Reportagem / Perfil
De profundis – Uma História com o Professor José Ferro

size="10"
A vista do histórico gabinete do 6º piso de Neurologia, do Centro de Estudos Egas Moniz, só não é perfeita na medida em que lhe mostra o estádio rival ao seu clube, o Sporting. Comento que tem um papel de um rei, pelo somatório da sua carreira e pelos nomes que por aquela sala já passaram, Professores Almeida Lima e Miller Guerra e o último o Professor João Lobo Antunes, mas rebate-me a ideia de monarquia com o seu republicanismo. Por algumas vezes deixou, aliás, bem claro que gosta de Portugal, o país que o fez viver turbulências políticas e sedimentou o seu pensamento e sentido patriótico.
De camisa branca, irrepreensivelmente passada, e botões de punho azuis de corda dupla, tem uma postura cordial e mantém uma distância eficaz, talvez reflexo de alguma timidez somada com exigência. Mas o olhar claro desafia, quem dele se aproxima, a tentar chegar um pouco mais longe naquela que é apenas uma primeira leitura de personalidade.
José Manuel Ferro é Professor Catedrático e Diretor da Clínica Universitária de Neurologia e Presidente do Conselho de Escola, da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e o órgão máximo que elege o Diretor da Faculdade.
Tenaz, perseverante, é muito autocritico, acha que por vezes até demasiado severo consigo, mas também com os outros. “Quando era mais novo era terrivelmente mordaz”. Quando lhe pergunto de onde nasceu essa extrema segurança, diz que não é seguro demais, mas exigente e rigoroso. A opinião dos outros nunca o estremeceu, mas ainda assim prefere que gostem dele.
Ambicioso desde os tempos estudantis, olha para a sociedade de hoje como que camuflada por um espírito de harmonia que lhe retira alguma competitividade objetiva. Gosta das coisas difíceis, prova disso foram os diversos colegas que o alertaram para “que não se dedicasse a uma especialidade que não tinha tratamentos” e provou que, hoje em dia, já não é assim, a Neurologia tem e terá cada vez mais tratamentos. Gosta, particularmente, dessa ideia de impossibilidade aparente para provar aos outros que se “não está nada feito, é porque então vai acontecer, de certeza”.
A mesma resiliência, intelectual e da profissão, já o acompanhava no desporto, desde os tempos da Faculdade onde jogava râguebi. Anos depois passou a fazer quilómetros de bicicleta, percorrendo o país durante horas, mas uma queda fez com que mudasse o ritmo físico porque o da cabeça não se trava. Passou a caminhar, mas porque tem de ter sempre um sentido em tudo onde se envolve, traçou a meta que tinha de fazer toda a costa litoral do país. E fez. Demorou 4 anos e provou, mais uma vez, que só é difícil aquilo que não se tenta fazer.
Quis ser Engenheiro Químico mas, depois das férias de verão em que leu um livro marcante sobre a psicanálise e conheceu as teorias de Freud e a sua interpretação dos sonhos, decidiu que afinal não ia para o Técnico, mas para Medicina, para Psiquiatria.
Entrou para a Faculdade de Medicina de Lisboa em 1969. Numa altura de alguma “turbulência académica e política, e que permitia ter mais tempo livre”, começou a trabalhar em investigação, na área da Anatomia. Por ter uma nota elevada, ficou então como Monitor, ajudando o Professor Mário Andrea na tese de Doutoramento que fez sobre os tumores da laringe. Mal adivinhava que anos depois de se “fartar de dissecar carótidas” viesse a olhar de novo para a carótida, desta vez associada aos acidentes vasculares cerebrais. Mas já lá vamos, porque foram tempos mais tarde.
Em 1972 formou-se um grupo forte na área da Anatomia e que viria a dar cartas na história da Medicina, um deles era António Rendas, que foi Reitor da Universidade Nova. Foi António Rendas que lhe começou a suscitar a dúvida sobre o caminho da Psiquiatria, sugerindo que seguisse a Neurologia e se juntasse ao laboratório “do investigador novo de que se andava aí a falar”. O tal investigador novo chamava-se António Damásio e estava a começar, no piso 8 do Hospital de Santa Maria, um laboratório de Linguagem, para estudar as perturbações de linguagem, causadas por doenças neurológicas. Em novembro desse marcante ano, José Ferro, decidiu bater à porta do Laboratório de Damásio e apresentar-se para trabalhar. “Olhe, eu gosto do sistema nervoso e doenças neurológicas e quero vir trabalhar consigo”.
E foi.
Foi o 25 de Abril que marcou a separação dos dois, porque António Damásio resolvera entretanto, deixar o país e partir para Inglaterra. Olhando para esse tempo, não só travou conhecimento e trabalho com grandes nomes como Alexandre Castro Caldas (Neurologista), ou Nuno Lobo Antunes (Neuropediatra), mas também contribuiu para ajudar os trabalhos das teses de António Damásio e Castro Caldas. Foi sobre a mesma área que escreve, também, a sua própria tese, sobre as correlações da Tomografia Computorizada com a Neurologia do Comportamento.
Sempre com preocupações maiores do que a sua própria circunstância, envolveu-se na política. Foi dirigente académico, representante dos estudantes no Conselho Diretivo, nos últimos anos de curso de Medicina, e esteve ainda envolvido na Direção da Associação de Estudantes. Nesta altura achava que o poder equitativo entre estudantes e quadros de Direção da Faculdade era um direito lógico, hoje, volvidos anos que lhe sedimentaram solidez de conhecimento e sabedoria de vida, tem presente que tudo tem o seu tempo e que o poder é algo mais estratégico e elaborado, que deve ser conquistado com mais transversalidade e dificuldade.
Fez o internato em Santa Maria e seguiu depois para o Alentejo, ficando responsável pela saúde escolar de Arraiolos, onde fez serviço médico à periferia. Aqui continuou a desenvolver alguns trabalhos de investigação, sobre ligeiras alterações no exame neurológico, em crianças na escola e analisou o seu rendimento escolar. Estudo esse polémico, já que provava que a aprendizagem escolar das crianças, que repetiam anos escolares, estava associada a problemas neurológicos soft e que as colocava em desvantagem escolar.
Deixa o Alentejo e regressa ao internato de Neurologia em Santa Maria onde começa a fazer o seu Doutoramento sobre afasias e outras alterações neurocognitivas, devidas lesões localizadas no cérebro, causadas por acidente vascular. Escolheu este modelo e um então novo método de localizar as lesões e que era a Tomografia computorizada.
Seguiu-se, nos anos 80, um Fellowship na Universidade de Western Ontario, no Canadá e que era um conceituado Centro de Doenças Vasculares Cerebrais. Na altura, já pai das suas duas filhas pequenas viu-se obrigado a ficar mais afastado delas durante um ano. “Foi um bocado duro porque na altura não havia Skype, nem mails, nem whatsapp”. Teme ser considerado demasiado tradicionalista, mas foi o suporte familiar que recebeu da sua mulher, também ela médica, que lhe permitiu voar mais alto, suportando ficar sozinha por um tempo.
Hoje com 40 e 37 anos, uma das suas filhas seguiu a área da Psicologia e trabalha também em Santa Maria, e a outra, apesar de ter sido enfermeira, optou por assumir o papel de mãe de cinco filhos a tempo inteiro, mas não descuida a nova formação em Dentária.
Podia ter ficado a viver no Canadá que a sua família teria embarcado com ele no desafio, mas mais uma vez o gosto de viver cá e o desafio de melhorar Portugal chamou-o e voltou. Quando regressou cumpriu à risca o termo “interno doutorando”, porque terminou a tese de Doutoramento e o internato, praticamente em simultâneo.
Ficou na Faculdade de Medicina onde foi contratado como Assistente e ainda por uns tempos a trabalhar na área da Neurologia do comportamento. Porque o tempo sempre tornou o difícil em menos exigente, foi sempre enriquecendo o seu caminho, decidindo mudanças de tema na sua investigação. Desta vez o mote era a Doença Vascular Cerebral, assim, em vez de se dedicar às consequências das doenças neuropsicológicas da doença vascular cerebral, passou a dedicar-se à Doença Vascular Cerebral em si. “Primeiro porque para ser bom na outra área era preciso estudar muita Psicologia e Linguística, o que acabava por estar muito fora da minha área, que sou médico. E a outra razão é porque o que se fazia nessa altura em doenças vasculares cerebrais era praticamente zero”.
Até àquela data e apenas com exceção dos Professores Nogueira da Costa, Pereira Miguel e Professor Pádua, não havia tratamento nem acompanhamento para os doentes de acidente vascular, “o foco era apenas para as doenças de coração nesta altura”. A primeira equipa nasce em 1985, pelas mãos do médico José Ferro. O primeiro passo foi criar a consulta externa e foram assim crescendo para oito elementos de uma só equipa. É em 2001 que se inaugura a Unidade de AVCs.
Muito conhecido no meio vascular cerebral europeu e mundial dedicou grande foco às doenças das veias do cérebro, o que colocou na liderança mundial nessa área. Outro foco da sua investigação tem sido as consequências neuropsiquiátricas dos AVCs. Na verdade, voltou ao princípio de tudo, quando quis ser Psiquiátrica, a Neuropsiquiatria do AVC e as consequências psiquiátricas que advêm das lesões causadas pelos AVCs.
size="10"
Professor foi fácil construir este caminho? A primeira Unidade de AVCs nasce em 2001? Não foi assim há tantos anos…
José Ferro: Nunca é fácil porque qualquer mudança é sempre difícil. Em Portugal é preciso muita tenacidade, porque tem de saber exatamente o que quer e ser obstinado. É tudo muito lento e há muita resistência passiva. Comparado com outros países, como o Canadá onde trabalhei, claro que aqui há menos recursos. Olhe, uma coisa que se passa agora é que vamos finalmente ter obras aqui no laboratório de EEG, para transformar o laboratório numa unidade de monitorização neurofisiológica e que permite, não só fazer investigação, mas sobretudo selecionar muito bem os doentes para cirurgia, para ficarem tratados de vez da Epilepsia. O primeiro projeto que fizemos foi em 2004, a decisão de finalmente fazer as obras e implementar só foi dada o ano passado, passaram mais de dez anos. Veja como é preciso a pessoa não desistir. Mas também é muito importante divertir-se com o que faz. Outra coisa que me dá muito gosto são os Doutoramentos que tenho orientado. Já foram onze, mas ainda tenho três para acompanhar.
size="10"
Aprende-se muito quando se orienta alguém?
José Ferro: A melhor coisa que se pode ter é um estudante de Doutoramento, quando se tem um bom projeto, deve-se ter um excelente estudante de Doutoramento. Estas pessoas no inico da carreira têm outra energia.
size="10"
São possíveis seguidores dos seus ideais e do que já construiu?
José Ferro: As pessoas excecionais, seja de que área for são poucas, um Ronaldo, ou grandes músicos, ou grandes pintores, aparecem de vez em quando. Médicos e investigadores, com grande qualidade e com capacidade de liderança e visão, de vez em quando, aparecem. Aí de sete em sete anos, oito em oito. Bem, de cinco em cinco, lá nos aparece um interno em que dizemos, “bem este é capaz de chegar lá…”. Mas aparecem, claro. É importante dizer que sempre que alguém cruza competências fica mais forte que os outros.
size="10"
A área das perturbações psiquiátricas após o AVC e que foi uma área onde Professor foi pioneiro em Portugal, é também ela pioneira internacionalmente?
José Ferro: Pode dizer-se que sim porque não houve muita gente até agora a interessar-se por ela, de forma continuada. Contamos com o a colaboração e o enorme saber da Profª. Luísa Figueira. Temos tido várias psicólogas que trabalharam connosco, precisamente, sobre estas áreas; a Doutora Lara Caeiro que ainda trabalha na nossa equipa e fez o Doutoramento sobre a Apatia após o AVC e a Dr.ª Catarina Santos que foi ao outro extremo e que se vai Doutorar agora com o tema a Ira após o AVC.
size="10"
É interessante observar como a Medicina evolui e abre novas portas, sempre acompanhando os tempos…
José Ferro: Há uma coisa que eu digo sempre aos internos “quando se está a praticar Medicina tem--se várias dimensões, a científica, biológica, a clínica, a da própria profissão, a dimensão social, a humana e também tem a dimensão de investigação. Ou seja, você tem que ter uma curiosidade permanente, se quiser fazer investigação clínica. Além disso tem de se questionar a si próprio. Se começar a rever o seu dia de prática clínica e se se perguntar “e isto que eu fiz, esta decisão que eu tomei, que prova suporta isto? Das opções que tomo ao longo do dia, todas são corretas cientificamente? Bem, nesse dia sai com uma carteira de trabalhos para os próximos dez anos, porque há milhares de coisas para saber e outras tantas perguntas de investigação clínica por fazer e por responder.
size="10"
Um bom médico tem que se questionar muito?
José Ferro: Tem, mas também tem que ser pragmático. Porque tem que decidir. Mas a investigação é importante, na medida em que, o médico passa a ter uma visão crítica do que faz e daquilo que aprende. Tudo hoje na vida muda, mas a Medicina muda brutalmente.
size="10"
Fala-me da ligação ao Laboratório do iMM.
José Ferro: Ele é muito simples porque o que eu faço é investigação clínica “pura e dura”. Atualmente temos também alguns projetos com biomarcadores. Não faço investigação laboratorial nem em modelos animais. Temos ensaios clínicos e estudos de observação, e incluído agora também biomarcadores séricos e genéticos, na esperança que adiantem alguma coisa em relação aos outros que nós já conhecemos. Temos uma colaboração com o Instituto Superior Técnico em que eles nos dão uma colaboração preciosa numa das coisas mais difíceis em Medicina que é fazer prognósticos individuais precisos. A forma como conseguimos fazer prognósticos individuais, hoje em dia, é muito limitada, existe ainda um erro muito grande na previsão.
size="10"
Isso faz-me pensar na doença de Alzheimer e na dificuldade que há para traçar um quadro real, com tempos, do que vai acontecer ao doente…
José Ferro: Há muitos familiares que me perguntam, quando é que a minha mãe com Alzheimer vai ter de ser institucionalizada? Respondo muitas vezes que não vale a pena preocuparmos-mos com decisões ainda distantes no tempo, porque muitas vezes em prazos mais curtos acontecem avanços completamente improváveis. Mas a verdade é que não há um algoritmo que lhe permita responder com precisão a isso, ou até o pode ter mas ele dá uma margem de erro pouco aceitável. Mas lá chegaremos, porque usando Big Data e técnicas computacionais de Machine Learning e outras, vai ser possível uma melhoria dos modelos de prognóstico.
size="10"
Mas aí coloca-se outra questão, ficará o “médico humano” nas mãos do “médico da inteligência artificial”?
José Ferro: Não, isso é o mesmo que dizer que os computadores ou a internet são más. O progresso é sempre bom, pode é ser mal utilizado, mas historicamente é bom. Há uns anos atrás, quando eu tinha uma dúvida, ia ver um livro ou perguntava a alguém mais velho. Hoje em dia eu estou a dizer que aquele caso não se trata daquela maneira e os internos estão a validar no PubMed se eu estou a falar certo ou errado.
size="10"
E o que é que tem mais peso, a sabedoria que o tempo traz, ou a informação compilada online?
José Ferro: Bem, eu diria que á sabedoria. Mas eu próprio habituei-me a confirmar. São mudanças de paradigma. Cada passo do raciocínio clínico está associado a uma decisão médica e em cada uma dessas etapas há sempre um determinado nível de incerteza, o que não impede se tome uma ação. Dou-lhe um exemplo, uma pessoa tem uma queixa, a primeira coisa que tenho de decidir é a relevância da queixa e vou progredindo com decisões, diminuindo as minhas incertezas. Uma máquina que cruza dados, todos juntos, pode ser útil para doenças raras. Mas há uma questão que é a maturidade clínica, ou seja, quanto mais você vê casos clínicos, mais conhece o problema. Depois tem a ver com a sua experiência em contextualizar a informação, se for inexperiente não sabe contextualizar.
size="10"
Quando o procuram em consulta vem sempre subjacente o pedido ou a pressão que resolva as doenças dos seus pacientes?
José Ferro: Não sinto essa pressão. Mas há dias em que há casos que marcam mais, especialmente os que correram mal. Há dias em que digo “por que é que não trabalho antes num restaurante ou num bar?”. Às vezes é pesado, porque olho para o perfil dos meus doentes e eles não tendem a melhorar, pioram, é característica de muitas doenças. Há alturas em que se olha para o doente e não se percebe completamente o que é que ele tem e qual é a razão da sua instabilidade clínica, e nessa altura esses casos ficam a fervilhar na cabeça. Mas atividade é muito compensadora emocionalmente, tem muito mais de positivo, senão não se aguentava. Sabe que todas as semanas eu vou tirar dúvidas. Uma das coisas que eu agora faço neste Hospital é ir ver doentes a outros serviços. Há muitos doentes com problemas neurológicos e que estão noutras áreas e agora, com o envelhecimento da população, há muitos doentes com Demência, Parkinson, etç., internados noutros serviços. Muitas vezes, antes de observar esses doentes ou enquanto vou a caminho do serviço onde estão internados, depois de reler o pedido de observação eletrónico, e porque se trata algumas vezes de situações muito complexas ou raras, vou fazer uma pesquisa das últimas publicações relacionadas com aquele problema.
size="10"
Temos cada vez mais doenças neurológicas?
José Ferro: Temos mais, porque temos muita gente com oitenta e mais anos. Hoje a doença de Alzheimer é uma epidemia, quase todos, se não morrermos antes doutra doença, vamos ter essa ou outra doença neurodegenerativa. Se nós resistirmos a quase tudo no leque das outras doenças, vamos acabar por ter uma doença neurodegenerativa. Nos anos 80 e 90 viam-se pouquíssimos doentes com Alzheimer, hoje o principal motivo de consulta de neurologia é relacionado com esta doença. Durante um período de consulta, em quinze doentes, quatro têm doença Alzheimer, ou medo de a ter.
size="10"
Tem metas que ainda não alcançou e que não quer abdicar delas?
José Ferro: Tenho sim. Cientificamente tenho três projetos nas Trombose Venosas Cerebrais para concluir. Gostava que dois dos colaboradores que trabalham comigo, quando eu saísse, já tivessem as suas próprias equipas instaladas em velocidade de cruzeiro. Mas acho que ultrapassei as minhas próprias expetativas. Neste momento ainda tenho é trabalho demais.
size="20"
Joana Sousa
Equipa Editorial
