Reportagem / Perfil
Maria do Céu Machado – Uma sinfonia de vida
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Esperava por mim na sala de reuniões, apesar de compromissos anteriores me terem atrasado meia hora. “A Professora está ali à tua espera”, foi como se tivesse recebido um ramo de flores, pouco convencional, bem sei, mas da alegria do encontro, que tanto ansiava, cumprimentei-a com dois beijos, em vez do aperto de mão que nos impõe um certo protocolo social.
“Sabe que trabalhar, trabalha-se em todo o lado, não perdi o meu tempo, não se preocupe”. Agitada entre a agenda de novas reuniões e a discussão sobre a forma como deveria gerir, diplomaticamente, um assunto de trabalho, não dispensava o seu olhar familiar de quem sabe ver os outros por dentro. E, no entanto, em momento algum esse olhar fere quem por ela é observado.
Maria do Céu Machado, atualmente Presidente do Infarmed, é Professora Catedrática Convidada da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e Membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida. Foi Alta Comissária para a Saúde, Membro do Conselho de Escola e do Conselho Científico da Faculdade de Medicina, Diretora Clínica do Centro Hospitalar Lisboa Norte e Diretora do Departamento de Pediatria de Santa Maria. Teve 8 Bolsas de Investigação, 2 Prémios Bial de Medicina Clínica e o Prémio de Qualidade Amélia de Mello. Publicou 163 artigos, 4 livros e 667 comunicações científicas. Agraciada como Grande Oficial da Ordem de Mérito, em 2010, recebeu ainda a Medalha de Ouro do Ministério da Saúde em 2012.
Num mês em que queríamos conhecer o mundo da Pediatria, o pretexto para falarmos era perfeito.
Enquanto me contava das suas memórias de infância e de como os seus dois avôs a fizeram ligar-se à Medicina, reparei no dedo que casava a sua aliança redonda de ouro, à do marido João Lobo Antunes que partiu em outubro de 2016. Ouvi-la é como ter, de fundo, uma melodia suave que toca no que mais temos de precioso, os afetos. Ao fundo, baixinho, soava nos meus ouvidos Ennio Morricone, com a banda sonora do Cinema Paraíso, e imaginava o Toto e o seu amor pelo Alfredo, o “velho” homem que projetava na tela do cinema as cenas proibidas dos beijos dos filmes americanos, assim imaginava eu uma Maria do Céu pequena e cheia de sede de mundo.
Das muitas tardes que passava com os avós que viviam na Guerra Junqueiro, aprendeu a distinguir os primeiros medicamentos, tinha apenas cinco anos, quando começou a ler os nomes dos comprimidos que tentavam tratar o coração do avô Armando. “Ia soletrando por sílabas e assim fui aprendendo a ler aqueles medicamentos todos”.
Mas havia também o avô Manuel, que lhe contava as suas histórias da medicina que a influenciaram desde muito pequena. Tenente-coronel médico, foi feito prisioneiro na I Grande Guerra (1914/1918), na Batalha de La Lys, com muitos outros oficiais portugueses no campo de Rasttat, na Alemanha. Cada preso tinha um cartão que o identificava, com o nome, mas por sorte sem fotografia. Sorte sim, porque como alguém que já não pertence a este tempo, deu a sua palavra de honra que não fugiria e o cartão assim o comprovava. “O meu avô tinha dado a sua palavra e, mesmo quando já os deixavam ir à vila mais próxima, o cartão ficava no campo e ninguém fugia. O valor da palavra de honra! Então sabe o que eles fizeram? Trocaram entre si os cartões e, assim o meu avô não faltou à palavra, mas pôde fugir”.
Apesar dos pais a terem tentado convencer que uma carreira nas Engenharias era mais apropriado do que ser médica, a obstinada e adolescente Maria do Céu de catorze anos deixou-lhes um bilhete, numa noite em que saíram para jantar, “Pais, eu já decidi, quero ir para Medecina”. Na altura a mãe reforçou o erro da palavra e o sentido já tão assertivo, incentivando então que fosse “médeca, se essa era a sua vontade”.
Ria-se, descontraída, à medida que me contava histórias soltas da sua vida. Avisou-me que não teríamos muito mais tempo para falar porque tinha compromissos. Pedi-lhe que nos reencontrássemos. “Está bem, mas mande-me, entretanto, as suas perguntas e eu vou pensando nelas, pode ser?”. Expliquei que não tinha perguntas e que queria apenas ser ouvinte, preferia continuar a conhecer o seu lado espontâneo de quem diz exatamente o que pensa e não o que o convencional. Deixei apenas cair outro tema em cima da mesa – o Professor João Lobo Antunes.
Os olhos brilhantes não me falavam de tristeza, estavam apenas repletos de alegria e uma saudade que o tempo não atenua, sinal que ficou ainda muito amor por viver.
Voltamos a reencontrar-nos, desta vez no Infarmed, onde assume o cargo de Presidente da Autoridade do Medicamento, desde maio de 2017. Num espaço exemplarmente arrumado e com um aroma a baunilha, vê-se ao fundo um quadro que mesmo para qualquer leigo de arte sabe que pertence a Paula Rego. “O João deu-me esse quadro porque diz que essa figura com o estetoscópio sou eu (o lobo), a mandar nos outros todos”. Ri-se, enquanto trabalho ao computador e me diz que recebe uma média de 300 mails por dia e que boa parte implica abrir ficheiros, com longos textos, e depois ainda tem de os analisar. Em cima da mesa há uma fotografia com o Papa Bento XVI, a única fotografia que tem.
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Sento-me sem a certeza de ter escolhido a cadeira certa. Fica à minha frente, “fez bem sentar-se aí, porque esta é a minha cadeira geralmente”. Quando pergunto a razão de não escolher as cadeiras de topo, explica-me que raramente gosta de as ocupar e que as cede por norma ao vice-presidente, ou à vogal, “é menos formal e ficam todos mais à vontade”.
E tinha razão.
Caracteriza-se por ter sido “uma menina de colégio”. Estudou no Sagrado Coração de Maria, durante onze anos, fazendo o 11º e 12º anos no Liceu (atual Escola Secundária) Dona Filipa de Lencastre. “Fui para o Filipa porque no colégio comecei a fazer, exatamente, o contrário do que as freiras exigiam, por exemplo usar collants, o que era proibido e quando se tem quinze anos queremos afirmar-nos.
Sempre boa aluna, ingressou em 1966 na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Dos 700 alunos que entraram no seu ano, só chegaram ao fim 270. Era a falta de numerus clausus que permitia que todos entrassem, mas a seleção natural foi feita no primeiro ano quando conheceram a famosa cadeira de Anatomia, cadeira, aliás, que, tempos depois, acompanharia como Monitora. Pertenceu a um ano de ouro da Medicina onde fez amigos que encontra ainda hoje e em jantares de cinco em cinco anos. Eduardo Barroso (Médico cirurgião), Francisco George (ex Director-Geral da Saúde), Álvaro Carvalho (Psiquiatra e um dos responsáveis pelo Programa de Saúde Mental), José Gameiro (Psiquiatra), Benedita Barata da Rocha (Imunologista e diretora de investigação do Centro Nacional de Investigação Científica francês), António Rendas (antigo Reitor da Nova), Luis Novais (Gastrenterologista), Francisco Abecassis (Radiologista) são alguns dos amigos que lhe ficaram até aos dias de hoje. “Éramos muito unidos e coesos. Acredita que nas aulas práticas, já no sexto ano, chegávamos a ser sessenta alunos? Estou a lembrar-me de uma aula de cirurgia com o Prof. Granate, e um doente numa maca no meio de mais sessenta alunos. Fizemos uma greve às aulas, pedindo que desdobrassem, pelo menos, em dois semestres estas aulas práticas e conseguimos”.
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Nessa altura os alunos eram mais interventivos política e socialmente?
Maria do Céu: Era diferente. Os alunos agora integram o Conselho de Escola e o Pedagógico e são ouvidos com regularidade. A atual Associação de Estudantes faz um trabalho fantástico e interventivo. Na altura nós só tínhamos um delegado de curso, e havia muita solidariedade entre nós. Este é o grupo que se mantém coeso e que se vai encontrando nos jantares. Agora ficamos mais tristes porque já estamos mais velhos. (Dá uma gargalhada)
Maria do Céu Machado é das poucas médicas que percorreu vários lugares, fazendo uma alternância entre Ministério e Hospital, nunca ficando apenas circunscrita ao hospital onde se formou “Não se deve ser oportunista, mas devemos aproveitar as oportunidades e eu tive sorte na vida e sempre gostei que me fizessem desafios”.
Ainda no 6º ano do curso, decidiu que queria casar. “Fui anunciar ao meu pai que ficou muito zangado. Eu era a única filha e estava sempre a provocá-lo”.
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Mas casou?
Maria do Céu: Casei. Mas fiz uma aposta com ele, no dia seguinte ao casamento prometi que fazia um exame. E foi mesmo assim. Casamento às 17h, com duzentos convidados, a família nervosíssima e eu a estudar Psiquiatria. Para lhe dizer a verdade não tive uma nota assim muito boa, mas fiz o exame.
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Quer dizer que nunca descuidou a vida profissional, mesmo com um casamento muito cedo?
Maria do Céu: Casei com vinte e dois anos, tive uma filha com vinte e três e a outra aos vinte e quatro. Foram uns tempos difíceis de conciliação entre a vida pessoal e a profissional.
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Quando aparecem as filhas que implicações tiveram na vida profissional?
Maria do Céu: No ano a seguir a casar, comecei o estágio da prática clínica, o atual internato geral, e a minha primeira filha nasceu em abril de 1973. Nessa altura as médicas não tinham licença de maternidade, nem um único dia de apoio à família. Então o que fazíamos era apresentar atestado de doença, até um máximo de 30 dias por ano. Ao fim de duas semanas fui trabalhar e fazer urgência de 24h e levava a minha filha para casa da minha mãe, que tinha uma empregada que já me tinha “criado” e ao meu irmão. Eu devia pedir uns meses de retroativos de licença, pois não sou menos mãe que as outras. (ri-se).
Em 1975, um grupo do nosso curso muito interventivo e revolucionário, percebendo que o acesso à saúde fora dos grandes centros era muito deficiente (não havia rede de Centros de Saúde nem Serviço Nacional de Saúde), promoveu, junto do Secretário de Estado, o que seria depois conhecido como o Serviço Médico à Periferia. Fomos distribuídos por todo o país. Quem tinha filhos pequenos, como eu, ficaria mais perto de Lisboa. Eu escolhi ficar na zona de Benavente, Coruche e Salvaterra de Magos. Quando chegamos lá, não imagina as diferenças que vimos, só em Salvaterra havia apenas um médico que nos disse que bastava irmos uma vez por semana cumprir as horas de urgência. Nós, com o tal espírito revolucionário (Verão quente de 1975), desejávamos tratar as populações e cumprimos sempre o horário completo e de presença física. As pessoas não estavam habituadas a ser observadas. Numa consulta, pedi a um senhor que se queixava de tosse que tirasse a camisa para o auscultar e ele, aflito, perguntou: posso voltar amanhã para tomar banho e vestir uma camisa lavada?
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Mas e depois desse período?
Maria do Céu: Fizemos o teste de admissão à especialidade e tive vaga em Pediatria, exatamente o que queria. Ainda cheguei a fazer cirurgia, mas com as duas filhas pequenas percebi que implicava não ter horas para ser mãe.
No estágio geral, tinha sido colocada no Hospital Curry Cabral, cujo o Director do Pavilhão da Pediatria (doenças infecciosas) era José Mateus Marques. As reuniões do serviço eram às quartas à noite e sábados de manhã, todos iam, ninguém faltava ou protestava por estes horários, o que agora seria impensável. Era um clínico extraordinário, houve uma epidemia de cólera e outra de difteria e as crianças eram tantas, tantas, que as deitávamos no chão e com os mais pequeninos, tirávamos as gavetas das secretárias, e eles ficavam dentro das gavetas, com um pequeno cobertor, e com o soro, servindo assim as gavetas de berço. Passámos ali tempos terríveis. Mas Mateus Marques era tão fantástico que o nosso grupo (éramos uns 6) escolheu todo a especialidade de Pediatria.
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Maria do Céu foi sempre dizendo que queria ser apenas “uma Pediatra feliz”, mas a vida foi-lhe colocando desafios que a fariam ser muito mais do que cuidadora dos mais pequenos. Mas isso seria mais tarde, agora, convicta do seu caminho, submetia-se às provas necessárias e fica colocada na Estefânia, entre 1976 e 1983.
Diz que nunca teve ligação aos recém-nascidos, preferindo sempre os adolescentes, escrevendo, recentemente, um livro sobre eles – “Adolescentes”. Mas durante uns anos, os adolescentes não seriam o seu foco de estudo, nem tão pouco na prática clínica. Lutadora e sempre com vontade de evoluir para outros patamares, mesmo que o caminho não fosse numa linha reta, concorreu à Maternidade Alfredo da Costa. As provas públicas incluíam uma “prova de caras”, o que significava fazer a história, observar a criança, e perante o júri, e sem apontamentos, fazer a discussão clínica e a orientação terapêutica. Dos trinta e três candidatos, foi a Pediatra Maria do Céu que ficou no primeiro lugar. Esteve 13 anos na Maternidade, onde fez o trabalho do seu Doutoramento na Universidade Nova (onde era Assistente), sobre “Uropatia malformativa” de diagnóstico pré natal, ou seja, sobre os bebés que nasciam com problemas nos rins e vias urinárias. Nesse período estagiou em Cambridge e Londres, em diagnóstico pré natal e cuidados intensivos a recém-nascidos.
Uma nova fase começava na sua vida em 1996. O Hospital Amadora-Sintra, apesar de hospital público, era gerido por um grupo privado – o Grupo José de Mello Saúde - e nessa altura procuravam a pessoa certa para dirigir a Pediatria. “O hospital era completamente novo, o departamento da Pediatria era enorme e, após aceitar o convite, disseram-me para apresentar um plano sobre recursos humanos, equipamento e organização em tempo recorde. Escolhi os meus chefes de serviço: Gonçalo Cordeiro Ferreira (Pediatria), Helena Carreiro (Neonatologia) e Paulo Casela (Cirurgia pediátrica). Começámos em março e abrimos a 1 de junho, com uma urgência pediátrica, duas áreas de cuidados intensivos, uma só de neonatais, a enfermaria e ao todo tínhamos mais de 90 camas”.
Por ser um grupo privado não precisou de se reger por concursos públicos, fazendo as escolhas exatas e justificando as decisões de compra como uma gestora que conduz uma empresa que existe para ter rentabilidade. O perfil de gestora, que tão bem a caracteriza, herdara dos tempos da Maternidade, onde decidiu fazer um curso apoiado pela União Europeia, “ser gestora é um misto de Psicologia e Matemática”.
No seu novo hospital, fez uma análise exaustiva sobre as patologias da população pediátrica daquela área, e avaliou as necessidades para uma resposta adequada. “Não imagina como a ausência de burocracia evita desperdício”.
Ficou onze anos com o Grupo Mello que resume como um “tempo extraordinário e de grande aprendizagem”. A otimização de recursos humanos e técnicos deu a Maria do Céu Machado uma macro visão que ajudava a fortalecer a Medicina. Chegou ainda a Diretora Clínica entre 2005 e 2006, sempre com o Amadora-Sintra com gestão privada, mas já começavam a surgir as primeiras turbulências de novos ares para o Hospital. É nesta fase que recebe o convite do Ministro da Saúde, Luís Filipe Pereira, para ser Presidente da Comissão Nacional de Saúde da Criança e Adolescente. Aceitou e desenvolveu várias ações em articulação com as instituições do Ministério. Já com o sucessor na Saúde, o Ministro António Correia de Campos, é convidada para ser Alta Comissária da Saúde, funções que inicia em novembro de 2006, aceitando mais um desafio. “Perguntei ao Ministro o que era representava esse cargo e ele respondeu que era uma espécie de Big Brother da Saúde, porque era preciso coordenar o Plano Nacional de Saúde e as várias entidades envolvidas”.
Passou a ser a responsável pelo planeamento estratégico, abrangendo áreas tão diferentes como as doenças mentais, sida, doenças oncológicas e cardiovasculares, bem como as áreas internacionais: União Europeia, Organização Mundial de Saúde e Cooperação e Desenvolvimento. Do microambiente dos hospitais, atravessava a escala global. “Era uma dimensão brutal a que eu não estava habituada. Isto custou-me muito, mas sob o ponto de vista de Saúde Pública foi como fazer uma nova especialidade”.
Recebe novo convite de Adalberto Campos Fernandes (então Presidente do Conselho de Administração do CHLN), e depois de quatro anos e meio como Alta Comissária, regressa a Santa Maria onde diz “ter fechado um ciclo que se iniciara tanto tempo antes”.
O regresso a Santa Maria e à Pediatria não foram, no entanto, fáceis. Trinta e oito anos depois tinha noção do ambiente fechado e conservador e da diferença entre mundos onde circulara. “O Departamento de Santa Maria é ótimo e as pessoas são muito diferenciadas e competentes, mas estavam habituadas a um Diretor que era escolhido internamente e alguém de fora era difícil de aceitar”.
Demasiado empreendedora para não criar mudança por onde passa, conseguiu fazer obras na Pediatria e melhorar algumas unidades, passando outras a Serviços, fortalecendo-as com maior responsabilidade. Para tudo isto traçou um projeto a três anos. Mais uma vez envolveu todas as pessoas na sua gestão. Exigente, gosta, no entanto, que as suas equipas se sintam satisfeitas e úteis, mas espera delas o empenho proporcional. Do balanço entre a experiência do privado e depois no público diz que o grande desafio é que “no público todos tentam não cumprir, mesmo que concordem com as políticas desenvolvidas, mas é uma forma de estar que se foi interiorizando”.
Passou por todos os patamares do ensino, diz que adora o papel de Professora porque precisa de conhecer os mais novos, “pela garra e porque são cada vez mais exigentes e ávidos de conhecimento”. Acabou por alcançar o topo com as provas de agregação, ficando como Professora Catedrática Convidada da Faculdade. Nessa altura já era a Diretora Clínica de Santa Maria, entre fevereiro de 2013 e setembro de 2014.
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Como foram estes dois anos enquanto Diretora Clínica?
Maria do Céu: Foi muito difícil porque Santa Maria é um hospital universitário de grande dimensão e complicado de gerir. Ouvia muito “há trinta anos que é assim, por que é que se vai mudar agora?” Parece que alguns costumes se tornaram vícios. Um exemplo são as macas nos corredores do internamento! Tinha adjuntos muito bons, estabeleci o Conselho Clínico regular com todos os diretores dos serviços e em que lhes ia dando conta da evolução estratégica que nos era exigida, para controlar a dívida do Hospital. Ouvia as queixas e os problemas. Vou contar-lhe um segredo (ri-se). O João (Lobo Antunes) ficava muito nervoso nas primeiras reuniões da minha Direção Clínica. Dizia, “vai estar ali diante de quarenta diretores, vão dar cabo de si e eu vou ter de a defender”. E eu ria-me e assegurava que tinha experiência de dirigir as reuniões mais complicadas. Tive funções na Ordem dos Médicos e fui candidata a Bastonária mas, por sorte (!) perdi. Mas o Conselho Clínico corria bem porque nós apenas queríamos manter o bom nome do hospital e da Faculdade e era útil, para quem dirigia serviços, saber o que se estava a passar e poder contar os seus problemas que, muitas vezes, eram transversais a todos.
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Arranjam-se inimigos quando se implementam mudanças?
Maria do Céu: Claro, mas não muitos, apenas alguns. Costuma dizer-se que o poder é isolador. Quem tem poder e quer mudar alguma coisa, não pode ceder a pressões e não é fácil.
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Foi deixando escapar alguns detalhes da sua vida pessoal. Falou-me que tinha uma família conservadora. Foi difícil passar por um divórcio?
Maria do Céu: Foi difícil. Quando se tem filhos é sempre muito mais difícil, mas nós passámos pelo síndrome do ninho vazio. Eu fui sempre dizendo às minhas filhas que cama, mesa e roupa lavada era só até aos vinte e cinco anos e, tem graça, porque elas casaram, as duas, aos vinte e cinco. Depois fui avó a partir de 2000. Agora faço uns teatros giríssimos com os meus 7 netos (mostrou-me um vídeo de natal com todos os netos onde recriava o nascimento de Jesus) e levei os mais velhos para Londres para tirarem um curso de inglês, fomos a um pub e tudo. Mas voltando um pouco atrás, casei muito nova (do que não me arrependi) e depois de vinte e oito anos casada, e com os filhos fora, sente-se que é difícil continuar. Depois tive um segundo casamento que durou quinze anos, com uma pessoa interessantíssima, mas com um feitio especial. E foram anos fantásticos de companheirismo… Viajámos imenso, passeámos muito.
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Li há uns tempos uma entrevista de uma das filhas do Professor Lobo Antunes e ela dizia que todos lhe pedem para falar do pai, mas que relembrar dá saudades e que é uma invasão aos seus sentimentos. Será que eu tenho o direito de lhe pedir que o recorde e me fale dele?
Maria do Céu: (É a primeira vez que fecha a expressão) Eu tive uns meses em que me era muito difícil falar dele. A imagem que eu tinha era a imagem final, doente e também não conseguia ouvir música. Agora já ouço música e tenho boas lembranças. Era muito rigoroso, com uma memória fabulosa, lia muito rápido e citava, sabendo qual o livro e a página exata. Tinha uma cultura incrível.
Nós trabalhávamos imenso, mas tínhamos sempre o nosso jantar formal na casa de jantar. Ficávamos horas a conversar sobre tudo, relembro isso com muita saudade. Ríamos muito, tinha um humor delicioso. Viajávamos imenso, corremos o mundo, obriguei-o a andar de bicicleta no Vietname, pelos arrozais, dizia-lhe que só assim se conhecia a cultura deles e fomos convidados para entrar na casa de alguns, são um povo tão doce. Fomos, também, para as Ilhas Quirimbas, em Moçambique, a melhor praia do mundo; fomos inúmeras vezes ao Brasil e andávamos a cavalo. Fizemos vários safaris, na África do Sul e Tanzânia. Quem o conheceu não imagina tudo o que fizemos, mas eu tenho fotografias para provar! (Ri)
Muito antes de estar doente dizia-me: “temos de aproveitar, pois não temos muito tempo. Incrível, não é? E tínhamos tempo para a família, as quatro filhas dele e as minhas duas e depois fomos tendo netos à competição, mas ele ganhou-me porque ficou com nove netos e eu com sete. (Ri)
E tem umas filhas de personalidade forte porque uma delas lhe disse, num dia em que tudo parecia correr mal, que se não tivesse pena de si própria saberia resolver todos os problemas.
Maria do Céu: É verdade. A minha filha mais velha fazia dezoito anos e resolvemos dar-lhe um cão. A empregada quando viu o cão (que tinha diarreia) despediu-se. Nesse dia havia jantar para a família toda e eu tinha um trabalho para apresentar no dia seguinte, ainda com acetatos escritos à mão (outros tempos). Quando a mais nova (16 anos) chegou, eu estava lavada em lágrimas, porque estava tudo a correr mal e ela disse-me “se não tivesses tanta pena de ti própria, organizavas-te e fazias tudo”. E não me esqueci nunca mais disso. Lembro-me do conselho e organizo-me. Nesse dia, houve jantar, acabei o trabalho e o cão lá ficou.
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Talvez sozinha pelo papel profissional que ocupa, sabe que tem de decidir por ela, faça ou não amigos. Tem duas cadelas Epagnaul Breton que leva a passear ao final do dia. Às vezes, reúne os netos todos, escreve um guião e fazem filmes. Acompanhada pelas memórias, recorre a elas através da música de Bach, um dos compositores preferidos do marido, e às fotografias. São todas estas formas que continuam a fazer-lhe companhia quando “precisa” do seu marido João.
Na mesa de reuniões do seu escritório do Infarmed reparei no livro, Cronicas de Vida y de Muerte Memorias de Un Neurocirujano, de João Lobo Antunes. O livro é a compilação de alguns dos seus melhores ensaios sobre a forma de encarar a morte. Talvez porque fosse intrusivo, talvez porque não o conseguisse ler, não abri o livro.
Apesar de não estar em cima daquela mesa, sei que o último livro de Lobo Antunes, Ouvir com Outros Olhos, tem um agradecimento que retribui a companhia e o amor que não morrem: “à Maria do Céu que me fez melhor, quando eu pensava que era obra acabada”.
Maria do Céu Machado é uma mulher inesquecível que não se quer deixar de ouvir, como uma sinfonia tocado ao vivo, de uma só vez.
Em outubro de 2019 fará setenta anos. Espera despedir-se do papel de Professora Catedrática Convidada e dar a sua última aula na Faculdade de Medicina. Dificilmente parará por aí porque a energia que a move ainda não a esvaziou de planos.
A filha tinha razão, com pouca pena de si própria, Maria do Céu Machado não tem tempo a perder para lamentos. Há ainda um tanto para fazer.
Que assim seja.
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Joana Sousa
Equipa Editorial
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Esperava por mim na sala de reuniões, apesar de compromissos anteriores me terem atrasado meia hora. “A Professora está ali à tua espera”, foi como se tivesse recebido um ramo de flores, pouco convencional, bem sei, mas da alegria do encontro, que tanto ansiava, cumprimentei-a com dois beijos, em vez do aperto de mão que nos impõe um certo protocolo social.
“Sabe que trabalhar, trabalha-se em todo o lado, não perdi o meu tempo, não se preocupe”. Agitada entre a agenda de novas reuniões e a discussão sobre a forma como deveria gerir, diplomaticamente, um assunto de trabalho, não dispensava o seu olhar familiar de quem sabe ver os outros por dentro. E, no entanto, em momento algum esse olhar fere quem por ela é observado.
Maria do Céu Machado, atualmente Presidente do Infarmed, é Professora Catedrática Convidada da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e Membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida. Foi Alta Comissária para a Saúde, Membro do Conselho de Escola e do Conselho Científico da Faculdade de Medicina, Diretora Clínica do Centro Hospitalar Lisboa Norte e Diretora do Departamento de Pediatria de Santa Maria. Teve 8 Bolsas de Investigação, 2 Prémios Bial de Medicina Clínica e o Prémio de Qualidade Amélia de Mello. Publicou 163 artigos, 4 livros e 667 comunicações científicas. Agraciada como Grande Oficial da Ordem de Mérito, em 2010, recebeu ainda a Medalha de Ouro do Ministério da Saúde em 2012.
Num mês em que queríamos conhecer o mundo da Pediatria, o pretexto para falarmos era perfeito.
Enquanto me contava das suas memórias de infância e de como os seus dois avôs a fizeram ligar-se à Medicina, reparei no dedo que casava a sua aliança redonda de ouro, à do marido João Lobo Antunes que partiu em outubro de 2016. Ouvi-la é como ter, de fundo, uma melodia suave que toca no que mais temos de precioso, os afetos. Ao fundo, baixinho, soava nos meus ouvidos Ennio Morricone, com a banda sonora do Cinema Paraíso, e imaginava o Toto e o seu amor pelo Alfredo, o “velho” homem que projetava na tela do cinema as cenas proibidas dos beijos dos filmes americanos, assim imaginava eu uma Maria do Céu pequena e cheia de sede de mundo.
Das muitas tardes que passava com os avós que viviam na Guerra Junqueiro, aprendeu a distinguir os primeiros medicamentos, tinha apenas cinco anos, quando começou a ler os nomes dos comprimidos que tentavam tratar o coração do avô Armando. “Ia soletrando por sílabas e assim fui aprendendo a ler aqueles medicamentos todos”.
Mas havia também o avô Manuel, que lhe contava as suas histórias da medicina que a influenciaram desde muito pequena. Tenente-coronel médico, foi feito prisioneiro na I Grande Guerra (1914/1918), na Batalha de La Lys, com muitos outros oficiais portugueses no campo de Rasttat, na Alemanha. Cada preso tinha um cartão que o identificava, com o nome, mas por sorte sem fotografia. Sorte sim, porque como alguém que já não pertence a este tempo, deu a sua palavra de honra que não fugiria e o cartão assim o comprovava. “O meu avô tinha dado a sua palavra e, mesmo quando já os deixavam ir à vila mais próxima, o cartão ficava no campo e ninguém fugia. O valor da palavra de honra! Então sabe o que eles fizeram? Trocaram entre si os cartões e, assim o meu avô não faltou à palavra, mas pôde fugir”.
Apesar dos pais a terem tentado convencer que uma carreira nas Engenharias era mais apropriado do que ser médica, a obstinada e adolescente Maria do Céu de catorze anos deixou-lhes um bilhete, numa noite em que saíram para jantar, “Pais, eu já decidi, quero ir para Medecina”. Na altura a mãe reforçou o erro da palavra e o sentido já tão assertivo, incentivando então que fosse “médeca, se essa era a sua vontade”.
Ria-se, descontraída, à medida que me contava histórias soltas da sua vida. Avisou-me que não teríamos muito mais tempo para falar porque tinha compromissos. Pedi-lhe que nos reencontrássemos. “Está bem, mas mande-me, entretanto, as suas perguntas e eu vou pensando nelas, pode ser?”. Expliquei que não tinha perguntas e que queria apenas ser ouvinte, preferia continuar a conhecer o seu lado espontâneo de quem diz exatamente o que pensa e não o que o convencional. Deixei apenas cair outro tema em cima da mesa – o Professor João Lobo Antunes.
Os olhos brilhantes não me falavam de tristeza, estavam apenas repletos de alegria e uma saudade que o tempo não atenua, sinal que ficou ainda muito amor por viver.
Voltamos a reencontrar-nos, desta vez no Infarmed, onde assume o cargo de Presidente da Autoridade do Medicamento, desde maio de 2017. Num espaço exemplarmente arrumado e com um aroma a baunilha, vê-se ao fundo um quadro que mesmo para qualquer leigo de arte sabe que pertence a Paula Rego. “O João deu-me esse quadro porque diz que essa figura com o estetoscópio sou eu (o lobo), a mandar nos outros todos”. Ri-se, enquanto trabalho ao computador e me diz que recebe uma média de 300 mails por dia e que boa parte implica abrir ficheiros, com longos textos, e depois ainda tem de os analisar. Em cima da mesa há uma fotografia com o Papa Bento XVI, a única fotografia que tem.
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Sento-me sem a certeza de ter escolhido a cadeira certa. Fica à minha frente, “fez bem sentar-se aí, porque esta é a minha cadeira geralmente”. Quando pergunto a razão de não escolher as cadeiras de topo, explica-me que raramente gosta de as ocupar e que as cede por norma ao vice-presidente, ou à vogal, “é menos formal e ficam todos mais à vontade”.
E tinha razão.
Caracteriza-se por ter sido “uma menina de colégio”. Estudou no Sagrado Coração de Maria, durante onze anos, fazendo o 11º e 12º anos no Liceu (atual Escola Secundária) Dona Filipa de Lencastre. “Fui para o Filipa porque no colégio comecei a fazer, exatamente, o contrário do que as freiras exigiam, por exemplo usar collants, o que era proibido e quando se tem quinze anos queremos afirmar-nos.
Sempre boa aluna, ingressou em 1966 na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Dos 700 alunos que entraram no seu ano, só chegaram ao fim 270. Era a falta de numerus clausus que permitia que todos entrassem, mas a seleção natural foi feita no primeiro ano quando conheceram a famosa cadeira de Anatomia, cadeira, aliás, que, tempos depois, acompanharia como Monitora. Pertenceu a um ano de ouro da Medicina onde fez amigos que encontra ainda hoje e em jantares de cinco em cinco anos. Eduardo Barroso (Médico cirurgião), Francisco George (ex Director-Geral da Saúde), Álvaro Carvalho (Psiquiatra e um dos responsáveis pelo Programa de Saúde Mental), José Gameiro (Psiquiatra), Benedita Barata da Rocha (Imunologista e diretora de investigação do Centro Nacional de Investigação Científica francês), António Rendas (antigo Reitor da Nova), Luis Novais (Gastrenterologista), Francisco Abecassis (Radiologista) são alguns dos amigos que lhe ficaram até aos dias de hoje. “Éramos muito unidos e coesos. Acredita que nas aulas práticas, já no sexto ano, chegávamos a ser sessenta alunos? Estou a lembrar-me de uma aula de cirurgia com o Prof. Granate, e um doente numa maca no meio de mais sessenta alunos. Fizemos uma greve às aulas, pedindo que desdobrassem, pelo menos, em dois semestres estas aulas práticas e conseguimos”.
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Nessa altura os alunos eram mais interventivos política e socialmente?
Maria do Céu: Era diferente. Os alunos agora integram o Conselho de Escola e o Pedagógico e são ouvidos com regularidade. A atual Associação de Estudantes faz um trabalho fantástico e interventivo. Na altura nós só tínhamos um delegado de curso, e havia muita solidariedade entre nós. Este é o grupo que se mantém coeso e que se vai encontrando nos jantares. Agora ficamos mais tristes porque já estamos mais velhos. (Dá uma gargalhada)
Maria do Céu Machado é das poucas médicas que percorreu vários lugares, fazendo uma alternância entre Ministério e Hospital, nunca ficando apenas circunscrita ao hospital onde se formou “Não se deve ser oportunista, mas devemos aproveitar as oportunidades e eu tive sorte na vida e sempre gostei que me fizessem desafios”.
Ainda no 6º ano do curso, decidiu que queria casar. “Fui anunciar ao meu pai que ficou muito zangado. Eu era a única filha e estava sempre a provocá-lo”.
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Mas casou?
Maria do Céu: Casei. Mas fiz uma aposta com ele, no dia seguinte ao casamento prometi que fazia um exame. E foi mesmo assim. Casamento às 17h, com duzentos convidados, a família nervosíssima e eu a estudar Psiquiatria. Para lhe dizer a verdade não tive uma nota assim muito boa, mas fiz o exame.
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Quer dizer que nunca descuidou a vida profissional, mesmo com um casamento muito cedo?
Maria do Céu: Casei com vinte e dois anos, tive uma filha com vinte e três e a outra aos vinte e quatro. Foram uns tempos difíceis de conciliação entre a vida pessoal e a profissional.
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Quando aparecem as filhas que implicações tiveram na vida profissional?
Maria do Céu: No ano a seguir a casar, comecei o estágio da prática clínica, o atual internato geral, e a minha primeira filha nasceu em abril de 1973. Nessa altura as médicas não tinham licença de maternidade, nem um único dia de apoio à família. Então o que fazíamos era apresentar atestado de doença, até um máximo de 30 dias por ano. Ao fim de duas semanas fui trabalhar e fazer urgência de 24h e levava a minha filha para casa da minha mãe, que tinha uma empregada que já me tinha “criado” e ao meu irmão. Eu devia pedir uns meses de retroativos de licença, pois não sou menos mãe que as outras. (ri-se).
Em 1975, um grupo do nosso curso muito interventivo e revolucionário, percebendo que o acesso à saúde fora dos grandes centros era muito deficiente (não havia rede de Centros de Saúde nem Serviço Nacional de Saúde), promoveu, junto do Secretário de Estado, o que seria depois conhecido como o Serviço Médico à Periferia. Fomos distribuídos por todo o país. Quem tinha filhos pequenos, como eu, ficaria mais perto de Lisboa. Eu escolhi ficar na zona de Benavente, Coruche e Salvaterra de Magos. Quando chegamos lá, não imagina as diferenças que vimos, só em Salvaterra havia apenas um médico que nos disse que bastava irmos uma vez por semana cumprir as horas de urgência. Nós, com o tal espírito revolucionário (Verão quente de 1975), desejávamos tratar as populações e cumprimos sempre o horário completo e de presença física. As pessoas não estavam habituadas a ser observadas. Numa consulta, pedi a um senhor que se queixava de tosse que tirasse a camisa para o auscultar e ele, aflito, perguntou: posso voltar amanhã para tomar banho e vestir uma camisa lavada?
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Mas e depois desse período?
Maria do Céu: Fizemos o teste de admissão à especialidade e tive vaga em Pediatria, exatamente o que queria. Ainda cheguei a fazer cirurgia, mas com as duas filhas pequenas percebi que implicava não ter horas para ser mãe.
No estágio geral, tinha sido colocada no Hospital Curry Cabral, cujo o Director do Pavilhão da Pediatria (doenças infecciosas) era José Mateus Marques. As reuniões do serviço eram às quartas à noite e sábados de manhã, todos iam, ninguém faltava ou protestava por estes horários, o que agora seria impensável. Era um clínico extraordinário, houve uma epidemia de cólera e outra de difteria e as crianças eram tantas, tantas, que as deitávamos no chão e com os mais pequeninos, tirávamos as gavetas das secretárias, e eles ficavam dentro das gavetas, com um pequeno cobertor, e com o soro, servindo assim as gavetas de berço. Passámos ali tempos terríveis. Mas Mateus Marques era tão fantástico que o nosso grupo (éramos uns 6) escolheu todo a especialidade de Pediatria.
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Maria do Céu foi sempre dizendo que queria ser apenas “uma Pediatra feliz”, mas a vida foi-lhe colocando desafios que a fariam ser muito mais do que cuidadora dos mais pequenos. Mas isso seria mais tarde, agora, convicta do seu caminho, submetia-se às provas necessárias e fica colocada na Estefânia, entre 1976 e 1983.
Diz que nunca teve ligação aos recém-nascidos, preferindo sempre os adolescentes, escrevendo, recentemente, um livro sobre eles – “Adolescentes”. Mas durante uns anos, os adolescentes não seriam o seu foco de estudo, nem tão pouco na prática clínica. Lutadora e sempre com vontade de evoluir para outros patamares, mesmo que o caminho não fosse numa linha reta, concorreu à Maternidade Alfredo da Costa. As provas públicas incluíam uma “prova de caras”, o que significava fazer a história, observar a criança, e perante o júri, e sem apontamentos, fazer a discussão clínica e a orientação terapêutica. Dos trinta e três candidatos, foi a Pediatra Maria do Céu que ficou no primeiro lugar. Esteve 13 anos na Maternidade, onde fez o trabalho do seu Doutoramento na Universidade Nova (onde era Assistente), sobre “Uropatia malformativa” de diagnóstico pré natal, ou seja, sobre os bebés que nasciam com problemas nos rins e vias urinárias. Nesse período estagiou em Cambridge e Londres, em diagnóstico pré natal e cuidados intensivos a recém-nascidos.
Uma nova fase começava na sua vida em 1996. O Hospital Amadora-Sintra, apesar de hospital público, era gerido por um grupo privado – o Grupo José de Mello Saúde - e nessa altura procuravam a pessoa certa para dirigir a Pediatria. “O hospital era completamente novo, o departamento da Pediatria era enorme e, após aceitar o convite, disseram-me para apresentar um plano sobre recursos humanos, equipamento e organização em tempo recorde. Escolhi os meus chefes de serviço: Gonçalo Cordeiro Ferreira (Pediatria), Helena Carreiro (Neonatologia) e Paulo Casela (Cirurgia pediátrica). Começámos em março e abrimos a 1 de junho, com uma urgência pediátrica, duas áreas de cuidados intensivos, uma só de neonatais, a enfermaria e ao todo tínhamos mais de 90 camas”.
Por ser um grupo privado não precisou de se reger por concursos públicos, fazendo as escolhas exatas e justificando as decisões de compra como uma gestora que conduz uma empresa que existe para ter rentabilidade. O perfil de gestora, que tão bem a caracteriza, herdara dos tempos da Maternidade, onde decidiu fazer um curso apoiado pela União Europeia, “ser gestora é um misto de Psicologia e Matemática”.
No seu novo hospital, fez uma análise exaustiva sobre as patologias da população pediátrica daquela área, e avaliou as necessidades para uma resposta adequada. “Não imagina como a ausência de burocracia evita desperdício”.
Ficou onze anos com o Grupo Mello que resume como um “tempo extraordinário e de grande aprendizagem”. A otimização de recursos humanos e técnicos deu a Maria do Céu Machado uma macro visão que ajudava a fortalecer a Medicina. Chegou ainda a Diretora Clínica entre 2005 e 2006, sempre com o Amadora-Sintra com gestão privada, mas já começavam a surgir as primeiras turbulências de novos ares para o Hospital. É nesta fase que recebe o convite do Ministro da Saúde, Luís Filipe Pereira, para ser Presidente da Comissão Nacional de Saúde da Criança e Adolescente. Aceitou e desenvolveu várias ações em articulação com as instituições do Ministério. Já com o sucessor na Saúde, o Ministro António Correia de Campos, é convidada para ser Alta Comissária da Saúde, funções que inicia em novembro de 2006, aceitando mais um desafio. “Perguntei ao Ministro o que era representava esse cargo e ele respondeu que era uma espécie de Big Brother da Saúde, porque era preciso coordenar o Plano Nacional de Saúde e as várias entidades envolvidas”.
Passou a ser a responsável pelo planeamento estratégico, abrangendo áreas tão diferentes como as doenças mentais, sida, doenças oncológicas e cardiovasculares, bem como as áreas internacionais: União Europeia, Organização Mundial de Saúde e Cooperação e Desenvolvimento. Do microambiente dos hospitais, atravessava a escala global. “Era uma dimensão brutal a que eu não estava habituada. Isto custou-me muito, mas sob o ponto de vista de Saúde Pública foi como fazer uma nova especialidade”.
Recebe novo convite de Adalberto Campos Fernandes (então Presidente do Conselho de Administração do CHLN), e depois de quatro anos e meio como Alta Comissária, regressa a Santa Maria onde diz “ter fechado um ciclo que se iniciara tanto tempo antes”.
O regresso a Santa Maria e à Pediatria não foram, no entanto, fáceis. Trinta e oito anos depois tinha noção do ambiente fechado e conservador e da diferença entre mundos onde circulara. “O Departamento de Santa Maria é ótimo e as pessoas são muito diferenciadas e competentes, mas estavam habituadas a um Diretor que era escolhido internamente e alguém de fora era difícil de aceitar”.
Demasiado empreendedora para não criar mudança por onde passa, conseguiu fazer obras na Pediatria e melhorar algumas unidades, passando outras a Serviços, fortalecendo-as com maior responsabilidade. Para tudo isto traçou um projeto a três anos. Mais uma vez envolveu todas as pessoas na sua gestão. Exigente, gosta, no entanto, que as suas equipas se sintam satisfeitas e úteis, mas espera delas o empenho proporcional. Do balanço entre a experiência do privado e depois no público diz que o grande desafio é que “no público todos tentam não cumprir, mesmo que concordem com as políticas desenvolvidas, mas é uma forma de estar que se foi interiorizando”.
Passou por todos os patamares do ensino, diz que adora o papel de Professora porque precisa de conhecer os mais novos, “pela garra e porque são cada vez mais exigentes e ávidos de conhecimento”. Acabou por alcançar o topo com as provas de agregação, ficando como Professora Catedrática Convidada da Faculdade. Nessa altura já era a Diretora Clínica de Santa Maria, entre fevereiro de 2013 e setembro de 2014.
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Como foram estes dois anos enquanto Diretora Clínica?
Maria do Céu: Foi muito difícil porque Santa Maria é um hospital universitário de grande dimensão e complicado de gerir. Ouvia muito “há trinta anos que é assim, por que é que se vai mudar agora?” Parece que alguns costumes se tornaram vícios. Um exemplo são as macas nos corredores do internamento! Tinha adjuntos muito bons, estabeleci o Conselho Clínico regular com todos os diretores dos serviços e em que lhes ia dando conta da evolução estratégica que nos era exigida, para controlar a dívida do Hospital. Ouvia as queixas e os problemas. Vou contar-lhe um segredo (ri-se). O João (Lobo Antunes) ficava muito nervoso nas primeiras reuniões da minha Direção Clínica. Dizia, “vai estar ali diante de quarenta diretores, vão dar cabo de si e eu vou ter de a defender”. E eu ria-me e assegurava que tinha experiência de dirigir as reuniões mais complicadas. Tive funções na Ordem dos Médicos e fui candidata a Bastonária mas, por sorte (!) perdi. Mas o Conselho Clínico corria bem porque nós apenas queríamos manter o bom nome do hospital e da Faculdade e era útil, para quem dirigia serviços, saber o que se estava a passar e poder contar os seus problemas que, muitas vezes, eram transversais a todos.
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Arranjam-se inimigos quando se implementam mudanças?
Maria do Céu: Claro, mas não muitos, apenas alguns. Costuma dizer-se que o poder é isolador. Quem tem poder e quer mudar alguma coisa, não pode ceder a pressões e não é fácil.
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Foi deixando escapar alguns detalhes da sua vida pessoal. Falou-me que tinha uma família conservadora. Foi difícil passar por um divórcio?
Maria do Céu: Foi difícil. Quando se tem filhos é sempre muito mais difícil, mas nós passámos pelo síndrome do ninho vazio. Eu fui sempre dizendo às minhas filhas que cama, mesa e roupa lavada era só até aos vinte e cinco anos e, tem graça, porque elas casaram, as duas, aos vinte e cinco. Depois fui avó a partir de 2000. Agora faço uns teatros giríssimos com os meus 7 netos (mostrou-me um vídeo de natal com todos os netos onde recriava o nascimento de Jesus) e levei os mais velhos para Londres para tirarem um curso de inglês, fomos a um pub e tudo. Mas voltando um pouco atrás, casei muito nova (do que não me arrependi) e depois de vinte e oito anos casada, e com os filhos fora, sente-se que é difícil continuar. Depois tive um segundo casamento que durou quinze anos, com uma pessoa interessantíssima, mas com um feitio especial. E foram anos fantásticos de companheirismo… Viajámos imenso, passeámos muito.
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Li há uns tempos uma entrevista de uma das filhas do Professor Lobo Antunes e ela dizia que todos lhe pedem para falar do pai, mas que relembrar dá saudades e que é uma invasão aos seus sentimentos. Será que eu tenho o direito de lhe pedir que o recorde e me fale dele?
Maria do Céu: (É a primeira vez que fecha a expressão) Eu tive uns meses em que me era muito difícil falar dele. A imagem que eu tinha era a imagem final, doente e também não conseguia ouvir música. Agora já ouço música e tenho boas lembranças. Era muito rigoroso, com uma memória fabulosa, lia muito rápido e citava, sabendo qual o livro e a página exata. Tinha uma cultura incrível.
Nós trabalhávamos imenso, mas tínhamos sempre o nosso jantar formal na casa de jantar. Ficávamos horas a conversar sobre tudo, relembro isso com muita saudade. Ríamos muito, tinha um humor delicioso. Viajávamos imenso, corremos o mundo, obriguei-o a andar de bicicleta no Vietname, pelos arrozais, dizia-lhe que só assim se conhecia a cultura deles e fomos convidados para entrar na casa de alguns, são um povo tão doce. Fomos, também, para as Ilhas Quirimbas, em Moçambique, a melhor praia do mundo; fomos inúmeras vezes ao Brasil e andávamos a cavalo. Fizemos vários safaris, na África do Sul e Tanzânia. Quem o conheceu não imagina tudo o que fizemos, mas eu tenho fotografias para provar! (Ri)
Muito antes de estar doente dizia-me: “temos de aproveitar, pois não temos muito tempo. Incrível, não é? E tínhamos tempo para a família, as quatro filhas dele e as minhas duas e depois fomos tendo netos à competição, mas ele ganhou-me porque ficou com nove netos e eu com sete. (Ri)
E tem umas filhas de personalidade forte porque uma delas lhe disse, num dia em que tudo parecia correr mal, que se não tivesse pena de si própria saberia resolver todos os problemas.
Maria do Céu: É verdade. A minha filha mais velha fazia dezoito anos e resolvemos dar-lhe um cão. A empregada quando viu o cão (que tinha diarreia) despediu-se. Nesse dia havia jantar para a família toda e eu tinha um trabalho para apresentar no dia seguinte, ainda com acetatos escritos à mão (outros tempos). Quando a mais nova (16 anos) chegou, eu estava lavada em lágrimas, porque estava tudo a correr mal e ela disse-me “se não tivesses tanta pena de ti própria, organizavas-te e fazias tudo”. E não me esqueci nunca mais disso. Lembro-me do conselho e organizo-me. Nesse dia, houve jantar, acabei o trabalho e o cão lá ficou.
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Talvez sozinha pelo papel profissional que ocupa, sabe que tem de decidir por ela, faça ou não amigos. Tem duas cadelas Epagnaul Breton que leva a passear ao final do dia. Às vezes, reúne os netos todos, escreve um guião e fazem filmes. Acompanhada pelas memórias, recorre a elas através da música de Bach, um dos compositores preferidos do marido, e às fotografias. São todas estas formas que continuam a fazer-lhe companhia quando “precisa” do seu marido João.
Na mesa de reuniões do seu escritório do Infarmed reparei no livro, Cronicas de Vida y de Muerte Memorias de Un Neurocirujano, de João Lobo Antunes. O livro é a compilação de alguns dos seus melhores ensaios sobre a forma de encarar a morte. Talvez porque fosse intrusivo, talvez porque não o conseguisse ler, não abri o livro.
Apesar de não estar em cima daquela mesa, sei que o último livro de Lobo Antunes, Ouvir com Outros Olhos, tem um agradecimento que retribui a companhia e o amor que não morrem: “à Maria do Céu que me fez melhor, quando eu pensava que era obra acabada”.
Maria do Céu Machado é uma mulher inesquecível que não se quer deixar de ouvir, como uma sinfonia tocado ao vivo, de uma só vez.
Em outubro de 2019 fará setenta anos. Espera despedir-se do papel de Professora Catedrática Convidada e dar a sua última aula na Faculdade de Medicina. Dificilmente parará por aí porque a energia que a move ainda não a esvaziou de planos.
A filha tinha razão, com pouca pena de si própria, Maria do Céu Machado não tem tempo a perder para lamentos. Há ainda um tanto para fazer.
Que assim seja.
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Joana Sousa
Equipa Editorial