Investigação e Formação Avançada
Susana Constantino – Uma Investigadora que procura saber se doses baixas e moderadas de radiação ionizante poderão promover cardio-toxicidade

Diz que não está inspirada para falar como é habitual, pelo cansaço que sente e que é visível nos seus olhos. As palavras custam a sair nos primeiros segundos de conversa, ganhando o compasso ritmado que já lhe conhecia, onde as ideias fervilham com uma vontade imensa de criar paixão nos outros, quando fala de Ciência.
Susana Constantino, Professora de Bioquímica da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e Investigadora no Centro Cardiovascular da Universidade de Lisboa (CCUL), é uma comunicadora nata e isso é-lhe intrínseco, com ou sem cansaço.
Fala da Ciência com tanta paixão que me explica que “nem sempre houve bom senso” quando falou dos seus caminhos a investigar. Área que por ser muito competitiva, há que ter alguma reserva nas informações que se partilham, ainda assim, não se arrepende de nenhuma conversa científica tida até hoje.
“Eu até interajo com a formiga se ela tiver alguma coisa para me ensinar”, diz-me. Mas não é só uma pessoa que quer apreender com os outros, por alguma razão é também Professora e tenta conquistar nos alunos a mesma sede que sente de conhecimento. Fazer apenas investigação não lhe traria a realização suficiente, porque passar o conhecimento aos outros é quase uma missão. Sem presunção, quer ter o condão de poder marcar a vida de alguém, como fizeram consigo e talvez a grande responsável por ser, também, professora seja a sua mãe. “O gosto por ensinar está nos genes, porque a minha mãe foi Professora do 1º ciclo do Ensino Básico, e a capacidade que ela tinha e ainda tem de nos transmitir conhecimento, é incrível. Tive na minha mãe um exemplo materno, mas muito profissional, o ensino para ela era lúdico, foi ela que me ensinou a ter método de estudo”.
Está, aliás, rodeada de excelentes professores que a foram marcando nas escolhas da vida, “ ainda um destes dias vi a minha Professora de Biologia do 10º ao 12º ano. Estava a almoçar com o meu filho Pedro, que morreu de vergonha por me ver a interpelar a Professora, mas fui dar-lhe um beijinho e disse-lhe que segui Biologia porque me marcou imenso as aulas que ela me deu; esta Professora não dava notas boas, era extremamente exigente”.
O telefone toca e numa tentativa de o silenciar, mostra-me o visor e explica que os filhos já mexeram, certamente, no aparelho que já não obedece às suas ordens. Mostra-me o visor e é assim que sou apresentada ao Pedro de oito, ao Tiago de seis e à Joana de quatro anos. Uma família inicialmente difícil para conseguir, foi crescendo porque a vida é sempre um presente e uma bênção.
Não consegue ver um filme a passar sem intervir nele. Precisa de tocar os outros, para acrescentar valor à Ciência. Aprendeu sempre com os mais experientes e diz que continua a precisar deles para continuar a crescer. Quando conhece alguém, como a Professora Manuela Fiuza, sabe que conviverá com elas a seguir e por muitas vezes mais, obstinação de quem não deixa de desbravar caminho, “Eu conheci-a e pensei logo que teria de lhe enviar um mail porque teríamos sem dúvida interesses em comum”.
A sua área de ação é sobre a Vasculatura (vasos sanguíneos) e consequentemente da célula endotelial (célula que reveste os vasos sanguíneos). São os vasos que a ligam ao CCUL. “A nossa investigação tem dois focos: um na área Oncológica, onde os vasos são os responsáveis por fornecer nutrientes e oxigénio à célula tumoral contribuindo para o seu crescimento e formação de mestástases, e onde estamos convictos que se conseguíssemos diminuir a fonte de nutrientes ou o veículo para o tumor ir para outro local, o tumor não se desenvolveria da mesma forma. A outra área de ação é na doença com insuficiência vascular, onde, se conseguíssemos induzir a formação de mais vasos, poderíamos ir ao encontro de uma solução terapêutica”.
O Serviço de Cirurgia Vascular, que também faz parte do CCUL, juntou-se a Susana Constantino, onde iniciaram um ensaio clínico exploratório.
Quando começou o seu próprio grupo de investigação, em 2008, tentou encontrar um nicho próprio e foi ao encontro dos efeitos biológicos causados pela Radiação Ionizante. Inicialmente interessou-se por saber como é que a Radiação poderia modular a vasculatura. Na verdade, sabia que mundialmente já se investigava muito nesta área, mas sabia, também, que o foco dessa investigação era sobre a vasculatura tumoral e a “modulação da radiação ionizante maioritariamente na área tumoral”. Foi então que, ao interagir com o Serviço de Radioterapia, e ao observar o que era feito ao doente oncológico, se apercebeu que não só a área tumoral era exposta à radiação, como também os tecidos saudáveis que rodeavam o tumor, mas em doses mais baixas.
Foi nestes tecidos envolventes que desenvolveu a sua matéria de estudo, olhando para as doses sub-terapêuticas de radiação ionizante em redor do tumor.
O caminho percorrido para tentar encontrar respostas só foi possível pela colaboração estreita com o Serviço de Radioterapia.
Isabel Monteiro Grilo era a Diretora do Serviço de Radioterapia quando começou, “uma mulher com um interesse em investigação, genuíno. Permitiu-me investigar, abrindo as portas do Serviço de tal forma que me permitiu interagir com as equipas, o que nos deu uma vantagem pioneira. Posteriormente, todas as diretoras que o Serviço já teve, após a saída da Prof.ª Isabel Monteiro Grillo, Dra. Marília Jorge ou Dra. Filomena Pina, atual diretora, partilham o mesmo interesse pela investigação estando certas que ela trará mais conhecimento ao serviço do doente. Todas as equipas que fazem parte deste serviço têm permitido que o nosso trabalho se faça com muito rigor e qualidade”.
Ao analisar os planos de tratamento feito aos doentes, Susana Constantino percebeu quais os tecidos que eram expostos a doses sub-terapêuticas. Isto permitiu desenvolver diferentes modelos animais, expô-los às mesmas doses de radiações a que os doentes são expostos, observando depois o efeito biológico que isso causava. “A colaboração é tão estreita, com o Serviço, que permite fazer uma verdadeira investigação de translação e sermos competitivos mundialmente”.
A comunidade internacional viu a viabilidade e validade da pergunta de Susana Constantino e o primeiro a afirmá-lo foi Marc Mareel.
Mas voltemos ao ano de 2008, ano em que colocava a pergunta que daria início à sua investigação. Foi nesse mesmo ano que foi convidada a ir ao IPATIMUP, no Porto, onde conheceu, Marc Mareel, um investigador e radio-oncologista, Belga, da Universidade de Ghent e que apesar de já reformado, tornar-se-ia seguramente, no seu grande mentor e parceiro de longa viagem. “Fui a correr para o Porto, avisando apenas a família por telefone que ia chegar muito tarde, na altura não tinha filhos e podia fazer estas coisas com mais facilidade, era uma oportunidade única. Ouvi-o sobre a sua vasta investigação na área da radiação ionizante e modulação das células na área tumoral. No final da apresentação ele disse que se fosse novo e se pudesse começar o seu trabalho, iria olhar para os efeitos da radiação nos tecidos que rodeiam a área tumoral. Referiu a importância de se compreender os efeitos da radiação sub-terapêutica tanto na recidiva tumoral, quanto na metastização. O meu entusiasmo foi total. O final da sua apresentação coincidia com o inicio da minha investigação naquela área, e Marc Mareel foi o primeiro que, internacionalmente, reconheceu a importância das perguntas que estávamos a fazer no nosso laboratório”.
Até hoje consultor do Laboratório de Susana Constantino, Marc Mareel, passou a ter um peso muito forte na discussão da sua investigação e validação de modelos experimentais. No mesmo dia em que se conheceram trocaram de imediato mails com matéria comum de interesse. Ainda hoje, e apesar de cada vez mais sedimentada nas suas investigações, não deixa de consultar o seu mentor sobre os vários caminhos a seguir.
Estamos a falar de mentores e isso faz-me pensar no caminho académico e se nele encontra seguidores. Que olhar procura nos seus alunos? Curiosidade, apatia?
Susana Constantino: (Ri) Sou péssima, porque quando vejo apatia esse aluno tem um problema porque me vou focar nele. Falo muito para ele e se for preciso acendo luzes para que o ambiente não fique demasiado acolhedor, sou capaz de o interpelar com uma pergunta sobre o que estava a falar. Inclusivamente sou capaz de chamar aquele aluno que quase dormita para lhe pedir auxílio a passar os slides. Como vê tento ir ao encontro desse aluno, mas respeitando que nem todos podemos gostar das mesmas coisas, principalmente se eu vejo que é crónico. Mas pelo menos sei que não foi por desistência precoce minha. Depois há o oposto, o aluno que vive muito o que está a ouvir e aí eu tenho noção que me foco muito nele, porque esse para mim é força e motivação. Com esses mantenho depois um laço. Isso faz-me lembrar de um ex-aluno meu, o André Rocha, que já acabou Medicina. Ele foi meu aluno no primeiro ano de Medicina, nas aulas práticas de Bioquímica. No ano seguinte candidatou-se para vir fazer um pequeno estágio de investigação laboratorial, apenas de vinte horas. Eu acolhi-o. Ao longo do tempo e das nossas interações fui percebendo a cabeça brilhante que ele tinha. Ele quis vir para o meu Laboratório, mais tarde ficou responsável por um objetivo específico na nossa investigação, o que o obrigou a pesquisar e a sair daqui e absorver mais conhecimento e criar contactos com outros Professores de outras Faculdades. Foi co-autor de artigos nossos e fez a sua tese de Mestrado connosco. Agora está na Suíça a fazer um Doutoramento, com modelos animais, tendo em vista uma investigação totalmente translacional na área dos Cuidados Intensivos. E durante quatro anos, pelo menos, ficará a tempo inteiro só focado nisso.
Quantos Andrés se apanham na vida de um Professor?
Susana Constantino: Andrés… (pensa um pouco) Andrés tão brilhantes como aquele, eu apanhei só aquele André. Mas pessoas que podem vir fazer os estágios e ganhar o gosto pela investigação, ou encontrarem-nos mais tarde, já numa Pós-graduação, e que me pedem para ir ao Laboratório, isso acontece muito. E isso já é extremamente gratificante.
Ou então, médicos que nos contactam porque gostariam de começar a desenvolver investigação na área em que trabalhamos. Ao termos verificado que baixas doses de radiação ionizante promovem a formação de vasos sanguíneos, pretendemos perceber se isso também aconteceria num contexto de isquemia vascular. No preciso momento em que pretendemos fazê-lo, um Cirurgião Vascular, Dr. Augusto Ministro, veio ao nosso encontro, manifestando vontade de desenvolver alguma investigação. Por isso digo muitas vezes na minha vida que nada acontece por acaso. O Augusto começou a colaborar connosco, tornou-se aluno de doutoramento que eu tive o privilégio de orientar e isso foi extremamente enriquecedor para o nosso trabalho. O Augusto permitiu-me discutir Ciência e fazê-lo numa perfeita translação com a Clínica. Desenvolvemos com ele um modelo animal de isquémia de membro inferior, e demonstrámos que as baixas doses de radiação ionizante poderão ser uma ferramenta terapêutica por induzirem neovascularização, ferramenta inovadora e não invasiva. Mas fomos mais longe e iniciámos um ensaio clínico fase 1 em que estamos a estudar o efeito destas mesmas doses baixas de radiação ionizante em doentes com isquemia crítica de membro inferior, doentes que têm como única opção terapêutica a amputação. Com isto quero explicar-lhe que se não tivesse existido um André e um Augusto, eu também não seria o que sou do ponto de vista científico. Quando estávamos a desenvolver este trabalho, eu decidi integrar o CCUL porque no fundo o trabalho em parceria na área vascular já existia e fazia todo o sentido procurarmos novos desafios na área cardiovascular.
O nosso encontro surge por sugestão do Professor Fausto Pinto que referiu a importância das suas investigações para a área cardiovascular. Quer explicar-me como se cria a ligação com a Cardiologia?
Susana Constantino: A ligação com a cardiologia e com o coração, surge logo de seguida quando ganhámos financiamento para desenvolver um Projeto Europeu, Projeto Horizonte 2020 intitulado MEDIRAD, em que a pergunta que fizemos era no sentido de perceber os efeitos biológicos que doses baixas e moderadas de radiação ionizante têm no coração, em particular na vasculatura. Esta pergunta tem sentido existir porque há corações humanos (não o coração todo mas um certo volume do coração) que é exposto a estas doses que pretendemos estudar. São os corações de mulheres com cancro de mama pois durante a radioterapia à mama, parte do seu coração é exposto a estas doses de radiação. Quando estava envolvida na escrita deste projeto para poder ser submetido para financiamento, decidimos com outros grupos europeus propor em simultâneo um estudo clínico em que, com o objetivo de responder à mesma pergunta, iriamos ao encontro de doentes com cancro de mama. Foi desta forma, que este estudo, hoje financiado, tem duas vertentes: uma experimental em que usamos modelos animais e uma clínica em que pretendemos estudar os efeitos nos doentes no sentido de poder prevenir algum tipo de cardio-toxicidade no futuro, se assim fizer sentido.
Por este motivo, é a professora Manuela Fiuza, cardiologista e responsável da consulta de Cardio-oncologia que está a liderar este estudo clínico, enquanto que nós coordenamos a investigação.
Neste trabalho que é europeu e multidisciplinar, cabe à nossa equipa analisar o coração do modelo animal, exposto às doses de Radiação. Outros grupos analisarão outros passos da mesma sequência de pergunta e pensamento. Dos trinta e três Institutos, há catorze países envolvidos numa sequência lógica de funções. Mas Itália, Inglaterra, França, Holanda e Portugal são grupos que colaboram e estão dedicados no desenvolvimento do modelo animal e posterior análise do coração.
Que mensagens ficam das suas investigações?
Susana Constantino: A principal conclusão é que doses baixas de radiação ionizante poderão induzir a formação de vasos sanguíneos.
A radioterapia tem evoluído imenso permitindo que os níveis de toxicidade sejam cada vez menores aquando do tratamento e isso é um ganho extraordinário. A mensagem que queremos passar é que apesar das doses serem baixas e não causarem toxicidade, há que conhecer os seus efeitos biológicos nos tecidos não tumorais e tê-los em conta no tratamento da doença oncológica. A outra mensagem é inovadora e promissora para doentes com isquémia crítica de membro inferior, que poderiam beneficiar de uma promoção de vasculatura recorrendo a esta ferramenta não invasiva.
Num futuro próximo esperamos conseguir entender melhor com o trabalho que temos agora em mãos se há cardio-toxicidade aquando da radioterapia ao cancro de mama e se sim como preveni-la.
Numa viagem recente a Roma, onde foi apresentar trabalho numa reunião do projeto Europeu, preparou a sua apresentação durante o voo.
Quando tem trabalhos ou as suas investigações em fases cruciais e precisa de as desenvolver, marca o despertador para as 02h ou 04h da manhã, para trabalhar antes que os filhos acordem. É sempre Susana Constantino que os leva cedo à escola, é quase sempre ela que os vai buscar antes do ponteiro do relógio cair nas 18h. Só deixa de dar o seu tempo aos três filhos quando eles adormecem. O tempo pode querer ganhar-lhe a corrida, mas teima em não se deixar apanhar.
O cansaço é uma parte tão explicável quanto o ritmo a que se empenha para descobrir o que causam as radiações no corpo de um doente com cancro ou com isquémia. No compasso das suas ideias bate um coração ansioso por trabalhar e descobrir respostas, para que algum doente, um dia possa beneficiar das dúvidas que, esperemos, tenham uma boa solução.
Joana Sousa
Equipa Editorial
