Espaço Ciência
A maestrina do cérebro das crianças

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Falar sobre Neurociências e não ouvir uma Neurocirurgiã seria uma falha grande. Mas trabalhar numa Faculdade como a de Medicina de Lisboa, onde existe um triângulo entre Faculdade, Hospital e Instituto de Investigação, e onde existiu um nome de excelência como o de João Lobo Antunes, e não ouvir um dos seus “herdeiros” clínicos, seria um erro básico de pesquisa.
Cláudia Faria é a médica do cérebro das crianças e estuda-o a seguir no laboratório, quando ele lhe falha em vida. Espera-me à porta do Edifício Egas Moniz, exemplarmente pontual, e de olhar brilhante e simples, podia ser somente a investigadora do Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes (iMM), com trabalho na área dos tumores cerebrais, integrada no Laboratório do Professor João Barata que acolheu o seu projeto, permitindo-lhe o avanço na investigação; mas é, também, a Neurocirurgiã, aposta de Lobo Antunes, que tenta salvar vidas, cada vez que entra num bloco operatório.
Fez o curso de Medicina em Coimbra e o internato geral nos Hospitais da mesma Universidade. Sempre quis ser cirurgiã e o seu “fascínio pelo cérebro” fez com que se dedicasse à especialidade de Neurocirurgia. Procurou, então, o melhor lugar para exercer esta especialidade e, rapidamente, chegou à conclusão que Lisboa a esperava, no Serviço do Professor João Lobo Antunes. Chega em 2004 e durante 6 anos faz a especialidade, tendo-se focado nos tumores cerebrais e na Pediatria. Hoje em dia, apesar do seu foco ser a Neurocirurgia Pediátrica, trata também, desde há menos tempo, doentes adultos com patologia da hipófise.
O que a faz estar hoje, no ponto exato a que chegou, foi a combinação de vários fatores e pessoas certas.
Uma delas foi Adelaide Passos, avó de um menino a quem foi diagnosticado um tumor cerebral e que fez tratamento oncológico no IPO de Lisboa. Durante a doença do neto decidiu escrever um livro sobre as suas memórias desse período. O neto de Adelaide Passos perde a sua batalha pela vida, anos depois. O facto de ter passado alguns anos nos Estados Unidos e de estar familiarizada com a angariação de fundos para projetos de cariz solidário, fez com que as receitas do seu livro “O Céu pode esperar”, revertessem a favor da investigação na área dos tumores cerebrais. Num prefácio escrito por João Lobo Antunes, foi precisamente ao conceituado Neurocirurgião que Adelaide Passos pediu que os fundos fossem canalizados para a investigação na área dos tumores cerebrais pediátricos. Esse caminho estava guardado para Cláudia Faria, porque foi nela que Lobo Antunes pensou para desenvolver esta área de investigação.
“O que me despertou o interesse pelos tumores cerebrais foi o facto de alguns casos se tornarem dececionantes na medida em que, cirurgias que corriam lindamente, em que tínhamos tirado o tumor todo, tinham um desfecho imprevisível. Há um caso que falo sempre nas minhas apresentações, uma criança, de quem me lembro perfeitamente, e que tinha um tumor cerebral; a cirurgia correu lindamente, tirámos o tumor todo e fez em seguida o protocolo terapêutico habitual (radio e quimioterapia), mas alguns meses depois a doença voltou. A criança acabou por falecer. Isto foi há cerca de 10 anos e naquela altura percebi que havia mais alguma coisa que eu tinha de conhecer nos tumores, porque a cirurgia, por si só, não era suficiente. Isso fez-me interessar pela biologia molecular dos tumores e pelas suas características genéticas”.
Durante o internato abriu um programa de Doutoramento especificamente para médicos, chamado “Programa de Formação Médica Avançada”, apoiado pelas Fundações Gulbenkian e Champalimaud e pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). Mais uma vez, contou com o apoio de Lobo Antunes, “que sempre foi uma pessoa com uma enorme visão e que identificava nas pessoas características que, às vezes, as próprias não sabiam que tinham”. Entrou nesse programa e durante 6 meses teve formação científica. No final era preciso escrever um projeto de investigação; debruçou-se sobre o tumor cerebral pediátrico maligno mais comum, o meduloblastoma, o mesmo tumor que a traiu com a criança que operara. O lugar onde iria desenvolver o seu estudo tinha de ser num centro de referência internacional, “para continuar a aprender com os melhores”, explica. Contactou o Professor James Rutka, neurocirurgião e investigador em tumores cerebrais pediátricos, e partiu para Toronto (Canadá), para o Labatt Brain Tumor Research Center do Hospital for Sick Children, onde desenvolveu o seu projeto de doutoramento durante 3 anos. Foi na equipa do Professor James Rutka, que identificou um fármaco que se mostrou eficaz em estudos laboratoriais, para tratar a forma mais agressiva do meduloblastoma. Atualmente a equipa está a desenvolver um ensaio clínico para doentes com esse tipo de tumor. Durante 3 anos dedicou-se exclusivamente à atividade científica e de investigação. “Eu no bloco operatório era como peixe dentro de água e tinha a ilusão que, se parasse durante 3 anos, as minhas mãos deixariam de saber operar. Mais uma vez, nessa altura, o Prof. Lobo Antunes disse-me que isso não era verdade porque ele tinha tido a mesma experiência em Nova Iorque durante o seu internato, onde durante 2 anos também só fez investigação. Disse-me para não ter medo porque aprender a fazer investigação, ajudava-me a adquirir mais ferramentas enquanto médica. E agora percebo, quem comanda as mãos é o cérebro e enquanto o cérebro souber o que tem de fazer, as mãos sabem executar”.
Regressou a Lisboa em 2014, para o Hospital de Santa Maria (Centro Hospitalar Lisboa Norte), mas sentia que para ser uma médica completa teria de continuar a fazer investigação. Foi aquilo que chama de “estrelinha da sorte”, um conjunto de vários fatores felizes, que permitiram a Cláudia Faria conciliar os dois mundos, “na altura do meu regresso o apoio do Professor Lobo Antunes permitiu que eu continuasse a fazer investigação. Foi ele que me apresentou a investigadores do iMM, como a Professora Maria do Carmo Fonseca e o Professor João Barata, em cujo Laboratório agora eu desenvolvo os meus projetos de investigação. Conciliar a clínica e a investigação só é possível porque tenho grande apoio institucional do lado do Hospital de Santa Maria, mas também do lado do iMM. Depois da saída do Professor Lobo Antunes, o Dr. José Miguéns, atual Diretor do Serviço de Neurocirurgia, continua a perceber a importância que ser médica-investigadora tem para mim”.
A exigência e a imprevisibilidade da atividade clínica acaba por reger sempre a grande maioria dos seus horários, mas todos os dias, à tarde, o iMM é a sua segunda casa. “O meu dia perfeito é aquele em que começo no Hospital a tratar uma criança com um tumor, por exemplo, e à tarde venho para o laboratório analisar o tumor, colocar as células a crescer em cultura e fazer experiências. Isto é como que fechar o ciclo, porque pode permitir fazer descobertas, identificar terapias que podem vir a ser usadas na clínica e complementar a atividade cirúrgica”.

O brilho no olhar não quebra quando lhe pergunto se o fracasso também acompanha o dicionário de uma médica que mexe no cérebro de uma criança, “a nossa obrigação, primeiro, é fazermos sempre o nosso melhor. Isso implica aprender sempre com os melhores e discutir os casos com outros colegas e até a nível internacional. Claro que há fracassos, mas por isso é que eu faço investigação. Sei que além da cirurgia, quando os tumores não são benignos e não são totalmente ressecáveis, o componente biológico do tumor é fundamental. Portanto o meu contributo, acrescido ao ato cirúrgico, é perceber porque é que os tumores surgem, qual a razão para deixarem de responder em determinada altura ao tratamento“.
Mas para que Cláudia Faria possa fazer magia com as suas mãos, desta vez enquanto investigadora científica, é preciso que mantenha um dos seus grandes aliados, o Biobanco-iMM, do Centro Académico de Medicina de Lisboa, localizado no iMM. Dentro do Biobanco-iMM foi criado em 2012, o banco de tumores cerebrais - o Neurobanco - e nele estão guardadas amostras biológicas de vários doentes com tumores cerebrais. “No nosso caso começámos a fazer a colheita de amostras de tumores cerebrais de adultos e crianças operados no Hospital de Santa Maria, porque em termos de proximidade e para por a máquina a funcionar era mais fácil. Colhemos amostras de tumor, sangue, líquido cefalorraquidiano, sempre com o consentimento informado dos doentes (dos próprios se forem adultos, mas se forem crianças o consentimento é dado pelos seus pais ou representantes legais). Começámos em 2012 e atualmente já temos amostras de mais de 1200 doentes com tumores cerebrais”.

Neste momento a recolha de amostras já não é só dos doentes de Santa Maria, mas abrange outros hospitais da área da grande Lisboa, públicos, mas também privados, alargando a área de colheita a Coimbra. A rede de divulgação e contactos espalhou-se entre colegas neurocirurgiões. “Graças à infraestrutura já montada pelo Biobanco-iMM, temos uma rede tão eficaz que quando alguém tem uma amostra para recolher, temos uma transportadora especializada que vai onde for necessário. Transporta as amostras em perfeitas condições de conservação que a equipa do Biobanco-iMM depois processa e armazena. As amostras biológicas podem ser armazenadas de duas formas: em azoto líquido, a menos 196°, o que permite preservar as amostras de tecido tumoral ad eternum, em condições ótimas de conservação; ou em arcas a menos 80°, como por exemplo o sangue ou o líquido cefalorraquidiano”.
As condições técnicas e humanas de que dispomos acompanham os mesmos padrões de qualidade dos grandes Biobancos internacionais. A experiência que teve em Toronto mostra que em Portugal se seguem os mesmos critérios de exigência. O Biobanco-iMM permite que, graças à variedade de amostras recolhidas, tenham sido estabelecidas colaborações com investigadores nacionais e internacionais. “O que isto tem de positivo é que em doenças como o meduloblastoma, que apesar de ser o tumor mais comum nas crianças, ainda assim é raro, é possível juntar amostras de vários centros para conseguir descobrir alterações com significado biológico. Trabalhando em rede, no consórcio internacional que se chama MAGIC (Medulloblastoma Advanced Genomics International Consortium) e que tem participantes de mais de 50 países em todo o mundo (e do qual o nosso centro faz parte), o objetivo é recolher amostras de doentes em todo o mundo, para se conseguir estudar mais a fundo a doença e fazer descobertas que, de outra forma, não seriam possíveis. Assim, quando o oncologista que segue a criança precisa de estudos genéticos mais detalhados do tumor para definir o tratamento mais adequado, nós facilitamos o processo enviando as amostras para laboratórios especializados no Canadá ou na Alemanha. Mas tudo isso só é possível porque temos o nosso funding, o que é muito importante”.
A par do apoio visionário de Adelaide Passos, que escreveu um segundo livro sobre as suas vivências em África “Kaya África”, para manter a entrada de fundos, também a Fundação Millenium BCP é uma das grandes responsáveis para que o Centro de Investigação de Tumores Cerebrais do iMM tenha este sucesso. Responsável por dois grandes donativos, um em 2012/2014, e o outro em 2016 até 2018, a Fundação Millenium BCP não só permitiu o arranque, como deu continuidade à manutenção deste projeto. Mas para que o fundraising não acabe, uma das áreas exploradas atualmente é a participação em eventos solidários com a BTT (Brain Tumor Team).

O objetivo é divulgar junto da comunidade civil a investigação que se faz na área dos tumores cerebrais e sensibilizá-la para a necessidade de apoiar esta causa. Desde 2014 que a BTT participa na Corrida Saúde Solidária, organizada pela Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. O dinheiro das inscrições e da venda de t-shirts reverte a favor da investigação no iMM. Das 61 pessoas que fizeram parte da BTT na primeira corrida, passaram a correr 500, em 2017. E todos correm, profissionais de saúde do Hospital de Santa Maria, investigadores do iMM, médicos e investigadores do IPO de Lisboa e de outros hospitais, mas também doentes e familiares de doentes que foram tratados por estas equipas nos últimos anos. Em 2017 conseguiram reunir cerca de €6000, o que permitiu a compra de uma peça de equipamento para a investigação no iMM. A Associação David Vaz, criada em homenagem a um jovem desportista que faleceu com um tumor cerebral, trouxe também novos elementos para a corrida e ajudou a reunir mais fundos. “É quase como se fosse uma bola de neve solidária que nos traz boas pessoas e que se ajudam entre si”.
As pessoas que conheceram a dor e a doença de perto são aquelas que mais se têm envolvido na ajuda e na luta para que outros não passem pelo mesmo. “O mais importante são as pessoas, havendo pessoas boas, com vontade de ajudar, tudo se consegue”.
Uma das características da médica-cientista Cláudia Faria é o otimismo, característica provavelmente inerente a qualquer Neurocirurgião. Acredita que as suas iniciativas podem mudar a vida de uma pessoa que seja; acha que se deve passar pela vida de forma “ativa e intensa”. Por sentir que teve a vida tão facilitada, entende que tem quase a obrigação de dar de volta o que recebeu e deixar caminho aberto para que outros sigam os passos. Insisto em perguntar-lhe se não quebra por vezes, mas só admite cansaço esporádico, porque nem tudo corre sempre como projeta, “nessa altura desligo a luz e vou dormir, assim passa”. Quanto às histórias clínicas, elas não ficam à porta de casa, acompanham-na, mas diz que “o doente não procura um amigo, mas um médico que saiba tratar a sua doença”, no entanto, a empatia fica e há histórias de vida que marcam.
Quando recorda o caso clínico do menino que a fez ser hoje também investigadora, diz-me de imediato o nome quando o pergunto, “sei o nome sim, era o Rui”. O Rui foi o menino que lhe ensinou que “nem sempre uma super cirurgia tem um super resultado”, mas ensinou-a também que diante do aparente fracasso, há sinais que a vida dá aos persistentes, como a Drª Cláudia, para que não desistam de procurar sempre respostas e fazer mais perguntas quando as primeiras respostas forem dadas. O Rui foi um daqueles casos de “banho de humildade”, expressão usada por João Lobo Antunes, o mestre que mesmo antes da própria perceber, já tinha visto em Cláudia Faria, a guardiã dos mais pequenos.
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Joana Sousa
Equipa Editorial
