Espaço Ciência
Luís Afonso Brás Simões do Rosário - O cardiologista que não faz descansar o coração
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Chama-se Luís Rosário e é médico Cardiologista na Unidade de Tratamento Intensivo Coronário, uma das unidades pioneiras a nível mundial e que pertence ao Hospital de Santa Maria. Nesta Unidade tratam-se os doentes críticos, com problemas cardiovasculares e que estão internados, precisando de cuidados intensivos, com monitorização contínua e tratamento 24 sobre 24 horas. Esses tratamentos podem implicar a administração de fármacos, alguns intravenosos, e que controlam arritmias, insuficiências cardíacas, ou a aplicação de aparelhos que fazem suporte, temporário, a algum órgão que entra em falência. Num trabalho conjunto de colaboração com as outras áreas da Cardiologia, a UTIC precisa, muitas vezes, de recorrer à Cirurgia, ou Aritmologia. Os doentes da UTIC ficam vários dias internados e muitas vezes a ligação estreita que mantém é às famílias, com quem fala para avaliar a direção dos tratamentos.
Mora perto do Hospital de Santa Maria e entra muito cedo, vai sempre a pé. Às 8h30 as várias equipas de Cardiologia já estão reunidas a discutir os diversos casos clínicos que têm diante de si, ainda assim, diz que não há rotinas na vida de um médico porque cada dia é diferente do anterior. Mas porque o conhecimento adquirido fica ultrapassado no prazo de poucos anos, é exigido sempre ao médico novos estudos e mais métodos, “o conhecimento fica desatualizado cerca de 50% em cinco anos”. Talvez a busca incessante pelo novo na vida profissional, justifique a busca incessante da adrenalina que, também, precisa ser transposta para o plano pessoal.
A culpa de hoje ser o médico Luís Rosário foi dos pais, quando após uma viagem aos Estados Unidos resolveram oferecer, ao pequeno Luis de cinco anos, uma mala de brincar de primeiros socorros. Foi da união de um Engenheiro, com uma professora de Matemática que nasceu o médico, mas a Cardiologia só viria a despertar interesse mais tarde, por responsabilidade do curso.
Estudou na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, a mesma casa onde hoje leciona. Entrou numa altura em que havia numerus clausus muito menor, e eram admitidos, aproximadamente, 160 alunos, a contrastar com os 400 estimados de agora. Desse tempo, em que as turmas eram pequenas, tem saudades das ligações mais estreitas entre aluno e Professor, “ficávamos na enfermaria à tarde e se os Assistentes tinham urgência, nós íamos com eles. Hoje em dia há acordos com diversos hospitais que permitem colmatar algumas distâncias, mas a ligação mudou, perdeu-se a proximidade”.
A Cardiologia viria a ser a sua escolha de vida, em duas fases diferentes da vida académica, “uma das influências foi na Fisiologia, com o Professor Joaquim Silva Carvalho, conceituado Cardiologista da Escola do Professor Moniz de Bettencourt e que foi das primeiras pessoas que fez a ligação da investigação com a clínica. Gostei tanto da Fisiologia que quando fiz o exame fui convidado para ficar como Monitor e colaborei, também, em investigação. A segunda influência surgiu no quarto ano quando começámos a ter aulas de clínica. Já nessa altura a Semiologia era muito rica, dava e dá grande apoio aos alunos, para terem a noção real da patologia circulatória e vascular”.
“Além de estudar um bocadinho”, tinha tempo para visitar o cinema Quarteto ou o Londres, famosas salas já desaparecidas. Não perdia os filmes da temporada, mas a sua paixão cinematográfica estava fundamentada pelos filmes de Antonioni, Dreyer ou Kurosawa e por outros autores menos comerciais, assinatura de marca do seu saudoso Quarteto.
Com um papel ativo na Associação de Estudantes, apesar de ser um ano já pouco marcado ideologicamente, descobriu que o espírito de equipa e entreajuda também se fortaleciam através do Rugby, jogando, até ao fim do curso, no campeonato Universitário.
Para poder participar no Campeonato Nacional integrou a equipa de Rugby do Técnico e assim foi até ao final do curso, ano em que o Técnico ganhou a Taça de Portugal. Mal sabia Luís Rosário que viria a reencontrar o Instituto Superior Técnico já mais tarde e com um projeto de trabalho.
O tempo passou e depois dos primeiros três anos em Portugal, seguiu para Boston onde ficou um ano e meio, acabando por concluir lá o internato geral.
Foi no regresso ao país, que resolveu desenvolver o seu Doutoramento, com o Professor Luís Silva Carvalho, com um modelo de enfarte, um modelo experimental, focando-se na investigação pré-clínica sobre a estimulação do sistema nervoso autónomo. O objetivo era criar modelos que permitissem estabelecer novos diagnósticos, ou a terapêuticas no doente. À pergunta, que deu o mote ao Doutoramento, sobre “qual é a influência do sistema nervoso autónomo no enfarte agudo do miocárdio?”, ou seja, de que maneira se controla a resposta cardiovascular no sistema nervoso autónomo, abriram-se diversas pistas que dariam acesso a caminhos distintos. Caminhos que retomaria anos mais tarde em investigações, “uma das coisas que o sistema nervoso autónomo controla é a regeneração do miocárdio”. Mas andemos alguns longos quilómetros, desta estrada, até chegarmos ao tema da investigação das células que se regeneram.
Luís Rosário foi crescendo como médico no privado. Decidiu, no entanto, que “tinha de fazer tempo” e as ligações ao passado e à origem voltaram a relembrar-lhe a amizade por algumas pessoas, que mantinha do curso, ligando-os novamente ao desporto. Dos pés bem assentes na terra do Rugby, seguiu com o vento para desafiar o mar. Até hoje pratica vela, tem respeito pelo mar, mas não o teme, e por isso compete com ele em provas de inverno e de verão, em competições nacionais e, quando decorrem cá, entra nas provas mundiais. Quanto mais reclamarmos do mau tempo e do vento, mais aliado ele é para Luís Rosário que corre para o mar, mesmo correndo o risco de cair nele e ter uma hipotermia, como aconteceu há tempos atrás.
Hoje e já enquanto Professor e mantendo a ligação à casa que o formou, tenta passar mensagens da sua experiência de vida, mensagens enquanto médico, “o que tento mostrar aos meus alunos é a diversidade de tratamentos e terapêuticas possíveis dentro da Cardiologia, mas eles nem sempre acreditam ”.
Talvez os alunos não acreditem porque as doenças coronárias aumentaram nos últimos anos, apesar de cada vez mais se conseguirem travar a tempo e com mais eficácia.
“Da cultura geral das pessoas passaram a fazer parte as noções dos principais fatores de risco reais, e isto foi a partir dos estudos de Paul Dudley White (Cardiologista 1886/1973) e de Harvard, identificaram nos jovens, que tinham enfarte do miocárdio, também havia diabetes, colesterol elevado, e hipertensão. Na hipertensão identificou-se um paradoxo, é que ao controlar a tensão, diminuía-se a probabilidade de acidente vascular cerebral; mas algumas terapêuticas mais recentes vieram mostrar que a diminuição do controlo tensional não é acompanhado de diminuição da mortalidade dos acidentes do enfarte do miocárdio”. E como diz Luis Rosário, “quando se fecham as portas principais, abrem-se algumas nas traseiras, ou seja, enquanto se fecharam as pistas da tensão arterial e do controlo do colesterol, abriram-se outras, mas acompanhadas de novas preocupações. Uma foi o aumento da idade da população e a outra foi o aumento da diabetes e obesidade no sistema metabólico e estas vieram aumentar as incidências cardiovasculares. Pela primeira vez as previsões apontam, ao contrário de todas as previsões passadas, que a esperança de vida pode ficar em perigo. Podemos vir a ter gerações a viver menos daqui em diante”.
Para evitar a estatística que se atravessa diante de nós, não basta a prevenção que já existe, ou as intervenções já acionadas pelas suas mãos, é aqui que a sua ligação ao Técnico volta a relembrar o médico Cardiologista dos velhos tempos em que vestiam as camisolas para ir jogar na mesma equipa. Atualmente dá aulas no Instituto Superior Técnico, em Engenharia Biomédica, na co-regência da cadeira de Instrumentação e Amplificação de Sinal, dando foco ao estudo de devices que podem ajudar à monitorização dos doentes cardíacos.
Mas em paralelo, e numa tentativa de ir além do que o olhar alcança, tem um programa de investigação, no âmbito do CAML, com uma bifurcação, “uma que pretende desenvolver e melhorar os devices que podem ser adaptados aos doentes cardíacos, quer em ambulatório, quer em doentes críticos”. A outra traz raízes dos tempos de uma bolsa ganha pela Gulbenkian, com um pós Doutoramento, sobre a preservação de células estaminais cardíacas. Neste momento quer dar-lhes uma aplicação clínica e isso implica sinergias com a Biologia celular e molecular. “A esperança é que através destas células se possa regenerar o coração, multiplicando as células cardíacas e células residentes; depois há também células que como circulantes que são, possam ajudar a recuperar as funções do coração”.
Em breve esta investigação pode transitar para o novo edifício Reynaldo dos Santos, e se ao início “os primeiros resultados das experiências feitas não foram tão miraculosos quanto a expetativa”, o futuro mostra que só agora se começaram a dar os primeiros passos, mas que nasceram novas pistas que podem trazer novas descobertas. Para já o foco está em resolver situações de enfarte, ou a insuficiência cardíaca. Pela frente “estão ainda a ser analisadas as melhores formas de administração, ver a necessidade de ter terapêuticas completares e, ao mesmo tempo, identificar os perfis clínicos que mais beneficiem com estes mesmos tratamentos”.
Luís Rosário diz que todos os alunos devem ter os seus mestres e que quando se guardam os mestres na memória eles sopram, por vezes, ao ouvido e servem de azimute, na tomada de decisões. Apesar de todas as guidelines estabelecidas e da experiência que o tempo aprofunda, uma das coisas que aprendeu é que “desde que nos tornamos internos, a primeira coisa que devemos passar a ter é medo e ter cuidado com o entusiasmo de que vamos saber fazer tudo, seja em meios de diagnóstico, seja em terapêuticos. Temos de ser muito consequentes porque vamos causar alterações no organismo das pessoas. Nas reuniões de manhã em que estudamos os casos, temos não só o dever de perceber se aquele doente faz parte do grupo dos estudos dos ensaios clínicos, ou se é algum caso específico, porque senão, caso contrário, bastar-nos-ia ter mera inteligência artificial a resolver os problemas".
A experiência vai-se adquirindo, longe de ser sempre plena, explica-me num exercício que não finge ser humilde, mas apenas evidente. “Eu tenho sempre medo quando alguém diz que tem muita experiência, lembro-me logo da frase da Mae West (atriz) que dizia que a experiência é aquilo que os homens dizem que têm, quando já não são capazes de fazer as coisas, isto significa que só quando atingimos uma elevada experiência, já não vamos a tempo de as saber aplicar”.
Médico e Professor experiente, ou não como ele defenderia, interrompeu a nossa entrevista pontualmente à hora que tinha combinado falar com a família de um dos seus pacientes. Fiquei parada confusa entre o apitar ritmado de máquinas que pareciam dizer-me se havia vida a mais, ou talvez a menos.
Quando voltou pedi se lhe podia tirar uma fotografia que mostrasse quem é. Sem posses e sem vaidade parou junto a uma janela, na verdade pareceu-me que lhe era indiferente se ficava bem, tinha pressa.
As suas preocupações são claramente outras e o tempo urge e diante dele estão doentes sempre à espera. E há aqueles que ainda não lhes chegaram às mãos e que ele espera travar a tempo que cheguem, se as suas investigações derem frutos.
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Joana Sousa
Equipa Editorial