteriormente, este curso foi considerado pela Universidade Nova de Lisboa o equivalente a um Mestrado. Foi muito exigente, pois tínhamos muitas avaliações, mas foi uma experiência muito boa. O ambiente era muito bom, com pessoas de diferentes países, todos engenheiros praticamente. Foram tempos muito bons!
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Como chegou à Faculdade de Medicina?
Carlota Saldanha: Eu venho de África, onde vivi 17 anos, foi lá que estudei, sempre num colégio de freiras. Os livros de leitura da Biblioteca do Colégio a que tínhamos acesso eram todos muito virados para a religião e eu sempre senti que me faltava muita coisa. Para mim não era suficiente o repetir do conhecimento comum, eu queria mais. E desde muito cedo sabia que queria vir para o Técnico (Instituto Superior Técnico), porque era um lugar extremamente ordenado. E para mim o facto de haver regras é fundamental em qualquer decisão que tome, e aqui não foi diferente. Mas o facto de haver regras, não significa que não haja lugar à criatividade ou que não haja liberdade. Quando eu falo em regras refiro-me a regras básicas, que cultivo no laboratório ou em casa, por exemplo de cada um mexer apenas no que lhe pertence.
Quando fui para Engenharia, Engenharia Química de Processos, eu já sabia desde o início que não poderia ir para uma fábrica ou para um laboratório de qualidade, a fazer todos os dias as mesmas análises. Fazer coisas repetitivas não era a minha vida. Tinha de ir para um sítio onde eu pudesse descobrir.
Entretanto a Faculdade de Medicina abriram vagas para Assistente e eu concorri, fiquei muito contente porque ia para uma área totalmente nova. Foi uma fase de desafios constantes.
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O ensino que se praticava é muito diferente do que se pratica hoje….
Carlota Saldanha: Sim, foi evoluindo claramente! Eu comecei na bioquímica fisiológica, com aulas teórico-práticas com grupos pequenos e que eram bastante estimulantes. Reconheço que eu era muito exigente com os alunos, em termos de comportamento. No entanto sempre gostei muito de interatuar com jovens adultos.
Em termos de ensino, é importante ter em consideração que nós passamos de um numerus clausus inferior para um numerus clausus superior, e uma das constatações que tive e que sempre me preocupou, foi que os alunos nos chegavam com conhecimentos básicos de química muito pouco estruturados. Começamos, já na altura da bioquímica das moléculas, por tentar fazer pequenos cursos de química orgânica, que se iniciavam com pequenos inquéritos para perceber o que é que os alunos sabiam. No final dos cursos voltávamos a fazer inquéritos para saber qual tinha sido o aproveitamento. Tentámos por várias formas estimular o gosto pela química orgânica nos alunos, mas era impossível gastar uma semana, ou duas ou mesmo um mês para ensinar química orgânica.
Foi com a vinda do Professor Martins e Silva para a Bioquimica, que se iniciou a Bioquímica das Moléculas, que referi e na altura não tinha aulas práticas. Aí achei-me na obrigação de criar um curso para ensinar as bases da investigação e as bases laboratoriais. Tive muitos alunos, alguns deles são hoje especialistas nas mais variadas áreas. Ensinar alguém é ajudar a aprender e nós próprios retirarmos desse ato uma aprendizagem. Por isso parti para os cursos livres, senti que se precisava de abrir mais janelas aos alunos de medicina. Estes eram cursos totalmente livres, convidei várias individualidades de fora e da Faculdade e fazíamos trabalhos experimentais. Estes cursos foram sempre evoluindo.
Recordo-me ainda no início destes cursos livres, por exemplo, da colaboração com a Cirurgia II, com o Professor Bicha Castelo, através da indução da diabetes em porquinhos pequenos. E todas as manhãs tínhamos o chamado Pig Brother, em que os alunos tinham de ver como estava o seu doente porquinho, para ir acompanhando a evolução. Estes cursos tinham outras componentes que permitiam obviamente avaliar a aprendizagem e o ensino. Era uma aprendizagem muito interativa.
Deixe-me ainda dizer-lhe que aqui na Faculdade de Medicina há uma maior ligação entre o docente e o discente, a relação docente/discente aqui é totalmente diferente da que existia quando fui aluna, no Instituto Superior Técnico.
E portanto desde a altura em que os numerus clausus de acesso ao curso de medicina deixaram de existir, passamos a ter um excesso de alunos, a capacidade logística e a capacidade de tempo é ultrapassada. E depois veio ainda o Processo de Bolonha, em que se licenciam alunos em 3 anos. Não é suficiente, não há tempo para aprender, é preciso tempo para a pessoa absorver, interiorizar, raciocinar, e comunicar com os docentes e com os colegas. A minha tese de mestrado em educação médica foi sobre os processos, os estilos de aprendizagem. Como é que os alunos estudam, qual é a abordagem que utilizam.
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Depois de 44 anos na Faculdade terá com certeza alguns momentos para contar. Quer partilhar algum especial?
Carlota Saldanha: Em relação à equipa com quem fiz investigação há muitos momentos. Na relação com os alunos também, houve um momento em que eles me trouxeram uma caixinha com dois duchese porque nas aulas estávamos a falar sobre o metabolismo. Uma coisa que eles gostavam muito era que quando eu chegava dizia sempre, “bom dia meninas, bom dia meninos”. Não os deixava falar uns com os outros. Aliás, sempre houve, os rapazes mais bonitos que são aqueles que agregam, tipo o centro da flor, e as pétalas são as meninas que ficam todas à volta, e aquilo era para a desgraça. Então tinha de desmembrar aquele grupo. Por exemplo outro momento que eu não vou esquecer, foi ter estado até às 4 horas da manhã a trocar e-mails com uma aluna. Portanto tínhamos feito o exame, e as perguntas consistiam em selecionar de entre as várias opções a resposta correta, e praticamente ninguém tinha respondido à pergunta. Eu dizia-lhes sempre que o conteúdo que eu dava nas aulas teóricas sairia no exame escrito. Mas obviamente muitos não iam às aulas teóricas, o 1º ano até corre muito bem, mas depois a partir do 2º ano já se perdem muito (ri). E então fiz uma pergunta naquele exame e a aluna contestou, porque tinha estado a falar com uma série de Pediatras e porque não era assim, e eu continuava a explicar-lhe o porquê, ao que ela me respondia com cópias ou fotografias de livros clínicos e eu voltava a responder com outros argumentos, até que, a certa altura ela já não tinha mais argumentos - já os meus filhos me diziam sobre os alunos, “mãe, eles consideram-te como uma barreira”- e então a aluna perguntou-me “ a Professora já viu quantos bons alunos é que responderam a essa pergunta?” e é claro, eu fui fazer o teste dos que tinham melhor nota e quem tinha respondido certo aquela pergunta, e eu disse-lhe, pronto já encontrou o meu calcanhar de Aquiles, vou anular a pergunta e ficámos por ali, mas foi uma luta.
Mas também tenho histórias desagradáveis.
Ainda estávamos no outro edifício, um dia à tarde, depois de almoço, eu chego e vejo todos os meus assistentes, à volta daquela mesa grande que está ali na sala de reuniões, com os relatórios todos espalhados em cima da mesa, e andavam a circular. Eu, claro perguntei o que se passava, “ah, nada…”disseram, não me queriam preocupar, até que as tantas vieram ter comigo e disseram, “houve plágio… os alunos deste ano utilizaram os relatórios do ano passado”. Fomos todos para a aula teórica, e eu expliquei o que tinha acontecido e anunciei que iriam todos ao exame final. Tivemos de anular a avaliação contínua. E portanto a nota da avaliação contínua obtida até ali, não contou para nada. Cheguei a receber telefonemas. Foi uma situação muito desagradável, mas a decisão estava tomada.
Outra história engraçada, mas esta só sabem as pessoas da altura e já se passaram alguns anos. Num dia à tarde, um tempo depois de ter chegado, perguntei se tinha acontecido alguma coisa, porque a casa de banho estava fechada já há algum tempo… responderam-me que estava lá alguém. E ficámos por ali. Mas eu comecei a estranhar e fui pedir uma explicação, até porque nessa tarde era a pessoa mais graduada e tinha de saber o que se estava a passar, “vocês têm de me dizer o que é que se passa”, ao que me responderam que estava um porquinho na casa de banho (Ri). Porque quando vieram trazer o porquinho, o biotério já estava fechado e não o quiserem levar. Eu só pensei “E agora o que vamos fazer?”… Bom, tivemos de arranjar uma solução para deixar o porquinho com água, mas sem comida até de manhã cedo, até o porquinho ir para o biotério. Mas passei toda a noite preocupada que ouvissem o grunhido do porco, se o porquinho teria fome, se ficaria desidratado ou com frio porque a janela ficou aberta por causa do cheiro, e ainda estávamos no piso 6.
Houve também o dia em que em poucos minutos fiquei a saber que duas das investigadoras que trabalhavam comigo estavam grávidas, foi um dia muito complicado, saber que em meses deixaria de ter dois membros da equipa, ainda que provisoriamente… foi um dia de terror para mim (diz sorrindo).
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Fala nos seus alunos com grande carinho, é comum cruzar-se com alunos seus Professora?
Carlota Saldanha: Muito. Posso-lhe dizer, que um desses momentos foi, num dia em que estava cá o Professor Sayon Roy, íamos almoçar e eu tinha visto um sítio, perto da Dona Estefânia mas quando lá chegámos, estava fechado. Entretanto, vejo uma rapariga na rua e pergunto-lhe se conhece algum restaurante ali, e ela diz “oh professora Carlota…”, e de facto foi uma coincidência fantástica. Tenho muitos encontros, em voos, nas filas de espera do supermercado, quando vou a concertos… Até quando entro para fazer pequenas operações, descubro que o anestesiologista foi meu aluno. De um modo geral são eles que me reconhecem.
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E como é que a Professora sente estes momentos?
Carlota Saldanha: São momentos muito, mas muito gratificantes. Ainda no outro dia, estava com a Professora Ana Silva Herdade, tínhamos ido tratar de assunto e depois fomos lanchar, cruzei o olhar com um aluno que diz“ é a Professora Carlota… está na mesma”, eu senti-me corar como se fosse uma miúda pequena. Tenho familiares e amigos que me diziam “tu tens fama de ser muito dura para os alunos, mas eles gostam muito de ti. (Ri) Porque eu era muito exigente, eles tinham de estudar. Mas depois fui perdendo… claro que com a idade a pessoa vai ficando mais branda. Mas são momentos muito, mesmo muito gratificantes.
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Acompanhou o Dia do Candidato desde o seu início em 2008, como foi coordenar este projeto?
Carlota Saldanha: Foi tão bom! Todas as experiências foram muito boas, mas recordo o empenho e o entusiasmo com que se inicia um projeto… Tinha de ter sempre uma estratégia associada aos projetos em que participava. Acho que é fundamental ter uma estratégia e sempre tentei transmitir esta ideia a todos os meus alunos.
Como foi coordenar … Em primeiro lugar era muito importante dar a possibilidade a todas as escolas de ensino secundário do país de participar neste Dia, fazendo-lhes chegar a informação atempadamente. A segunda preocupação era que houvesse uma segurança total, eu era completamente paranoica com a segurança, e o procedimento iniciava com o consentimento explícito dos pais dos alunos. Depois era preciso ter um programa que lhes desse um panorama geral. Este plano foi evoluindo naturalmente, porque fomos acertando em equipa. Aliás toda a equipa era muito entusiasta, partilhávamos tudo. Fazíamos reuniões preparatórias em que todos davam espontaneamente as suas sugestões e ouvíamo-nos uns aos outros.
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O plano consistia em mostrar as várias valências quer em termos de ensino quer de investigação.
Depois houve uma altura em que percebemos que o programa não incluía o 6º ano e era uma lacuna gravíssima em termos de propaganda da Faculdade, passámos então a integrar o 6º ano no programa. Portanto, fomos sempre ajustando. Tínhamos o inquérito inicial e o inquérito final sempre com a preocupação do grau de satisfação. Houve sempre a preocupação de fazer daquele evento, um dia marcante na vida dos alunos, mesmo que eles não quisessem ingressar em medicina. Houve anos em que se candidatavam apenas porque tinham curiosidade, e não para escolherem medicina.
Recordo um ano particular em que tínhamos lotação esgotada e a meio da manhã entra um outro grupo que quis ficar. Portanto havia a preocupação de construir um evento seguro, atraente e que satisfizesse a todos. E claro que não posso esquecer a importante colaboração da Associação de Estudantes da FMUL, que sempre me apoiou, sem eles seria muito difícil. Nós sabíamos que eles, através dos estudantes mais velhos, asseguravam as visitas aos vários locais de ensino-aprendizagem. Normalmente o dia terminava com uma apresentação da Associação de Estudantes e de todas as atividades desenvolvidas no âmbito da mesma.
Eles foram um grande suporte, e ainda bem que veio falar comigo, (emociona-se) porque quando eu soube no seguimento da homenagem que recebi da FMUL e que considero ser uma homenagem à Faculdade e a todos os que trabalharam comigo, tenho de sublinhar que tive na Associação de Estudantes da Faculdade um suporte muito, muito grande.
Nos finais de 2016 pedi para não integrar a edição seguinte do Dia do Candidato, portanto a de 2017.
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A investigação da Professora debruça-se sobre a hemorreologia, portanto sobre o sangue, as suas propriedades e elementos. No fundo, sobre toda a dinâmica do sangue. Mas sabemos que a célula da preferência da Professora é o eritrócito, portanto o glóbulo vermelho. Como desenvolveu o interesse por esta área?
Carlota Saldanha: Comecei por trabalhar em investigação com o Professor Carlos Manso no metabolismo do eritrócito, com o Dr., agora Professor Lúcio Botas; além das aulas e sua preparação comecei a pesquisar na literatura que nós tínhamos; ainda pensei fazer algumas disciplinas de medicina, cheguei mesmo a ir ter com o Professor David Ferreira pedir opinião.
Depois veio o Professor Martins e Silva que trabalhava em glóbulo vermelho e em metabolismo e que tinha feito a sua tese sobre as purinas e pirimidinas, se não estou em erro. Mas estava interessado no glóbulo vermelho e foi a partir daqui que comecei a implementar metodologias para utilização do eritrócito como modelo experimental de ligação com a parte clínica. Foi aqui que me entusiasmei pela hipertensão arterial, tentar perceber o mecanismo foi um grande desafio. Ir aos congressos explicar o que tinha quantificado nos glóbulos vermelhos e tentar ligar à parte clínica era muito difícil porque não havia conhecimento para essa ligação. Centrei-me muito nessa parte do metabolismo, sempre com diversas patologias. Depois foi a diabetes, não havia kits para saber se a hemoglobina era glicada, fui eu que montei o primeiro método de quantificação hemoglobina glicada, que apresentei num Congresso organizado pelo Professor Pádua.
Depois na década de 80, conjuntamente com o Prof. Martins e Silva, iniciámos os estudos na hemorreologia. Foi na Alemanha onde eu aprendi as técnicas da agregação e deformabilidade do glóbulo vermelho a par de outras metodologias para avaliação da composição da membrana que foram aplicadas em diferentes patologias.
Mas eu sou Engenheira Química e como tal tinha de ir fazer o meu Doutoramento numa área que fosse de Engenharia. No glóbulo vermelho existe uma enzima que é a acetilcolinesterase, dediquei-me ao estudo da sua cinética, com o que tinha aprendido de enzimologia no curso que referi acima, no Instituto Gulbenkian de Ciência. Frequentei cursos da NATO, um dos quais sobre “Enzimologia” com os maiores especialistas da época autores dos melhores compêndios desta complexa matéria. Todos me perguntaram o que estava a fazer, porque esta enzima é “louca”, diziam-me, “isso é complicadíssimo não se meta nisso, mude o subject, mude”, mas como já viu, eu sou uma mulher que gosta de desafios. Foi precisamente o não se saber qual era a função dessa enzima que me cativou. Anteriormente, por ideia do Professor Martins e Silva, tínhamos verificado e publicado com o grupo do Professor Nogueira da Costa, aumento da atividade enzimática nos eritrócitos dos doentes hipertensos. Mas não se sabia o porquê, ela hidrolisa o substrato que é a acetilcolina (o seu substrato natural; é uma molécula que se encontra a nível da junção neuro muscular e em vários tecidos cerebrais) cuja função é não estarmos sempre a receber impulsos nervosos.
Para fazer a minha tese tive de sair do país, porque cá não tinha a quantidade necessária de glóbulos nem tinha a aparelhagem necessária para purificar a enzima, e portanto tive de sair e fui recebida em Berna, onde estive mais de um mês dentro de uma sala de azulejos brancos, com litros e litros de glóbulos para purificar a enzima. Deixaram trazer comigo a enzima purificada e com ajuda do Carlos Moreira, (atualmente Professor na FMUL) que criou um programa que adaptou à curva cinética da enzima. Foi um trabalho que me deu imenso gosto, aprendi imenso e consolidei muitos conhecimentos. Foi um contributo para o início de entendimento entre a parte básica e a parte clínica.
Em 2000 havia que dar um rumo à investigação ainda sobre a acetilcolinesterase e daí que comecei a olhar para a parte vascular e dei de caras com o Prémio Nobel sobre o NO, fascinou-me que tivessem usado uns pedacinhos de artéria de porco que dilatavam após se ter injetado acetilcolina ou se estragassem o endotélio, viam que ele contraia com a exposição à acetilcolina. Mais tarde encontrei, na literatura, que um grupo no Japão tinham descoberto que havia acetilcolina em circulação, que era produzida pelo endotélio, e pelos linfócitos em situações de inflamação. Portanto o raciocínio que eu fiz foi, se a acetilcolina faz dilatar o endotélio também será capaz de alterar a deformabilidade dos glóbulos? E se a acetilcolina faz com que esse endotélio liberte monóxido de azoto (NO) quer para o lúmen quer para a músculo liso provocando dilatação vascular é porque se calhar também há NO dentro do eritrócito? Portanto estas foram as duas perguntas chave, e de facto confirmei que havia NO dentro do eritrócito, vi que a acetilcolina aumentava a deformabilidade dos glóbulos. A partir daí continuei a desenvolver esse trabalho sabendo à partida que a acetilcolinesterase associada ao substrato e ou inibidores apresenta formas ativa, menos ativa ou inativa. Descobri que esta enzima tem a função de recetor no mecanismo de transdução de sinal do e mediato pelo NO.
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Enquanto Group Leader no CSaldanha. LAb pretendeu sempre englobar os interesses de quem trabalha consigo e sei também que fez uma liderança muito próxima das pessoas? Serão estas as premissas para se ser um bom líder?
Carlota Saldanha: Temos de encarar o outro como um todo. Sempre tentei perceber porque é que as pessoas têm determinados interesses, e quais as razões que as movem. Tentei sempre, fazer com que todos se sentissem bem entre si. E isto também era válido para quando fui Diretora Interina do Instituto de Bioquímica. Agora la está… havia regras de laboratório, as tais regras que lhe falava há pouco, nisso eu sou intransigente. No entanto no que se refere aos horários, na linha de investigação de cada, aí obviamente havia liberdade. Tentei sempre envolver o máximo, mas de forma recetiva a tudo e a todos.
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Sempre acreditei nas pessoas, o que faz também com às vezes estejamos mais vulneráveis, por exemplo já aconteceu, na véspera da entrega de uma tese ou na véspera do início das aulas ficar a saber que a pessoa se vai embora, na altura fiquei sem chão. Mas era preciso resolver e eu resolvi.
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Professora, sei que há poucos dias foi a grande vencedora na votação final para atribuição do Fahraeus Medal Award, um prémio atribuído pela European Society of Hemorheology and Microcirculation, que destaca os grandes cientistas na área da Hemorreologia e da Microcirculação. Como foi receber mais esta notícia?
Carlota Saldanha: Não estava à espera; fiquei muito honrada e contente, mas, mais uma vez é um grande desafio, porque tenho que apresentar uma lição, que é o momento alto do Congresso. Quero fazer uma lição memorável.
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Professora, regressou a Moçambique?
Carlota Saldanha: Já lá voltei duas vezes. A 1ª vez que voltei lá, foi há 10 anos e depois há 5 anos. Da primeira vez o meu filho levou-me à Beira, onde verifiquei que o meu Colégio, que me parecia tão grande em pequena, era afinal tão pequeno. Fomos ao Kruger, na África do Sul e foi uma experiência maravilhosa, não cheguei a ir a Gorongosa mas recordo que era magnífica. Faz-nos sentir uma paz enorme.
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E quanto ao futuro?
Carlota Saldanha: Tenho um artigo para terminar de rever, isso é o que me aflige neste momento; fui a um congresso; tenho mais três este ano com viagens malucas, isto é, com imensas paragens, por questões económicas. Tenho artigos ainda para publicar. Estou muito contente por ter este espaço aqui, no Instituto de Bioquímica, por cedência do Professor Miguel Castanho, para mim é muito bom, em casa não é a mesma coisa. Nunca fui de fazer planos mas pretendo continuar no meu lema “ ser amanhã melhor do que ontem” e estar mais disponível para a minha família.
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Permita-me, Cristina Bastos, que agradeça às amigas e amigos de todas as secções espalhadas pelos 2 edifícios que constituem o CAML, pelo apoio permanente e pelo bem-estar que me proporcionaram.
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Nota de agradecimento – A equipa editorial agradece a preciosa colaboração dos Professores Ana Santos Silva Herdade e Ângelo Calado pelo apoio prestado na recolha de informação e preparação da entrevista.
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Cristina Bastos
Equipa Editorial