Reportagem / Perfil
A Via Verde do AVC – Entrevista com a Neurorradiologista Lia Neto
size="10"
Sabia que o Acidente Vascular Cerebral (AVC) é a principal causa de morte e de incapacidade em Portugal?
Por hora, três portugueses sofrem um AVC e este pode ser isquémico (oclusão das artérias que impede a oxigenação do cérebro), ou hemorrágico (vaso que rompe e causa hemorragia no cérebro ou entre o cérebro e o crânio). Destes três doentes, um acaba por morrer e os que conseguem sobreviver ficam com sequelas.
Dia 31 de março recorda esta estatística através do dia do Doente com AVC e passa a mensagem fundamental que basta ter um dos sintomas dos 3F’s (perda de Força, alteração da Fala ou Face descaída) para ter de ligar, imediatamente, para o 112.
Se o cenário pode parecer muito assustador estatisticamente, os dois aspetos que a seguir se referem, aliviam o embate inicial. O primeiro é que é possível prevenir o AVC, criando hábitos alimentares saudáveis, tratando os fatores de risco, com a prática de desporto e não sendo fumador. O segundo aspeto é que, presentemente, existem equipas multidisciplinares formadas, empenhadas em tratar doentes com esta patologia e fortemente motivadas para melhorar a já existente rede nacional da Via Verde do AVC.
Lia Neto é Professora e médica Neurorradiologista, integra a equipa do Hospital de Santa Maria (HSM) no tratamento endovascular do AVC agudo.
Estudou na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, a sua primeira opção. Desde cedo se interessou pela Anatomia, o “cadeirão” de que muitos alunos falam com algum temor. “É uma cadeira complicada porque temos muito para estudar, mas logo se nota que existe uma correlação com o que vamos fazer no futuro, o que me entusiasmou. De forma voluntária, cedo comecei a colaborar nas aulas e nos projetos de investigação em curso na altura”. Começou no 2º ano e no 5º surgiu a oportunidade de ser contratada como Monitora nas aulas de Neuroanatomia. Foi, precisamente, com a Neuroanatomia que percebeu que queria seguir algo ligado ao sistema nervoso e durante algum tempo ponderou a hipótese de ser Neurocirurgiã; chegou a fazer estágios e a assistir a cirurgias, mas sentiu que era uma especialidade com uma dinâmica que não correspondia à sua personalidade. Apesar de a Neurorradiologia não ser ainda uma especialidade muito conhecida durante o seu curso, foi ganhando maior relevância e conquistou-a esta ligação entre a anatomia, os meios complementares de diagnóstico em ampla evolução e a possibilidade de intervenção terapêutica de um modo menos invasivo.
A ligação à docência na Faculdade manteve-se sempre durante todo o percurso. Após a finalização da Licenciatura, foi convidada para Assistente da cadeira de Neuroanatomia. Seguiu-se a tese de Mestrado em Neurociências e o início do Internato complementar de Neurorradiologia no HSM. Posteriormente desenvolveu os seus trabalhos de Doutoramento em Medicina (Anatomia), numa área de translação entre a ciência básica e a clínica. Diz que as coisas foram acontecendo na sua vida “e que se conjugaram naturalmente”. Hoje é Professora Auxiliar Convidada no Instituto de Anatomia e Co-Regente da Área Disciplinar de Neuroanatomia.
Para além da docência, coordena projetos de investigação dos alunos e orienta os mais novos que, como ela no passado, mostram interesse em colaborar nas aulas. Paralelamente à carreira académica aperfeiçoou dentro da Neurorradiologia a subárea da Neurointervenção que inclui, entre outros, a intervenção endovascular no AVC agudo.
A terapêutica endovascular do AVC agudo está reservada a uma seleção de doentes com determinadas características e portanto, é apenas uma das etapas do processo de tratamento num universo muito abrangente e que está sob coordenação da Neurologia neste hospital.
Desde o início de 2016, o HSM integra a chamada Urgência Metropolitana de Lisboa para o AVC agudo, de forma rotativa, com o Hospital de S. José, São Francisco Xavier/Egas Moniz e Garcia de Orta. No país só há mais 5 pontos que recebem urgências para intervenção endovascular no AVC agudo: Braga, Gaia, Porto (com 2 hospitais) e um em Coimbra.
A equipa de prevenção do HSM, da qual faz parte, é composta por dois médicos de intervenção endovascular, um anestesista, dois enfermeiros e um auxiliar. Às terças, quartas e um fim-de-semana por mês, estão todos de prevenção e a partir do momento em que o procedimento é ativado pela Neurologia, têm meia hora para chegar ao hospital.
Conheci-a numa apresentação da Junior Doctors Meeting, onde fez uma elucidativa palestra sobre o que é a Via Verde do AVC e não descansei enquanto não conversámos pessoalmente.
size="10"
Uma das coisas que mais me impressionou na sua intervenção foi saber que um hospital como o de Santa Maria pode ter enorme escassez de camas, quando há uma urgência de AVC.
Este hospital sempre recebeu e recebe doentes com AVC, mas, desde há 2 anos para cá, surgiu a urgência metropolitana o que significa que há dias específicos em Santa Maria para receber candidatos para terapêutica endovascular. A urgência metropolitana organizou-se com mais três hospitais: São José, Centro Hospitalar Ocidental (Egas Moniz e São Francisco Xavier) e o Garcia de Orta, e de forma rotativa todos recebem os doentes, com critérios para aquela terapêutica. Nos nossos dias (3ª e 4ª e um fim-de-semana por mês) não podemos recusar qualquer doente que entre com esses critérios, porque é o nosso dia, temos de os tratar, daí haver alguma dificuldade, por vezes, em colocá-los nos serviços mais adequados, após o tratamento. Isto porque a unidade de AVC pode estar cheia, ou porque as unidades de Cuidados Intensivos recebem outras patologias e ficam cheias também; Por isso, não há outra forma, se o hospital está cheio e fazemos parte da urgência metropolitana, devíamos encontrar uma solução para nos acautelarmos nesses dias. Claro que acabamos sempre por arranjar um local adequado mesmo que transitório. Mas, por vezes, os procedimentos terminam e os doentes ficam na sala onde decorreu a intervenção à espera de conseguir uma vaga. Há que ter em conta que podem precisar por exemplo de um ventilador.
size="10"
Clinicamente como é que decorre o processo endovascular?
A Neuroradiologia é uma área que se dedica ao sistema nervoso e está inserida nos meios complementares de diagnóstico e terapêutica. Utiliza alguns métodos de imagem para observar e analisar o sistema nervoso, como por exemplo a TAC, a ressonância magnética e a Angiografia. Nos AVC’s do tipo isquémico, há um coágulo que se forma e que oclui uma artéria, impedindo a passagem de sangue para as células cerebrais. Não tendo oxigénio e glicose de que necessitam, em muito pouco tempo acabam por morrer. É esta isquemia que determina os sinais e sintomas do AVC, como a alteração da fala ou da mobilidade, dependendo da área afetada. Quando há este AVC, por formação do coágulo, o que o Neuroradiologia faz é tentar removê-lo e restabelecer o fluxo sanguíneo, para que essas células, que estão em risco, possam voltar a ser irrigadas e a funcionar. Este procedimento faz-se com a ajuda de uns cateteres muito finos que tentam aspirar ou envolver o coágulo, com a imprescindível ajuda da visualização raio-X. Tem de ser um processo rápido porque o tempo é muito, muito importante.
size="10"
Quer-me falar desses tempos?
O tempo é muito importante e devemos começar por falar no transporte. Há muita necessidade de otimizar o transporte inter-hospitalar, porque às vezes não estão logo disponíveis, o que faz perder muito tempo. O mesmo se aplica ao helicóptero, que devia à partida ser mais rápido. Por exemplo uma pessoa que tenha um AVC agudo no Algarve, não tem ninguém a sul para fazer estes tratamentos endovasculares. O doente que está longe, até pode fazer a primeira parte do tratamento, através da administração de um fármaco endovenoso que também tenta dissolver o coágulo, mas para o tratamento endovascular tem que ser transferido. É, também, importante dizer, no entanto, que ao longo do tempo se vai notando alguma melhoria na agilidade dos transportes, tudo já está mais rápido do que quando começámos.
A partir do momento em que acontece um AVC tem que se reconhecer os sinais para se poder agir. Basta um dos três F ’s falhar e a pessoa doente ou familiar tem de ligar para o 112. Quem atende reconhece esses sinais e ativa a chamada Via Verde. A partir daqui tudo tem de ser mais rápido, tendo toda a prioridade nas urgências. A terapêutica, pelo menos aqui em Santa Maria, é sempre feita com a coordenação dos Neurologistas, são eles que definem a orientação do doente. Este pode fazer um medicamento trombolitito endovenoso mas que, tal como na intervenção endovascular, também está sujeito a critérios e tempos de atuação que, não sendo cumpridos, podem aumentar o risco de hemorragia. Este tratamento endovenoso foi o único aprovado durante muitos anos para o AVC agudo.
size="10"
Então o tratamento endovascular não existia até aqui?
Existia e constatava-se que era benéfico em alguns casos, mas não estava provada a sua eficácia em ensaios clínicos randomizados. Estes ensaios são considerados a forma mais rigorosa de evidência científica. É no fim de 2015 que surgem quatro ou cinco ensaios, de uma vez, a provar que este tratamento em casos selecionados reduz a morte e a incapacidade dos doentes. Os ensaios pararam prematuramente, porque se viu que era tão grande o benefício, que se estavam a perder oportunidades de tratamento.
Foi a partir daí que as guidelines americanas e europeias foram modificadas e em 2016 se organizou esta urgência metropolitana de Lisboa. É de referir que este tratamento endovascular só está previsto em tempo definido, sendo a janela terapêutica até às seis horas desde o início dos sintomas, embora recentemente tenham surgido novos ensaios clínicos que mostram que o benefício do tratamento pode ser alargado até às 24 horas, desde que os exames de imagem (TAC/RM) revelem condições favoráveis. Pouco a pouco, as guidelines estão a alargar e a permitir que mais doentes possam ser intervencionados.
size="10"
Há alguém, que não possa ser tratado pela via endovascular?
Existem critérios definidos e que tentamos sempre seguir. Os que estão à margem desses critérios são casos a ponderar em equipa. Por exemplo, um doente já com uma isquemia cerebral muito extensa é provável que tenha muito pouco benefício com a recanalização da artéria, porque as células já não vão recuperar a sua função, podendo haver mesmo risco de hemorragia.
size="10"
Sei que esta pergunta é muito primária, mas onde e como é que se treina, para aperfeiçoar, uma técnica que é tão delicada?
Na verdade há terapêuticas endovasculares ainda mais delicadas do que a do AVC. O aneurisma por exemplo é muito mais minucioso. Mas eu posso falar-lhe do meu treino. Enquanto fazia a minha especialização treinei em animais, fiz alguns cursos práticos, mas também em modelos computorizados. As empresas que comercializam os materiais de tratamento promovem a organização de cursos e fornecem os seus produtos para que possamos treinar.
size="10"
Mas há um momento em que passa para o real. E essa é a primeira vez. Lembra-se?
Antes de sermos autónomos passamos horas a observar e a ajudar colegas seniores. Isso é muito importante e aprende-se muito. A parte difícil desta técnica não se reduz à mão, nem à delicadeza dos movimentos, é também ter a noção de como decidir naquela altura, qual o melhor material a utilizar, as suas dimensões e mais uma vez se é preferível avançar para o tratamento ou não naquele caso específico. Penso que a primeira vez que removi um trombo até foi durante um outro procedimento. Estávamos a tratar um aneurisma e formou-se inesperadamente um coágulo. Foi tudo tão rápido e eficaz que não houve qualquer sequela.
size="10"
O médico sente a pressão do tempo também?
Sente, uma das frases mais usadas nas campanhas do AVC é “Tempo é Cérebro” e nesta lógica tudo parece sempre mais demorado. O doente tem que chegar, ser deitado, preparado, anestesiado e tudo parece um processo muito lento.
Depois há doentes que têm artérias direitas e outros têm artérias tortuosas, o que implica demorar mais tempo a chegar ao local exato onde se formou o coágulo. Depois, há trombos que conseguem logo ser removidos e outros que demoram mais a sair. Os tempos dependem por isso, não só da nossa agilidade, mas também da anatomia do doente, do tipo de coágulo e do próprio material utilizado. Às vezes, não sabemos explicar a razão, mas o mesmo material e a mesma marca que foi bem-sucedida num doente, noutro pode não ser eficaz.
size="10"
O que é que acontece ao doente a quem não corre bem o procedimento endovascular?
Pode acontecer manter o estado inicial, não melhorar. Se houver muita isquemia e edema cerebral podem necessitar de uma intervenção cirúrgica, uma craniectomia. A Neurologia e a Neurocirurgia estão sempre atentas a estes casos de AVC onde não se consegue reverter a isquemia. E a partir daí um longo processo de reabilitação, fisioterapia, terapia da fala, etc., etc., para tentar minorar a incapacidade e dependência nas atividades diárias.
size="20"
Lia Neto, como qualquer médico da sua área de intervenção, tem um contacto fugaz com os doentes que trata, pois não os segue após a terapêutica, já que são reencaminhados para a Neurologia. Acontece, por vezes, falar com a família no fim do procedimento. Após as primeiras 24 horas analisa a TAC do seu doente, mas, na verdade, só ao fim de alguns meses se costuma avaliar o real resultado dos tratamentos. Cada caso cujo desfecho foi menos feliz, serve, no entanto, para deixar a experiência e o ensinamento para o paciente que vier a seguir, podendo ajudar a recordar-se da melhor decisão a tomar.
A coordenação de todos os meios, para que se torne cada vez mais eficaz o funcionamento da Via Verde, depende de uma enorme conjugação de fatores que não estão apenas nas suas mãos. Há ainda muitos médicos que não sabem que hospitais integram a Urgência Metropolitana de Lisboa, nem em que dias estão a funcionar. Divulgar e sensibilizar a comunidade médica, mas também a civil, pode ajudar a sedimentar as rotinas para que os procedimentos sejam cada vez mais ágeis e céleres.
A professora e médica Lia Neto é natural de Faro e os seus pais mantém-se a viver por terras do sul. Se, por ironia do acaso, tiverem um AVC, sabe que não serão, seguramente, atendidos com a mesma rapidez que os seus doentes de Lisboa.
Talvez por isso pondere a eventualidade de um dia fazer estas urgências no sul. Mas é preciso que o sul as ative.
size="30"
Joana Sousa
Equipa Editorial