Espaço Aberto
As crianças têm Educadoras no Hospital – Uma visita guiada por Rosário Botelho

Educadora de infância há trinta e seis anos, Rosário Botelho sempre preferiu desenvolver trabalho, não só com as crianças, mas com as suas famílias.
Foram os vinte anos de trabalho na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e a relação com vários grupos socias carenciados e a sua intervenção social em bairros degradados, que lhe deram a estrutura emocional que hoje lhe permite coordenar a equipa das Educadoras do Hospital de Santa Maria.
Há dezassete anos em Santa Maria, pediu ao Ministério da Solidariedade transferência para o Ministério da Saúde, “queria estar no direto, tinha saudades de estar com crianças”. Só ficou três anos no contacto direto, rapidamente foi destacada para ficar como coordenadora. Tem como função principal gerir uma equipa de onze Educadoras (nove na Pediatria e duas na área de Otorrino) e de lhes levantar o ânimo, cada vez que ele quer fugir. Nos bastidores faz com que tudo esteja organizado para que possam ser eficazes no terreno. Mas para ter criatividade, num tempo em que os recursos humanos e financeiros são escassos, há que fazer um esforço redobrado. Mas consegue-se. Até porque Rosário é uma mulher que já traz, na sua mochila do passado, longas histórias sobre como ajudar os outros.
Cada serviço da Pediatria tem uma ou mais Educadoras: internamento, consulta externa e consulta de neurodesenvolvimento, todas identificadas como grandes áreas de ação. Distribuídas por pisos diferentes, encontram-se diariamente, na sala das enfermeiras, para um ponto de situação e semanalmente na sua sala do piso 8, altura em que tentam refletir sobre as situações e procurar um curto refúgio para recarregar as baterias. Todos os dias sabem que nunca saberão o que as espera. Esse é o grande desafio que têm diante delas, no inesperado, saber traçar um plano de atividades lúdicas que permita que as crianças continuem a poder ter o seu desenvolvimento e aprendizagem, como se estivessem no seu ambiente normal.
Muitos dos meninos vêm apenas durante o dia ao hospital e ficam na sala de atividade, fazendo tratamentos, outras em internamento e algumas em quartos individuais, o que obriga a que mediante cada contexto, se adeque a mensagem que se quer passar. “Há crianças que aparecem aqui com doenças crónicas e ainda nem falam, de tão pequenas que são, e nós fazemos um plano de desenvolvimento para as acompanhar, porque elas ficam muito tempo connosco. Depois há outras situações que se resolvem com menos tempo de permanência no hospital, oferecemos uma quantidade de atividades, para que se sintam o melhor possível, indo ao encontro das suas rotinas habituais (aprender e brincar). O objetivo é que os tratamentos se tornem menos dolorosos”.
Talvez pelas alterações climatéricas, talvez porque a Medicina prolonga e dá cada vez mais vida humana, criando possibilidade de sobreviver quando tal era impensável, muitas crianças sofrem demasiados internamentos, por serem incapazes de resistirem sozinhas e sem o apoio de máquinas. Rosário e a sua equipa já viram partir muitos meninos assim. “Todas nos deixam uma recordação, mas muitas delas foram adotadas pelo nosso coração”.
Dos filhos do coração, dois estão ligados a Rosário por sangue e pedem-lhe, ainda hoje, que a mãe não confunda as histórias do hospital, com as da sua vida. Diz que não dá o seu número de telemóvel a ninguém, para se proteger emocionalmente, mas também diz que todos sabem onde a encontrar.
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Como reagem os pais quando tentam criar dinâmicas de trabalho com os seus filhos?
Rosário Botelho: Muito bem. Eu acho que os pais sentem que podem confiar em nós e ir a casa tomar um banho, ou comer, ou ir tratar dos outros irmãos que não estão presentes. Porque nós estamos cá. Isto não retira a importância das enfermeiras ou dos médicos, temos papéis muito diferentes, mas completamo-nos. Essencialmente ajudamos muito os pais e ensinamos formas de brincar com os próprios filhos. Os brinquedos podem fazer, mais ou menos, sentido de acordo com o desenvolvimento da criança, mas também de acordo com a sua idade. O nosso outro papel está relacionado diretamente à criança, dou-lhe exemplos, perante um doente diabético vamos, de forma lúdica, ensinar que cuidados deverá ter e a melhor forma de enfrentar a nova e dura batalha que tem pela frente. Regularmente são dinamizadas ações de informação e repito, sempre de forma lúdica e em conjunto com outras valências (médicos, enfermeiras, dietistas, terapeutas, etç). Com isto pretendemos sensibilizar as crianças e os seus cuidadores sobre a melhor forma de encarar a situação e qual a melhor forma de encarar o problema. Isto também se aplica a outras patologias como a hipertensão, obesidade, entre outras.
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Falámos dos pais, mas como reage a própria criança que não tem tempo para se ir adaptando?
Rosário Botelho: E que vem neste cenário: doente, frágil, com a mãe nervosa, o pai ansioso. Quando entramos na sala onde estão, há muitas que nos olham de lado e não há nem um sorriso. Todos os dias nos vamos aproximando um bocadinho mais. Muitas vezes a nossa aproximação é pela mãe e quando ela sente que conquistámos a mãe, então elas vão aceitando também a nossa presença. Tentamos perceber com os pais os hábitos que têm em casa e perceber os gostos para as podermos cativar. Não me lembro de nenhuma situação em que uma Educadora tenha dito que não conseguiu conquistar a criança.
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Como é que a Educadora se sente neste que é o seu meio profissional, mas que tem muito de pessoal?
Rosário Botelho: Lidar com o tema da morte, por exemplo, é muito duro, nós não estamos preparadas para isso. Nós não somos da área clínica. Temos que nos apoiar muito umas às outras quando vivemos um caso de perda. Mas, mesmo sem falar de morte, perante uma criança que está em sofrimento, temos de conversar e descobrir a melhor forma de a estimular procurando o melhor bem-estar para ela. Temos de ter a capacidade de criar e imaginar alternativas, para a criança, mas para a própria mãe que vem desesperada. Estes cuidadores estão muito nervosos porque veem as suas crianças a serem picadas, os médicos que não lhes dizem logo o diagnóstico enquanto não lerem todos os exames. Estes pais deparam-se com tanta informação, que nós somos o lado bom da questão. Nós apelamos à calma e damos segurança e não damos remédios, nem más notícias. Mas também por tudo isto temos de nos cuidar entre nós. E depois vamos para casa e temos o nosso quotidiano, como qualquer trabalhador, só que dificilmente esquecemos o sofrimento dos pais e das crianças. É um papel muito desgastante.
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Qual é o grande desgaste que se sente?
Rosário Botelho: Temos de estar sempre bem e puxar pelos outros. Aprendi a ser otimista, coisa que não era. Aprendi muito quando andei nos bairros sociais e tornei-me muito otimista. E aqui também se aprende muito com cada criança e com cada pai. Um sorriso, que dantes me passava despercebido, agora enche-me o dia. Por isso veja, o bom, o que me faz adorar o que faço e vir aos pulos, é estar no hospital e o contacto com os miúdos. O que me cansa é a burocracia para se conseguir alguma coisa, a falta de recursos e os maus ordenados das minhas Educadoras. Tenho três categorias de Educadoras, umas com estatuto de carreira docente, outras licenciadas, e por último, algumas não licenciadas, mas formalmente têm todas a mesma função. Ora, como é que posso puxar por elas e pedir que se animem, se não pode faltar um dia que ainda lhe descontam o ordenado? Tenho casos em que o tempo que elas estão aqui não conta sequer para carreira de docente, por isso, se forem para outro emprego começam do zero. Como não podemos sentir as equipas zangadas e tristes? O bem-estar da equipa tem muita influência. O cansaço também diz respeito à falta de meios para conseguir coisas simples, como material de desgaste necessários para atividades diárias, as tintas, telas, colas, papel. Muitas vezes compramos os materiais em falta com o nosso dinheiro, ou são os pais que os oferecem. O desgaste vem daqui, não das crianças, o que não invalida que tenhamos casos muitos duros emocionalmente.
Posso dizer que as atividades realizadas pela equipa de Educadoras ajudam muito na recuperação e aceitação da doença.
No meu primeiro ano aqui no hospital perdemos um jovem com uma doença crónica e eu estive o último mês ao lado dele. Numa manhã cheguei aqui e ele tinha partido. Foi o desabar de tudo. Fui ter com a Pediatra, num pranto, e ela dizia para me lembrar sempre dos últimos dias e como tinham sido. Na verdade, foram giríssimos porque fizemos desenhos, ele fez as caricaturas de nós todos, falámos sobre a morte… Como ele esteve bem nos últimos dias... Só assim faz sentido a nossa presença.
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As crianças sabem o que estão a passar?
Rosário Botelho: Sabem. E sabem quando vão partir. Há duas semanas fui dar apoio a uma criança que estava nos Cuidados Intensivos. A enfermeira chefe chamou-me e pediu-me apoio, porque a criança estava deprimida. Encontrei o pai que me disse que a filha teria comentado que estava pronta para fechar os olhos. Ela tinha doze anos. Fui ter com ela e não reagiu, nem abriu os olhos. No dia a seguir voltei, ela abriu os olhos e sorriu-me. Eu levei-lhe os filmes que ela gostava. Ela faleceu nessa noite. Mas sorriu para mim, para o pai, deixou o pai por os dvd’s, mas já estava a sofrer há muito tempo. E partiu logo a seguir. As nossas crianças dão-nos lições que não se espera. Tenho outro caso de uma criança de quatro anos que, aparentemente, não se via nada mas estava em perigo de vida, a mãe vinha em pânico e eu perguntei-lhe que brincadeiras ela gostava de fazer, respondeu, “só quero que trates da minha mãe, porque ela está muito triste”. A boa notícia é que hoje ela está ótima e cheia de vida. A minha ligação não é só às crianças, tenho laços muito fortes a alguns cuidadores.
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As mães também precisam de apoio.
Rosário Botelho: Muito, mas eu não forço esse apoio, dou-lhes espaço. Eu conheci uma mãe fantástica, veio cá durante anos e tinha de fazer muito esforço a cuidar do filho e a levantá-lo. O filho foi crescendo e foi-se tornando mais pesado e ela resistia sempre, pegava nele, tratava dele. Todos os anos ela liga-me nos meus anos e no natal. Ela perdeu o filho, mas às vezes ainda vem ao hospital. Um destes dias viu-me e eu fiquei a pensar que se calhar é mau ver-me porque se lembra do filho…
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Se calhar é bom vê-la para se lembrar mais do filho…
Rosário Botelho: Pelos vistos é. Quando nos encontrámos, demos um grande abraço e chorámos muito, mas nessa altura para mim já é fácil chorar com ela.
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Nós temos sempre uma tendência para tentar encontrar respostas para o que nos acontece na vida. A Rosário tem uma resposta para a inversão da ordem natural da vida quando uma mãe, um pai, perde um filho?
Rosário Botelho: Não há uma explicação. Não consigo encontrar uma razão. Mas há uma coisa que eu consigo perceber agora e que não percebia. Eu estive dez anos na consulta de desenvolvimento e que acumulava com a coordenação e vi coisas que têm significado. Quando se está diante de uma criança com atraso global de desenvolvimento e, ao início, ela não tem qualquer reação, começamos a trabalhar com ela, fazemos uma festa e ela até se mexe, identifica um determinado som e distingue uma pessoa da outra, apesar de não ver. Mas tem outro significado é que os pais que perdem uma criança assim, perdem como qualquer outra mãe. Dói o mesmo.
Eu já tive Educadoras que se foram embora por não aguentarem este embate e eram, profissionalmente, excelentes, mas o sofrimento era tanto que elas não conseguiram lidar com estas histórias de vida. Nós temos que encontrar o equilíbrio entre a distância e o envolvimento e esse compromisso é o mais difícil de se fazer.
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As crianças do Hospital de Santa Maria recebem visitas periódicas, essencialmente, de jogadores do Benfica, cantores, atores e outras pessoas anónimas que aparecem para dar presentes e fazer companhia. A Fundação Luis Figo é a mais presente no apoio às crianças, mas outras Fundações se mantêm atentas, F. Oriente, F. Benfica, bem como os alunos de Medicina da Faculdade que partilha instalações com o hospital. Têm ainda casos como uma médica de Santa Maria que, no último aniversário do filho, pediu que no lugar de presentes para ele, os dessem às crianças que estão doentes. Foi um sucesso. O hospital conta ainda com a equipa Nariz Vermelho que está presente duas vezes por semana. Existem ainda os Best Buddies, um projeto composto pelos alunos da Associação de Estudantes da Faculdade e que pretende criar “melhores amigos” com um perfil que combine com a criança, ou adolescente, doente. Têm, ainda, a Associação Crianças de Santa Maria.
No dia 1 de junho, e noutras ocasiões especiais como o natal, ou aniversários, e na junção de todas estas vontades, oferecem-se brinquedos às crianças. Para que tal aconteça são precisas ajudas, o mesmo que dizer que há uma lista de desejos que qualquer um de nós pode realizar: caixas de música para bebés, peluches e brinquedos para todas as idades, jogos didáticos, materiais de pintura e desenho, papel, telas, pincéis e tintas.

Elisabete Vaz, Helena Naik, Filipa Nunes, M. Manuela Xavier, Bárbara Camara, Daniella Alegre, Margarida Veloso, Rita Guerreiro, Rita Cruz, M. Manuela Ramos são as Educadoras que, todos os dias, chegam a Santa Maria com a missão de ensinar e fazer sorrir, uma criança que seja. O desafio é grande, duro, mas é possível e é isso que as mantém.
Espalhadas pela sala das Educadoras estão fotografias da equipa, quadros pintados por elas, ou por meninos que estavam internados. Entre papéis de seda e cartolinas coloridas estão fotografias de dias especiais e pessoas marcantes e que deixaram legado e saudades.
Sobre a coordenadora das Educadoras, Rosário Botelho, há sempre a boa perspetiva que prevalece, mesmo quando o cenário é mais cinzento. Porque quando lhe dizem que lida todos os dias com o sofrimento, responde que lida, essencialmente, com as crianças que ficam boas.
Positivo, não é?
Joana Sousa
Equipa Editorial
