Investigação e Formação Avançada
Bruno Miranda – O Médico que anda a observar o cérebro
size="10"
Bruno Miranda é médico interno Neurologista em Santa Maria e tem sido muito falado pela imprensa, nos últimos tempos, como um dos médicos/ investigadores mais promissores do panorama científico atual. Ganhou, pelas mãos da Santa Casa da Misericórdia, o Prémio João Lobo Antunes, prémio esse atribuído pela primeira vez e que pretende destacar médicos internos que desenvolvam projetos de investigação clínica, contribuindo para o avanço e melhoria das técnicas de tratamento e humanização dos doentes. Vai estudar doentes com doença de Alzheimer e com outras demências, mas para chegar a este ponto de continuidade, já passou por muitas casas de outras partidas. Essa investigação vai iniciá-la só agora. Talvez em dois anos tenha conclusões a apresentar à comunidade científica.
O nosso ponto de encontro não podia ser outro, entre corredores do Hospital de Santa Maria e depois de subir andares infindáveis até à área de Neurologia, há uma biblioteca que guarda centenas de manuais e estudos sobre o nosso cérebro. O cérebro, esse órgão denso e complexo que tantos cérebros incríveis andam a tentar descodificar.
Estudou na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL), durante o curso fez Erasmus em Paris e já na fase final passou por Londres. Londres, essa mesma cidade por onde decidiu ficar, após o final do sexto ano. Durante dois anos trabalhou no internato geral, mas o coração fintou-lhe as razões do cérebro, que tanto estuda, e regressou a Portugal onde estava a sua mulher. Já em Santa Maria repete o internato geral durante um ano, os oito meses que se seguiram seriam dedicados à Neurologia. Nessa altura volta a fazer nova interrupção para fazer o Doutoramento, entrou no programa doutoral da Fundação Champalimaud e voltou a Londres para trabalhar a sua tese. Fisiologia e Cognição foram suas áreas de excelência. “Eu observava os animais enquanto fazia uma tarefa cognitiva e tentava aprofundar a Teoria de Aprendizagem Animal, que também se aplica a humanos e que está muito relacionado com a Tomada de Decisão”.
Faz então três anos de projeto em Londres, só regressando depois para Portugal, onde durante um ano se dedicou a escrever a tese. A tese juntou as teorias da aprendizagem e “testar modelos, algoritmos que existem mais nas áreas de computação e que são usados para otimizar esses mesmos processos de aprendizagem”. Esta complementaridade de computação com biologia foi o que o fascinou.
Depois de todas as voltas e aprendizagens que eram inerentes ao seu aperfeiçoamento profissional, volta ao internato de Neurologia de Santa Maria, onde ainda se encontra. A tese está defendida, falta-lhe apenas publicar o trabalho à comunidade científica.
Chegar a Santa Maria era a passagem necessária para aliar a experiência académica à componente clínica e assim fundamentar toda a sua investigação.
Baseou-se, então, em dois tipos de aprendizagem distintos, uma de tentativa e erro, e outra que implica planeamento, ou projeção no futuro.
“Estudei como é que os animais aprendem. Uma das teorias mais aceites, a Teoria de Aprendizagem por Reforço, diz que existem dois sistemas de aprendizagem: um por tentativa e erro; e o outro que envolve planeamento. Num exemplo da construção de um puzzle, a pessoa pode construí-lo sem a ideia geral do todo, e por tentativa e erro vai encaixando as peças e algumas até acerta (se tentasse um número elevado de vezes até conseguia fazer tudo corretamente). Depois há outra abordagem que implica uma projeção do que o puzzle será no final. Esta aprendizagem implica fazer associações e ter conhecimento de regras, sendo um processo mais complexo e mais evoluído do ponto de vista filogenético. Se para a tentativa e erro havia já um trabalho com bastante robustez nas bases neurológicas que suportam essa aprendizagem, em relação a este processo mais complexo estamos agora a dar os primeiros passos, onde tentamos trabalhar com hipóteses mais concretas, mas com muito ainda a explorar. Foi nesta última linha de aprendizagem que depois parti para o projeto que me propus agora”.
Este estudo leva Bruno Miranda a dar mais um passo adiante, relacionar o processo de aprendizagem à memória. Propõe-se, então, a estudar dois tipos de memória, a episódica, que é a que diz respeito aos acontecimentos que tivemos no passado, e a semântica, mais de contexto cultural e onde a pessoa aprende, mas não tão relacionado com a sua experiência própria, mas mais à vivência numa cultura com regras culturais impostas.
Esta ligação entre a aprendizagem e a memória vem assim dizer que os sistemas de planeamento podem ser mais complexos, “muitos defendem que planear depende sobretudo da memória episódica. Isto é, há vários autores que defendem que é a memória de acontecimentos passados, num determinado contexto de tempo e espaço, que nos ajuda a projetar no futuro. Porém, há outro tipo de projeções que envolvem outros domínios ou conhecimentos, não necessariamente relacionados com a vivência episódica. Nós temos outro género de memória, a semântica, e ela aplica-se a vários domínios, por exemplo ao motor, quando fazemos um gesto e ele está associado a determinada mensagem social. Se agora aplicarmos este conhecimento a uma vertente mais clínica, ou seja, em pessoas com defeitos, com lesões na área da memoria episódica, sabemos que elas se projetam mal no futuro, mas que quando questionadas sobre outros acontecimentos, nomeadamente culturais, se lhes perguntar quais serão os desafios do país, elas aí vão saber o que responder e até bastante assertivamente”.
size="20"
Estes dois tipos de memória, episódica e semântica, estão alojadas em diferentes partes do nosso cérebro?
Sim. A memória episódica sabe-se que é no lobo temporal médio, na zona do hipocampo, sobretudo. A memória semântica é muito multimodal, ou seja, envolve integração de aspetos visuais, auditivos, etç. Apesar de ainda pouco estudada e menos bem localizada, a memória semântica parece que está alojada na região mais anterior do lobo temporal. Esta proximidade entre as áreas responsáveis pelos dois tipos de memória é conveniente porque ambas participam em diferentes processos cognitivos, nomeadamente no planeamento.
size="20"
Se ao fazer um teste com um paciente, ativando nela um tipo de memória, se nessa altura fizesse um scan (ressonância magnética) ao cérebro, será que se conseguia ler qual o espaço do cérebro mais reativo?
Sim, é isso que se tenta fazer, criando tarefas. É a área de Imagiologia Funcional, uma área muito utilizada na investigação em humanos e que é conveniente porque não é invasiva. Os participantes fazem uma tarefa que pretende estudar um determinado aspeto cognitivo, enquanto a ressonância magnética é feita. Há estudos a mostrar precisamente que em situações de evocação da memória antiga, quando as pessoas fazem uma escolha, sempre tendo em conta determinados contextos de tempo e de espaço, há zonas no hipocampo que ficam ativas.
Outros trabalhos também mostram que se a tarefa depender de elementos mais de memória semântica, a atividade é maior na zona anterior do lobo temporal. Muitas vezes, nesta área da Imagiologia Funcional a beleza, ou o desafio do investigador, é arranjar uma melhor tarefa, porque quanto mais apuradas forem, melhor sucesso terá. Os processos do pensamento são muito complexos e envolvem vários domínios da cognição. Quanto mais quisermos detalhar os estudos, melhor temos de apurar as tarefas, para originar escolhas muito específicas, porque senão corremos o risco de mostrar outras áreas ativas e evidenciar áreas que nada dizem respeito ao processo em estudo. E dilui-se a conclusão. Porém, estes dados funcionais devem ser complementados, com dados de lesão, dados de Neurofisiologia (registos elétricos do sistema nervoso) e com experimentação em animais. Quando temos muita robustez, por exemplo, quando os registos neurofisiológicos mostram que as células disparam muito naquela zona, quando juntamos todas estas vertentes que se complementam, e cujos resultados batem todos muito certo, então aí temos muito maior solidez de dizer que aquela área do cérebro reage aquele tipo de memória. Basta falharmos um passo para contaminar tudo na investigação.
size="20"
Como é que de um estudo baseado na aprendizagem se passa para a análise dos vários tipos de demência?
Foi aí que juntei a experiência do que já sabia, com a parte do meu dia-a-dia atual que é a parte clínica. Na verdade os meus doentes são modelos de um processo que falha. E podemos testar com esses doentes algumas destas hipóteses colocadas. Por um lado, as populações clínicas acabam por ser um teste para verificar as nossas hipóteses. Por outro, a investigação do processo mais básico também pode fazer-nos olhar para a realidade clínica de outra forma. O clínico deve sempre procurar encontrar uma boa explicação para os problemas em causa.
size="20"
Basta falhar um tipo de memória para termos demência ou é necessário que ambas falhem?
Isso é difícil. O que acontece é que no processo da demência, à exceção daquelas que ficam rapidamente instaladas, são mais neurodegenerativas. São processos que lentamente vão falhando com o tempo por perda neuronal. Aqui a particularidade, e que parece curioso, é haver demências que surgem mais em determinadas áreas cognitivas do que noutras. Há pessoas com áreas do cérebro mais fragilizadas e que dão origem a uma determinada demência e outras estão noutra zona e que dão origem a demências distintas. O que vai trazer o conceito de demência é sempre uma componente de deterioração, mas também um impacto marcante na vida da pessoa (ex. ter dependência de outros). Só quando se começa a ter dependência de outros, é que estamos perante um marcador de gravidade. A deterioração clínica é tão marcada que implica nas atividades de rotina da pessoa. A deterioração cognitiva também pode ter relação com a idade, façamos o paralelo a um computador, ele vai ficando desatualizado e os processadores também, e depois os programas já não correm porque os processadores são antigos.
size="20"
Isto quer dizer que se nós exercitarmos muito a nossa memória e os nossos sistemas de aprendizagem, estaremos a reverter o envelhecimento provável dos neurónios?
Há muito trabalho nessa linha, mas a grande discussão é se existe uma reserva cognitiva em pessoas que tenham passado por muitos anos de educação e formações e que por isso solicitaram muitos domínios do seu cérebro. O que se pensa é que essas pessoas têm uma certa proteção, não do processo em si, mas o que parece é que se mantêm mais compensadas durante mais algum tempo. Essas pessoas usam estratégias cognitivas compensatórias, falhando uma área do cérebro, vão usar outras para compensar a que falhou. Estão mais capazes disto porque desenvolveram, durante anos, a capacidade de flexibilização do pensamento. Assim, conseguem colmatar áreas deficitárias com mais facilidade do que se nunca se tivessem comportado assim. Mas este tema é ainda difícil de provar.
size="20"
Fala sempre nos sistemas de aprendizagem que há projeção dos pacientes para o futuro. É o futuro que fica danificado e o passado é o que fica mais presente, quando se pede que façam relatos?
A memória de facto vai-se perdendo e há vários componentes da memória. Mas há memórias que já estão muito cristalizadas no próprio sistema e que são as mais antigas, as que foram evocadas mais vezes. Portanto, o que se perde é a formação de novas memórias e depois, por falência geral, perdem-se também as mais antigas.
Depois há outra perspetiva, a memória pode ser útil para aquilo que a pessoa mais faz que é passar o tempo a planear o futuro. Dou-lhe um exemplo, os doentes não conseguem sequer fazer listas de compras, sabe porquê? Porque não sabem para que vão precisar delas. Há uma falha do uso da memória que vai resolver os problemas do dia-a-dia. As demências impedem as projeções no futuro porque a pessoa já não tem memória para a ajudar nesse processo. Mas tudo isto são visões diferentes perante um mesmo tema e que não nos fala só de memória, mas da falta de imaginação e planificação do futuro.
size="20"
Ganha o Prémio João Lobo Antunes, atribuído pela Santa Casa, como aposta em algo só agora a desenvolver…
Funciona como uma Bolsa, apesar de darem conceito de Prémio por ter avaliação curricular. O que me proponho é estudar as duas memórias, a episódica e a semântica e o seu papel no planeamento. Por um lado vou usar doentes de Alzheimer, já que o defeito principal deles é a falha da memória episódica. Por outro, há uma demência semântica rara onde os doentes têm, precisamente, mais dificuldade em aspetos da memória semântica. Ora, temos aqui dois modelos para testar a hipótese de se estes dois tipos de memória, na verdade, contribuem para o planeamento futuro. Há muitos dados em que a informação episódica ajuda a projeção da pessoa no futuro, já na semântica há poucos dados porque são de avaliação subjetiva, já que não têm uma boa maneira de se medir. O que é que eu fiz então? Criei tarefas, quer para a episódica, quer para a semântica. São tarefas muito parecidas, na episódica a pessoa planeia o que vai fazer a seguir e na outra tarefa a pessoa depende de algo que é conhecido, convencionado. O que é que eu quero testar? É ver se os doentes iniciais de Alzheimer, porque depois já não conseguem colaborar muito nestas tarefas, falham mais nas tarefas episódicas, mas preservam relativamente bem a semântica. E o contrário com a semântica.
O teste desta hipótese é positivo porque a partir daí podemos puxar mais limites porque, sendo dois tipos de demência distintos, se as tarefas conseguirem marcar a distinção, o que vai mostrar é que um circuito está mais afetado, ou o outro. Numa aplicação prática para a clínica isto pode encaminhar os doentes logo de outra forma e mais precocemente. Para a parte de investigação básica pode mostrar, com base em avaliações mais objetivas que, se calhar, o planeamento depende mesmo destas duas memórias. Nesta fase já posso lançar um desafio aos alunos de Medicina, eles podem colaborar comigo nesta investigação, mas explorando também novas vertentes e podendo desenvolver teses para mestrados, prova disso já foi a minha colaboração com um aluno numa bolsa do GAPIC. Eu estou disponível para os receber e acompanhar.
size="40"
Joana Sousa
Equipa Editorial