Reportagem / Perfil
Dulce Brito – Uma Cardiologista que conheci
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É uma figura marcante que entra na sala da Direção da Faculdade. Alta e de olhar preto, o que tem de mais forte é a voz que não deixa dúvidas sobre a presença que tem.
Coordenadora da Unidade de Internamento Geral do Serviço de Cardiologia, Dulce Brito é médica Cardiologista de mil ofícios ligados ao coração. Dá também aulas de Cardiologia como Professora Auxiliar na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, faz parte do Conselho Pedagógico da Faculdade, da Direção do Colégio da Especialidade de Cardiologia da Ordem dos Médicos e é membro do Núcleo do Grupo de Estudo de Insuficiência Cardíaca da Sociedade Portuguesa de Cardiologia.
Pragmática e objetiva deixa em cima da mesa as “regras” da nossa entrevista, enquanto troca o sobretudo azul-escuro do hospital, pela bata imaculada e que contrasta com o cabelo curto e escuro. Se eu quiser fotografias fica para outro dia, tentei dizer-lhe que estava ótima e tal e qual a tinha visto num direto que fez para um canal de informação, mas não tive o descaramento inicial; se eu quiser posso ir colocando as perguntas, ou dizer que temas quero tratar, mas não sem antes me querer conhecer e saber de onde venho. Está entre responsabilidades várias de uma agenda repleta, mas isso não me diz, eu percebo, porque o telefone toca várias vezes e atende sempre, são quase sempre os seus doentes que estão a ligar. Conhece-os todos e, como um computador cheio de ficheiros etiquetados, identifica o caso clínico em questão e dá o devido seguimento sem hesitar. Explica-me, mais tarde, que dá o seu número de telefone a quase todos os seus doentes e que não percebe bem o conceito de sábados e domingos, “se os meus doentes ligam é porque têm dúvidas e precisam de mim, porque é que não os atenderia?”.
Se permitisse à partida que os afetos dominassem tudo o que tem para fazer, não faria metade das coisas, mas apesar de dizer que é pouco ligada aos gestos físicos, a verdade é que da primeira camada de distância que cria, está uma mulher densa de responsabilidades e preocupação pelos outros. Não gosta, no entanto, das palmadinhas nas costas, ou gestos paternalistas que estão geralmente disfarçados de alguma falsa preocupação. Mas dá a sua mão na vida pessoal e no trabalho. “Toco pouco nas pessoas, tirando quando me despeço, ou quando cumprimento os meus doentes, mas a esses dou-lhes a mão porque precisam de mim”. Na entrevista deixou-me sempre clara a linha entre o privado e o profissional, mas referiu-me, no entanto, que a mãe foi a principal responsável pela mulher que hoje é, porque a deixou sempre “voar” mostrando que essa era a forma certa de se amar um filho. Já na altura, adolescente muito assertiva, sabia que tinha “um jeito natural para as letras”, mas seguir Direito estava fora de questão porque se ia tornar árido demais para a mulher que é regida pelo coração. “Estava numa paragem de autocarro quando decidi que ia seguir Medicina”.
Mulher demasiado independente para sentir qualquer atropelo, moveu-se desde cedo num mundo ainda predominantemente masculino. Quando lhe pergunto se alguma vez se sentiu numa situação frágil, no meio de tantos homens, explica que nunca foi discriminada porque, na verdade, nunca deu espaço para que tal acontecesse.
É um perfil assim que explica com relativa facilidade que Dulce Brito seja Coordenadora de uma equipa inteira e de uma área tão delicada e abrangente quanto a do Internamento em Cardiologia. “Esta unidade tem três Cardiologistas séniores - entre os quais me incluo - e cada um deles coordena a sua equipa. Apesar de ser coordenadora, também tenho o meu próprio papel individual enquanto médica, com uma equipa da qual sou diretamente responsável”.
Atenta aos doentes, mas também às suas equipas, fala da importância de dar oportunidade às pessoas para progredirem na carreira e, como líder, sabe que tem de motivar cada pessoa e potenciar nela capacidades exclusivas que possa ter. “Não coordeno sozinha. Há alguns anos convidei uma Colega para comigo partilhar funções de chefia, porque os poderes devem ser partilhados e as pessoas merecem mostrar aquilo que valem, têm que ter oportunidade”.
Além do seu papel no Internamento faz também consulta quase diariamente e as preocupações com os doentes são diferentes, mas igualmente importantes, “os doentes que não estão internados também continuam a existir e precisam de cuidados”.
Os seus focos principais, dentro da Cardiologia são a Insuficiência Cardíaca e “a menina dos seus olhos”, as Doenças do Miocárdio, ou seja, as Miocardiopatias. Responsável pelas consultas nestas duas áreas, diz, no entanto, que um Cardiologista nunca deixa de ver e receber todo o perfil de pacientes.
Com prevalência para aumentar 25% até 2030, a Insuficiência Cardíaca ganha destaque nas agendas dos hospitais e têm merecido preocupação crescente do Ministério da Saúde. Celebrado a 6 de Maio, como o Dia Europeu do doente com Insuficiência Cardíaca, é sobre os doentes com esta patologia que falamos predominantemente.
“Doentes com insuficiência cardíaca sempre existiram. No entanto, foi com o avanço da ciência que se foram progressivamente descortinando os mecanismos fisiopatológicos implicados, as melhores formas de identificar a doença e de a tratar”. As causas são várias, só que há muitos anos atrás “muitas não estavam clarificadas. E o tratamento também era limitado e apenas para tratar os sintomas. Agora, além dos sintomas (e da prevenção da própria insuficiência cardíaca), dispomos de terapêuticas que podem alterar o curso nocivo da doença, ou seja, atuamos para melhorar o prognóstico.” Refere que hoje em dia se tratam melhor as causas mais comuns de insuficiência cardíaca, nomeadamente o enfarte de miocárdio e que as pessoas vivem muito mais, o que significa que têm mais tempo para eventualmente poderem desenvolver disfunção do coração: “Com efeito, esta patologia aumenta em prevalência com a idade e os fatores de risco cardiovascular, atuando durante mais tempo (quando não controlados) contribuem, seguramente, para tal. Mas nos últimos 20 anos houve uma evolução enorme na compreensão da insuficiência cardíaca”.
Sabendo que a insuficiência cardíaca tem uma prevalência calculada de cerca de 2% em todo o mundo considerado desenvolvido, e que só em Portugal se estima que existam cerca de 380.000 mil doentes, como se cuida de corações cujas doenças continuam a aumentar?
“Bom, no meu Serviço, a resposta é simples: com grande dedicação de uma equipa motivada. Tal não está estabelecido nem nos horários, nem nos honorários de nenhum médico que trabalha em hospital público. Acontece apenas porque se acredita na causa. São doentes que exigem uma gestão específica e organizada”.
É aqui que entra o grande “cartão de visita” que me fez chegar à Cardiologista Dulce Brito, o seguimento que ela e a sua equipa fazem aos doentes com insuficiência cardíaca após um internamento hospitalar, por essa causa, no Serviço de Cardiologia.
“Desenvolvemos um registo de Insuficiência Cardíaca aguda e um programa estruturado de seguimento para estes doentes após alta hospitalar, porque esta população tem hospitalizações sucessivas, com um custo enorme quer para os próprios doentes (grande perda de qualidade de vida), quer para o Estado (gastos económicos). Para os cardiologistas envolvidos, a principal razão do programa é a necessidade de evitar justamente a (re)hospitalização, sinal de agravamento da doença e que implica redução acrescida da qualidade de vida dos doentes. Após seis meses de seguimento neste programa, com o acompanhamento clínico estruturado (o que implica consultas periódicas com objetivos definidos), já conseguimos diminuir a mortalidade (de todas as causas e por insuficiência cardíaca) e a taxa de readmissões hospitalares.”
A equipa que Dulce Brito coordena, neste projeto, é constituída por 10 médicos que “estejam onde estiverem, com outras tarefas várias, acompanham todos os doentes e dividem responsabilidades.”
Dentro da área da Saúde, Portugal gasta boa parte do seu orçamento com internamentos hospitalares. Estudos prestes a serem publicados e cujos números ainda não foram divulgados, parecem apontar para resultados promissores sobre o programa de Insuficiência Cardíaca do Serviço de Cardiologia do Centro Hospitalar de Lisboa Norte, traduzindo uma taxa de sucesso excelente no que toca à mortalidade. Este sucesso deve-se à equipa e ao seu programa, o RICA-HF Team (Heart Failure).
É no âmbito do seguimento destes doentes que vem “encaixar” um projeto-piloto, a telemonitorização na Insuficiência Cardíaca Crónica, também coordenado por Dulce Brito.
“O Ministério da Saúde tomou já algumas iniciativas referentes ao problema da insuficiência cardíaca. O que se pretende com a telemonitorização é a deteção precoce de sintomas e outras manifestações de descompensação cardíaca, levando a atuação atempada por parte do médico, evitando assim a necessidade de internamento. “
A equipa médica cardiológica seleciona os doentes considerados em maior risco de nova rehospitalização, por insuficiência cardíaca, e estes são monitorizados em casa, por via remota, em relação a certos parâmetros, nomeadamente a frequência cardíaca, o peso, a pressão arterial, a saturação do oxigénio do sangue, a temperatura e o electrocardiograma. Esta monitorização tem uma determinada periodicidade diária, para a maior parte dos sinais biológicos, mas semanal para o electrocardiograma, sendo fornecidos aos doentes os aparelhos necessários a esta monitorização, bem como todo o ensino para a poderem fazer
“Os valores dos parâmetros são transmitidos automaticamente para uma Central de Telemonitorização e, quando os parâmetros “caiem” fora dos valores pré-estabelecidos (cada doente tem os seus limites próprios) são gerados “alertas”. Estes são avaliados pela equipa de profissionais de saúde da central, também de acordo com critérios pré-estabelecidos pela equipa de cardiologia, e o doente é contactado telefonicamente. Se forem verdadeiros “alertas clínicos” a equipa de cardiologia é de imediato contactada e liga ao doente, decidindo da intervenção necessária a fazer.
Neste momento já temos 19 doentes, começámos apenas em dezembro passado e eram somente 9. A nossa meta será chegar aos 30 doentes até ao fim deste ano”.
Sobre o perfil de quem pode beneficiar deste novo sistema, “os doentes escolhidos são sempre os mais graves e que tiveram internamento mais recente por descompensação de insuficiência cardíaca. Os doentes estáveis são aqueles que teoricamente não beneficiarão tanto da telemonitorização”.
Uma equipa que acompanhe a telemonitorização não tem dias de férias, ou dias de descanso, está alerta todos os dias, 24 horas por dia. Quando se está, está-se sempre por inteiro. E se pensarmos assim sabemos que 10 pessoas é, então, um número reduzido e que só é possível graças à organização entre todos. “Estamos sólidos num programa que tem apenas quatro meses e meio de evolução. De notar que muito trabalho de planeamento precedeu no entanto esta realização. Demorámos cerca de um ano a prepará-lo. “.
Diz-me que “já observámos resultados positivos neste programa de monitorização, nomeadamente em termos de evitar hospitalizações. Cada vez mais a qualidade de vida do doente é tida como um objetivo importante. No entanto, há situações de insuficiência cardíaca que, pela sua gravidade, gerarão sempre necessidade de internamentos e por vezes terão mesmo um desfecho funesto.
E é por este desfecho inevitável que me diz, também, “não somos Deus”.
Ao ouvir esta última frase ocorreu-me perguntar se não sendo Deus, não será o médico um dos seus grandes aliados. “Eu acho que Deus nos ajuda muito, porque se considerar que Deus é o acreditar em algo mais forte que a nossa vontade, algo maior que nós próprios, faremos sempre o melhor”.
O melhor é o que Dulce Brito e a sua equipa fazem todos os dias. Se continuarem a seguir os sinais de alerta farão, cada vez mais, intervenções eficazes, com isto farão com que a prevenção aumente também mais. O acompanhamento personalizado permitirá continuar a seguir o doente de forma tão próxima que, às vezes, basta “falar com ele de imediato e intensificar o tratamento” para evitar o seu agravamento e consequente internamento.
O nosso tempo esgotou-se, a família de um doente já esperava pela médica Cardiologista Dulce Brito que teria um novo quadro clínico para traçar.
Nas duas horas que falámos, passou o tempo de almoçar, mas não o fez, saiu à pressa para a agitação de um dia igual a todos os outros.
A Médica e Professora que vi entrar não foi a mesma pessoa que vi sair, mas isso foram pequenos privilégios de quem a pôde conhecer um pouco e durante aquelas duas horas.
E esses fragmentos guardo-os para mim.
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Joana Sousa
Equipa Editorial