A Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL) é a promotora do Projeto Emprego Saudável, coordenado pela Professora Maria João Heitor, Psiquiatra*. Entrevistámos a Professora a respeito deste projeto e falámos, para além de outras questões, do modo como o desemprego afeta as diferentes camadas da população, nomeadamente as mulheres.
*Psiquiatra; Coordenadora do Projeto Emprego Saudável a decorrer na Faculdade de Medicina de Lisboa e financiado através das EEA grants.
Diretora do Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental e do Serviço de Psiquiatria do Hospital Beatriz Ângelo (HBA), Loures; Presidente da Comissão de Ética para a Saúde, HBA; Psiquiatra na Casa de Saúde da Idanha, IIHSCJ; Presidente Eleita da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental.
Newsletter: Pode falar-nos um pouco da génese do Projeto Emprego Saudável?
Professora Maria João Heitor: O projeto Emprego Saudável surge numa época em que Portugal enfrenta um período de crise económica. Com o advento da crise, há uma deterioração das condições socioeconómicas de uma parte da população, em particular dos que experienciam uma situação de desemprego, e um acentuar de desigualdades sociais. Isto pode levar a uma pior saúde mental e a um menor bem-estar. Há um efeito cascata e de círculo vicioso: pessoas com problemas de saúde mental comuns (depressão e ansiedade) têm duas vezes mais probabilidade de estarem desempregadas e indivíduos com doença mental grave (como perturbações psicóticas) têm quatro a cinco vezes mais desemprego do que a população geral. Por sua vez, o desemprego pode conduzir a uma pior saúde mental e assim sucessivamente. Posto isto, tornou-se urgente intervir junto dos grupos mais fragilizados no sentido de minimizar os efeitos negativos da crise na saúde das pessoas.
Um pequeno grupo do Instituto de Medicina Preventiva e Saúde Pública (IMP&SP) da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL) apresentou uma candidatura em 2014, no âmbito do Programa Iniciativas de Saúde Pública (operador: Administração Central do Sistema de Saúde/ ACSS, Ministério da Saúde), inserida na sub-área de promoção da saúde mental nos locais de trabalho e nos grupos mais afetados pela crise económica, cujo financiamento decorre através das EEA grants. O projeto, aprovado, foi desenvolvido por uma equipa técnico-científica, multidisciplinar (inicialmente constituída por Maria João Heitor, Ana Virgolino, Joana Carreiras, Joana Carvalho, Osvaldo Santos, Sérgio Moreira, Tânia Fernandes, Alexandra Dinis, David Cruz, Elisa Lopes, Inês Almeida, Rosário Rosa, Sara Ambrósio e Tatiana Marques), no IMP&SP e Instituto de Saúde Ambiental (ISAMB), com o apoio dos serviços da FMUL (promotor do projeto) e de alguns colaboradores para áreas específicas (António Vaz Carneiro e Leonor Nicolau, entre outros). Estabelecemos 30 parcerias, três internacionais (com a Noruega e Islândia) e 27 nacionais de diferentes setores (saúde, emprego, segurança social, autarquias, organizações não governamentais e IPSS, sociedades científicas e universidades).
Equipa do Projecto Emprego Saudável
Quais os vossos objetivos?
Com este projeto, pretendemos contribuir para: reduzir desigualdades associadas ao impacto da crise; promover a saúde mental e prevenir a doença mental dos desempregados e dos profissionais que lidam com populações vulneráveis (desempregados e trabalhadores temporários); informar a decisão política sobre como atuar para minimizar danos nesta e em eventuais futuras crises económicas; desenvolver, partilhar e disseminar boas práticas; contribuir para a integração de dados multisetoriais; melhorar a articulação entre diferentes setores e fortalecer as relações bilaterais entre Portugal e os Estados Doadores (Noruega, Islândia e Listenstaine).
Em suma, consideramos que o projeto é um contributo extremamente importante e inovador para o desenvolvimento de políticas públicas saudáveis, dirigidas a dois grupos-alvo, desempregados e profissionais, políticas essas que favorecem a integração e participação plena no mercado de trabalho, a saúde e o bem-estar.
O que é que pretenderam estudar e conhecer?
Pretendemos estudar e responder aos efeitos da crise económica e da instabilidade laboral na saúde mental, efetuar uma intervenção efetiva junto de desempregados inscritos há menos de um ano em centros de emprego (92% estavam à procura de reemprego) e junto de profissionais de diferentes setores que lidam com desempregados e empregados temporários.
Como? Através da capacitação em promoção da saúde mental e bem-estar, visando, no caso dos desempregados, a literacia funcional para a saúde mental, as competências sociocognitivas e a comunicação interpessoal, a capacidade autorregulatória emocional, estratégias de coping e resiliência. No caso dos profissionais, acresce a promoção do engagement no local de trabalho e a prevenção e tratamento do burnout.
Além disso, efetuámos um levantamento de fontes de dados nomeadamente na saúde, emprego, segurança social e autarquias, identificámos um conjunto de indicadores relevantes e desenvolvemos um modelo para um sistema de monitorização intersetorial numa perspetiva de saúde mental em todas as políticas. Isto pode ser muito útil para avaliação de necessidades, planeamento e informação à decisão política.
O projeto tem sido levado a cabo como pretendiam?
Inicialmente, estava previsto que o projeto tivesse uma maior duração mas fomos informados que teríamos menos tempo para a sua realização. Assim, foi necessário condensar as atividades previstas num período de, apenas, cerca de 18 meses (abril de 2015 a novembro de 2016). Também, ao longo do tempo, fomos ficando com uma equipa progressivamente mais reduzida e na fase final éramos pouquíssimos… O desafio foi, pois, ainda mais complexo mas conseguimos realizar todas as atividades e alcançar os produtos previstos o que é muito gratificante.
Para a sua implementação, contámos com três parceiros internacionais, dois Noruegueses e um Islandês, respetivamente, a Faculty of Health Science Buskerud and Vestfold University College, o Norwegian Institute of Public Health e o Directorate of Health, Department of Health Promotion, Determinants of health and wellbeing (Reykjavík, Iceland) e 27 parceiros nacionais: Instituto de Emprego e Formação Profissional, IP (IEFP, IP); Instituto de Segurança Social, IP (ISS); Instituto Nacional Doutor Ricardo Jorge, IP (INSA, IP); Nova School of Business and Economics (SBE); Administração Regional de Saúde (ARS) Norte; ARS LVT; ARS Alentejo; ARS Algarve; Centro Hospitalar (CH) Tâmega e Sousa; CH Universitário de Coimbra; CH Lisboa Norte; CH Psiquiátrico de Lisboa; CH de Setúbal; CH do Algarve; Hospital Beatriz Ângelo, Loures (HBA); Instituto das Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus (IIHSCJ); ALTERSTATUS; CEMBE; EUTIMIA; Câmara Municipal (CM) Amarante; CM Figueira da Foz; CM Odivelas; CM Loures; CM Sines; CM Vila Real de Santo António; Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental (SPPSM) e Associação Comercial e Industrial da Figueira da Foz (ACCIF).
A experiência de articulação com os nossos parceiros e as características inovadoras do projeto excederam positivamente as nossas expetativas.
Quanto a resultados e conclusões dos vossos estudos, o que pode destacar? Há diferenças de género significativas? Há dados que possam considerar novos? Alguma coisa que vos tenha surpreendido?
Uma das componentes principais deste projeto foi a implementação de um programa de capacitação e promoção da saúde mental. Neste sentido, entre março e abril de 2016 fomos para a comunidade e foram realizadas sessões de formação nos concelhos de Sines e Loures, dirigidas a pessoas em situação de desemprego, dos 18 aos 65 anos, escolaridade entre o 9º e o 12º ano e também a pessoas com Ensino Superior, inscritas nos centros de emprego.
Para realizarmos esta formação, a equipa do projeto contou também com o apoio e a colaboração dos nossos parceiros do IEFP, Centro de Emprego de Loures e Serviço de Emprego de Sines, Câmara Municipal de Sines, Câmara Municipal de Loures, Alterstatus e Eutimia.
As temáticas abordadas em cada sessão passaram, numa fase inicial, por uma visão mais geral e contextual do trabalho, emprego e desemprego e a sua relação com o bem-estar, estreitando depois para questões mais centradas na saúde e na doença mental, com especial atenção para as perturbações mentais comuns – perturbações depressivas e perturbações da ansiedade. A intervenção com os desempregados envolveu 140 indivíduos e se compararmos os dados colhidos antes e um mês após a intervenção, verificamos que quando comparados com um grupo de controlo, metade dos participantes melhorou o bem-estar psicológico, mais de um terço aumentou a sua literacia para a ansiedade e aproximadamente metade aumentou a sua literacia para a depressão. Desempregados com filhos têm melhor perceção do seu estado geral de saúde e melhor literacia sobre ansiedade. Mulheres têm mais literacia sobre depressão do que os homens. No entanto, mulheres desempregadas têm menos bem-estar psicológico do que os homens, estão em maior sofrimento.
Em relação aos profissionais, a nossa intervenção contemplou 175 trabalhadores de múltiplos setores. Embora 35% se tenha sentido triste ou deprimido recentemente, e considere que trabalhar o dia inteiro com pessoas é uma pressão, a maioria sente-se muito envolvido e empenhado no seu trabalho.
Conhecemos bem, hoje, os mecanismos, o modo como o desemprego (e o emprego) afetam a saúde mental dos indivíduos?
Segundo a literatura científica, sabe-se que tanto o desemprego como condições laborais precárias estão relacionados com uma degradação da saúde mental e bem-estar global dos indivíduos. Os problemas económicos e a pobreza são determinantes sociais poderosos com impacto na saúde mental. Por outro lado, uma boa saúde mental é condição básica para o desenvolvimento socioeconómico de um país.
Ter ou não ter trabalho faz toda a diferença. Vai ter implicações na identidade de cada um, na família, nos amigos, no lazer, na gestão do tempo, nas finanças, no projeto de vida e na saúde.
Se por um lado estar desempregado ou ter um trabalho precário impacta na saúde e saúde mental, por outro lado, sabe-se que o stress no local de trabalho contribui para cerca de 50% de dias de trabalho perdidos e aumenta até 40% o risco de doença cardiovascular.
Na sua opinião, o que deverá a nossa sociedade fazer para prevenir os problemas de saúde mental associados ao desemprego e ao emprego?
Medir, avaliar, intervir e comunicar.
MEDIR - Citando Joseph Stiglitz, “What you measure affects what you do. If you don’t measure the right thing, you don’t do the right thing”. Nesta linha, é fundamental termos uma noção o mais exata possível da realidade, para isso precisamos de excelentes sistemas de informação, com instrumentos adequados e mecanismos de colheita, análise e monitorização de dados, e indicadores multisetoriais.
AVALIAR - Antes de replicarmos e disseminarmos as intervenções que foram testadas na comunidade no âmbito do projeto Emprego Saudável, conduzimos uma avaliação de impacte na saúde mental e bem-estar (mental health and wellbeing impact assessment/MHWIA) para, a priori, avaliarmos os potenciais impactes positivos e negativos, deste tipo de intervenções na saúde mental e no bem-estar, e para identificarmos como futuras intervenções podem contribuir para maximizar o bem-estar quer dos profissionais quer das pessoas que estes apoiam (desempregados e trabalhadores temporários). Deste modo, as avaliações de impacte são indispensáveis.
INTERVIR - Intervenções dirigidas, entre outros aspetos, à promoção da literacia para a saúde mental são cruciais. Um ponto chave em promoção da saúde mental é a informação. Se um indivíduo está informado adequadamente acerca da depressão, ansiedade e estigma, sobre como detetar sinais e sintomas precocemente e onde procurar ajuda, é meio caminho andado para que a morbilidade psiquiátrica não se instale ou para que seja o mais cedo possível identificada, abordada e tratada.
COMUNICAR – a estratégia de comunicação, seja ela interpessoal (no atendimento a públicos vulneráveis, nas empresas, no seio das famílias), entre e para profissionais de diversos setores ou para o público em geral, é um componente central no projeto.
O projeto terá continuidade noutros projetos ou iniciativas semelhantes?
Para já, procurámos assegurar a sustentabilidade do projeto através de, essencialmente, quatro aspetos: desenvolvemos duas APP para telemóveis, para promoção de estilos de vida saudáveis; estabelecemos uma parceria com a Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental para a continuidade de um sistema de monitorização e vigilância epidemiológica em saúde mental, em articulação com entidades competentes nestas áreas (Direção-Geral da Saúde, Instituto de Emprego e Formação Profissional, IP/IEFP, Instituto de Segurança Social, IP/ISS, Autarquias, entre outros); estamos a concluir um instrumento de informação à decisão política (policy brief) com recomendações quanto às ações que é necessário desenvolver face a pessoas mais vulneráveis; certos outputs do projeto, tais como manuais de intervenção e boas práticas em desempregados e em profissionais, vão ser partilhados com organismos nacionais, regionais e locais, de vários setores, esperando que possam ser integrados em procedimentos e práticas regulares junto das populações.
O projeto prevê a criação de uma rede de promoção da saúde mental e prevenção da doença mental que seja sustentável, intersetorial e que garanta impactes positivos e um retorno do investimento para a saúde, bem-estar e economia.
Website do projeto: www.empregosaudavel.org