Mais e Melhor
ESPAÇO S – Há um espaço onde os alunos podem ser exatamente aquilo que São
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Entrar num lugar novo e conquistar o espaço próprio, conhecer novas pessoas, salas e corredores e dar a conhecer quem somos, partindo de uma tábua rasa, é um desafio que todos os alunos têm de superar quando entram numa faculdade. Ingressar em Medicina é outro grande desafio porque implica muito método de trabalho, foco e acompanhar um patamar de exigência até aí desconhecido. Mesmo os que foram sempre alunos brilhantes no ensino secundário, podem experimentar, pela primeira vez, o sentimento de fracasso e a frustração. E vão ter de continuar a provar que são os melhores.
Se, acrescido a todos estes desafios, um aluno tiver de largar a sua casa e a sua família e viver numa cidade nova, então o desafio é ainda maior e pode trazer dificuldades.
Daniel Sampaio, então Professor da Faculdade de Medicina e Diretor do Serviço de Psiquiatria de Santa Maria, preocupou-se sempre com o mito criado sobre o aluno de medicina que o via como alguém que tem de aguentar tudo, não sendo admissível ficar fragilizado do ponto de vista emocional. Esse mito fez com que durante muito tempo os alunos não procurassem ajuda, por constrangimento. Por estas razões, depois de lançado o desafio pela Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (AEFML), foi criado em 2013 o Espaço S, que funcionava com os recursos materiais e humanos do Serviço de Psiquiatria e Saúde Mental do Centro Hospitalar Lisboa Norte (HSM). Depois de algumas mudanças de sala de atendimento, em Setembro de 2017, e com o apoio financeiro da Direção da Faculdade de Medicina, o Espaço S passou a ter uma sala própria no Instituto de Medicina Preventiva e Saúde Pública, contando com um Técnico de Saúde Mental , o psicólogo Rui Martins e tendo sempre a Coordenação do Professor Dr. Daniel Sampaio. Quando é necessário, o Espaço S recorre a apoio psiquiátrico em articulação com Santa Maria, no entanto, com salvaguarda de que não há ligação a docentes de psiquiatria da faculdade.
Chama-se Rui Martins e é ele que recebe e ouve os alunos que procuram respostas. Formado em Psicologia Clínica, na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação, estagiou em Santa Maria, em psiquiatria geral, e com acesso a equipas de comportamento alimentar e núcleos de estudos de suicídio. A sua formação é em terapia familiar. Com larga experiência a trabalhar com estudantes universitários, fez parte de um projeto, a Unicidades (União + Universidade + Necessidade), que se dedicou ao estudo da saúde mental e do bem-estar psicológico.
Trabalhou com os “grupos de pares”, grupos que manifestavam preocupação com outros estudantes e davam a conhecer outro lado da faculdade, promovendo debates e fazendo receções de acolhimento aos estudantes mais novos. A prevenção do bullying era outra das preocupações. Sempre trabalhou com adolescentes e jovens adultos e inerente esteve sempre o contacto e trabalho com as famílias, porque os pais também passam por crises interiores.
Sentada no gabinete e enquanto converso com o psicólogo Rui Martins, acabo por perceber que algures todos nós teremos pontos de análise familiar ou de crescimento. Viver uma crise não é o problema, o problema está quando se finge não ver e não se quer resolver.
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Podemos traçar um padrão de alunos que o procura?
Grande parte dos alunos que surgem são os do segundo ano e que passaram grandes dificuldades de integração no primeiro. Reconhecem que passaram muito mal no primeiro semestre do primeiro ano e não querem mais passar por essa fase excessiva. Há pontos-chave ao longo do curso e que podem gerar crises: o primeiro ano pela mudança gigante, depois os anos barreira, ou seja, aqueles em que todas as cadeiras para trás têm de estar feitas, e depois é o ano do Harrison, o exame final que lhes exige dominar muita matéria e já estão a trabalhar.
Surgem muitos estudantes deslocados, ou seja, aqueles que estão longe geograficamente. Já trazem esse fator de risco e que não é exclusivo em Medicina. Confrontam-se com dificuldades de adaptação, mas em Medicina tem a agravante de precisarem de muito tempo para estudar e de se encontrarem longe das suas cidades. Muitas vezes não têm sequer casas perto da faculdade, vivem na margem sul, ou na linha de Sintra, o que aumenta o tempo em que andam de transportes. Um estudante que está em casa da família, está a estudar até à hora de jantar e só é chamado para ir para a mesa, eventualmente, participa no final a arrumar a mesa, mas não tem que deixar de estudar para arrumar a casa. Um aluno deslocado tem todas essas preocupações extra, arrumar a casa, fazer o jantar, ir às compras para ter refeições. Depois o próprio espaço físico é diferente, a maioria partilha casas ou quartos e tudo isso faz com que adaptação seja mais difícil. Para além disso, para muitos, é a primeira vez que saem de casa dos pais.
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Há um corte abrupto do cordão umbilical aos pais?
O corte é para ir fazendo na adolescência. Deve ser quase o esticar do cordão aos poucos, até ele mudar de forma. E estes alunos fazem-no de forma muito radical, porque num dia estão com a família, no dia a seguir estão a muitos kms de distância, em condições de vida, de hábitos e rotinas, completamente diferentes aos da família de origem. Isto é muito pesado do ponto de vista emocional. Mas este é só um fator de risco que, quando associado a outros, pode dar origem a perturbações psicológicas. Um padrão que pode ser atribuído a estes alunos de Medicina é que se se confrontam, muitas vezes, pela primeira vez com a sua incompetência. Ou seja, quando entram em Medicina foram, 99% dos casos, alunos brilhantes, eram os melhores das suas escolas e depois chegam aqui e há uma ou outra disciplina que não conseguem fazer, reprovam. Por muito que venham preparados, muitos deles, têm dificuldade em sentir e receber este novo input do meio que lhes diz, “isto que tu conseguiste ser e fazer, já não é suficientemente bom”.
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Queria chegar, precisamente, a este ponto para perguntar se podemos estabelecer um padrão do aluno de medicina. E o padrão é dizer que eram todos excelentes alunos e eles sabem-no. Mas chegados a esta nova etapa, alguém lhes mostra que não, não são todos excelentes. Isto causa-lhes danos emocionais?
Há aqui muitas alterações do ponto de vista de autonomia e isso não é só fazer as coisas exteriores de forma autónoma, é a capacidade de gerir internamente as mudanças. Grande parte deles chegam e estão bem estruturados do ponto de vista emocional, mas há outros que estão a meio deste processo, onde no seu próprio passado familiar já lhes foi acontecendo algumas coisas. Há alguns que chegam e emocionalmente não estão preparados para esse “murro” de realidade. Isso é sentido de forma difícil porque ele não sabe o que mudar para voltar a ser muito bom e muitas vezes insiste nas mesmas estratégias e mantém as mesmas técnicas de estudo que tinha na adolescência. Dou um exemplo, muitos deles estavam habituados a estudar sozinhos nas suas casas, horas e horas com tudo protegido e salvaguardado. Chegam cá e entendem que há que intensificar esse padrão, mais horas fechados em casa a estudar. Estão sozinhos, não há a família para os puxar nas atividades extra, ou nas refeições e quando surgem os primeiros sintomas depressivos como a insónia, falta de concentração, ou dificuldade de alimentação, o processo de estudar passa a ser penoso. A cabeça anda às voltas e sentem cada vez mais o isolamento, a frustração e aumenta a ansiedade porque se sentem inseguros. Quando vão tentar fazer a cadeira que não fizeram antes, os picos de ansiedade são muito elevados.
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Como é que os consegue ajudar?
Passa muito por discutir com eles estas estratégias. Há uma intervenção objetica e comportamental, centrada na resolução de problemas. Vamos identificar nos padrões de comportamento o que não está a correr bem e depois tentar alterar no dia a dia essas estratégias. Sugerir que criem grupos de estudo e se juntem a outro colega que esteja a passar pelas mesmas dificuldades. A partilha ajuda muito. Não é estudar em grupo, mas há um fator de controlo social, ou seja, quando eu me distraio e tenho um colega focado à minha frente, então eu também me consigo focar mais a rapidamente a seguir e há menos dispersão. Depois há um sentimento de pertença, estes jovens, sobretudo os deslocados, têm mais dificuldade em sentir a pertença, porque sentem que as pessoas da sua terra eram mais próximas e mais amigas. Mas, na verdade, o que há é uma dificuldade destes alunos se identificarem, obviamente vão ter de escolher e optar por novos padrões, novos estilos de vida.
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Quando é que há para si um alerta que o seu paciente, neste caso o aluno precisa de um apoio extra, com extensão à Psiquiatria?
O nosso modelo é de terapia de intervenção breve. O objetivo é ter intervenções curtas e espaçadas, não conseguimos ter intervenções semanais. As situações clinicas mais graves precisam de acompanhamento semanal. São 5 / 6 sessões para identificar o problema, definir estratégias e pô-las em prática.
Daí a algum tempo fazemos um follow up, para saber como está, mas sempre com a porta aberta para voltar sempre que sinta necessidade. Nos casos mais graves são encaminhados para Santa Maria ou os Hospitais de referência da área geográfica do estudante. Relativamente à referenciação para Santa Maria, pode ter o risco do médico vir a ser professor deste aluno, neste momento o objetivo é que os psiquiatras não sejam médicos da Faculdade. Essa era uma das questões que existia, os alunos eram atendidos na Psiquiatria, onde havia aulas, e ai cruzavam-se com colegas e causava desconforto. Agora isso já não acontece, aqui estão noutro edifício (Medicina Preventiva). Na primeira consulta eu faço a história clinica e um diagnóstico para perceber a gravidade da situação e depois de perceber as opções para aquela situação, fazemos intervenção aqui no Espaço, ou referenciação para fora.
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Já houve algum caso em que teve de chamar os pais do aluno?
Ainda não foi preciso, mas não é uma ideia posta de parte, porque muitas vezes o contexto familiar está a passar por dificuldades. A família passa por fases de vida disfuncionais, pais com filhos que estão a ficar adultos, pais com filhos que estão a sair de casa, muitos deles filhos únicos cujo foco estava só neles. Os pais poderiam vir conversar comigo um bocadinho, sim.
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Há uma disfunção normal nas famílias?
As famílias passam normalmente por fases de desequilíbrio. Quando nasce um bebé e tudo se desorganiza, quando o filho vai para a escola e começa a ter de estudar e fazer trabalhos de casa, quando o filho sai de casa e vai para a faculdade, ou quando há uma doença no seio familiar. As famílias passam assim por fases disfuncionais em que se desorganizam, mas depois costumam ter recursos com capacidades reorganizadoras e de reequilíbrio. Não é por se passar por um período difícil que a família tem um problema, ele só existe se ela não conseguir fazer a transição para a outra fase organizada. Do caos é feita a viagem para o crescimento individual e coletivo.
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Para marcar consulta com o Psicólogo Rui Martins basta enviar mail para
espacos@medicina.ulisboa.pt - com os seguintes dados:
Nome Completo, Data de Nascimento, Ano de Curso, Telefone de contacto.
A este mail apenas terá acesso o Psicólogo, sendo este completamente sigiloso e interdito a qualquer outra pessoa externa ao Grupo de Trabalho do Espaço S.
O Espaço S funciona no Instituto de Medicina Preventiva, ao lado do Edifício Egas Moniz, gabinete 71, com o seguinte horário:
3.ª | 4ª – 9h30 às 12h30 // 5.ª – 14h às 18h
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Joana Sousa
Equipa Editorial