Momentos
Um salto quântico
Estávamos em 1998. Eu tinha preparado para as minhas provas de agregação uma proposta para uma nova cadeira opcional em Medicina Molecular a incluir no sexto ano do curso de Medicina. Tinha para mim que uma vez na posse de formação clínica, o aluno-médico estaria bem preparado para absorver o impacto da “nova Biologia” na sua prática clínica e com isso colocá-la ao serviço do doente.
Para meu desconsolo, a proposta não viria a merecer mais que uns vagos cumprimentos circunstanciais do júri, presidido por João Lobo Antunes, pelo que antevi de imediato estar destinada ao esquecimento eterno em algum obscuro arquivo nas profundezas da casa.
O que nunca poderia ter previsto foi o que se seguiu. Como sempre fazia, João Lobo Antunes tinha lido com atenção o relatório do curso, em particular a laboriosa argumentação a favor da causa, contida na introdução. Horrorizado por ter tropeçado algures na palavra detestada “holístico" (confesso que nunca mais a usei), não mostrou qualquer entusiasmo pela hipotética nova cadeira. Limitou-se a dizer-me que o importante não era ensinar o que depressa seria esquecido, o importante era, sim, criar as condições para que a medicina molecular fosse praticada de forma sustentada, e ao mais alto nível, na própria Escola. Criar um “Instituto de Medicina Molecular” na Faculdade era o que teria que ser feito, disse ele.
Recordo a estupefação que senti na altura. Era como se estivesse a presenciar um salto quântico, fenómeno que julgava invisível e reservado ao domínio da abstração teórica da Física. E, no entanto, era-o, pelo que representava de descontinuidade abrupta de “estados de energia”.
Criou de imediato um pequeno grupo para dar andamento ao assunto. Inicialmente éramos três, Rui Victorino, Domingos Henrique e eu própria, a que se juntaria mais tarde Carmo Fonseca. Foi um tempo interessante e intenso, de análise exaustiva de modelos congéneres internacionais, de conversas com colegas de outros países que há muito tinham vivido experiências semelhantes, de reuniões que ele conduzia com a sua admirável e implacável lucidez.
Havia, contudo, a priori, dois problemas a resolver. O primeiro era, evidentemente, criar as condições operacionais que tornassem possível um Instituto deste tipo. À época, a única forma de o fazer era conseguir aceder ao clube seleto dos Laboratórios Associados ao Ministério da Ciência, estruturas com financiamento público privilegiado, entidades meta-universitárias com regras de gestão ágeis, livres do espartilho burocrático da própria Universidade. Os Laboratórios Associados, contudo, só podiam ver a luz do dia por decisão exclusiva ministerial, pelo que fui encarregue de “sondar” a FCT sobre o assunto. Sondei, e Luís Magalhães, na altura o Presidente da FCT, mostrou desde logo aquilo a que hoje é costume chamar-se de “abertura”. Sim, o Ministério veria com bons olhos um novo Laboratório Associado na área biomédica em Lisboa, baseado no “CEBIP”, centro FCT criado anos antes por David-Ferreira.
Subsistia o segundo problema – convencer a Escola a acolher no seu seio, sem o rejeitar, um “corpo estranho”, a ela ligado, mas dela independente. Lobo Antunes, negociador tão hábil quanto pragmático, sabia bem o que o esperava. Mas sabia também, que a liberdade, aliada a uma intransigente exigência qualitativa, são os valores que sustentam a boa ciência e, portanto, não são negociáveis.
Conseguiu. Em 2002, o Instituto de Medicina Molecular era formalmente criado como Laboratório Associado e instalava-se no (pouco) espaço que restava no novo edifício Egas Moniz, já (generosamente) ocupado por alguns institutos de ciências básicas da Faculdade.
Sob a sua orientação estratégica, como Presidente, coadjuvado pela mão firme e eficaz da Diretora Executiva Maria do Carmo Fonseca, o Instituto de Medicina Molecular transformou-se rapidamente num ambiente fervilhante de jovens investigadores, alguns deles vindos de percursos internacionais de excelência.
Dez anos depois, quando decide passar o testemunho a Carmo Fonseca e atribuir a nova Direção executiva a Maria Mota, Bruno Silva Santos e Henrique Veiga Fernandes, eles próprios jovens estrelas ascendentes na ciência mundial, o Instituto de Medicina Molecular era já considerado um dos melhores centros de investigação biomédica do país.
Digo “considerado” porque, como sabemos, em ciência o que vale não é a perceção subjetiva e “local” de valor. O valor absoluto e relativo de uma instituição só pode ser determinado por avaliação externa, isenta e competitiva. Assim, a consideração só passaria a inquestionável facto quando, em 2014, o IMM é reconhecido com Excelente por avaliadores internacionais independentes, no âmbito de uma avaliação global de todas as unidades de I&D do país.
O que essa avaliação não podia mostrar, contudo, era o impacto da instituição na própria Universidade. Em Outubro de 2015, estava eu ainda em funções governamentais, Maria Mota convida-me para dizer “umas palavras” numa cerimónia pública de apresentação de uma ERA-CHAIR do IMM (CAML).
Pedi que me fornecessem dados estatísticos desagregados sobre a Universidade de Lisboa, no que respeita à conquista de fundos no Horizonte 2020, o mais competitivo programa europeu de financiamento para a ciência. Confesso a surpresa (minha e de todos): 45% dos cerca de 33 milhões de euros obtidos pela Universidade de Lisboa nos dois primeiros anos daquele Programa (2014 e 2015), tinham sido capturados pelo Instituto de Medicina Molecular.
A que se devia então este singular sucesso? A competitividade internacional em ciência é, obviamente, um proxy de qualidade, e a qualidade, por sua vez, é sempre uma derivada da atividade de indivíduos. Procurei, e a explicação surgiu, cristalina: o Instituto de Medicina Molecular era, à data, o centro de investigação público com mais grantees do European Research Council, e uma das instituições com maior número de Investigadores FCT, eles próprios selecionados por concurso internacional competitivo. O Instituto de Medicina Molecular tinha-se tornado, inequivocamente, um polo atractor de talentos.
Estes números pouco nos dizem, no entanto, sobre a imaterialidade da influência do Instituto na própria Faculdade de Medicina. Não tenho dados que me permitam um juízo objetivo. Sei apenas que o Instituto de Medicina Molecular é hoje motivo de orgulho para a Faculdade, vários dos seus Professores são nele Investigadores principais, os alunos usufruem do contacto com laboratórios e cientistas, a investigação clínica adquire progressivamente a pujança derivada da pesquisa pluridisciplinar. Por seu lado, o Hospital, elemento fundamental da trindade CAML, invoca sistematicamente a “parceria” com o IMM como peça curricular distintiva entre os centros hospitalares nacionais.
A minha perceção, como observadora externa que não pertence ao IMM, é a de que, o caminho se tem feito caminhando (y al volver la vista atrás se ve la senda que nunca se ha de volver a pisar), mas o desígnio maior de Lobo Antunes - a fértil e harmoniosa cooperação entre ciência básica e a medicina clínica, alicerçada em impecáveis valores éticos e de ethos institucional – ainda não foi plenamente atingido.
Esse é o desafio, e o imperativo moral, das atuais lideranças nos anos que se aproximam.
Tarefa fácil e de sucesso garantido? Não o é certamente e ele sabia-o, melhor do que ninguém. Mas, como diz Edward O. Wilson, no seu luminoso livro Consilience. The Unity of Knowledge, “The moral imperative of humanism is the endeavor alone, whether successful or not, provided the effort is honorable and failure memorable. If those committed to the quest fail, they will be forgiven. When lost, they will find another way. “
Leonor Parreira
Lisboa, 30 de outubro de 2016
Para meu desconsolo, a proposta não viria a merecer mais que uns vagos cumprimentos circunstanciais do júri, presidido por João Lobo Antunes, pelo que antevi de imediato estar destinada ao esquecimento eterno em algum obscuro arquivo nas profundezas da casa.
O que nunca poderia ter previsto foi o que se seguiu. Como sempre fazia, João Lobo Antunes tinha lido com atenção o relatório do curso, em particular a laboriosa argumentação a favor da causa, contida na introdução. Horrorizado por ter tropeçado algures na palavra detestada “holístico" (confesso que nunca mais a usei), não mostrou qualquer entusiasmo pela hipotética nova cadeira. Limitou-se a dizer-me que o importante não era ensinar o que depressa seria esquecido, o importante era, sim, criar as condições para que a medicina molecular fosse praticada de forma sustentada, e ao mais alto nível, na própria Escola. Criar um “Instituto de Medicina Molecular” na Faculdade era o que teria que ser feito, disse ele.
Recordo a estupefação que senti na altura. Era como se estivesse a presenciar um salto quântico, fenómeno que julgava invisível e reservado ao domínio da abstração teórica da Física. E, no entanto, era-o, pelo que representava de descontinuidade abrupta de “estados de energia”.
Criou de imediato um pequeno grupo para dar andamento ao assunto. Inicialmente éramos três, Rui Victorino, Domingos Henrique e eu própria, a que se juntaria mais tarde Carmo Fonseca. Foi um tempo interessante e intenso, de análise exaustiva de modelos congéneres internacionais, de conversas com colegas de outros países que há muito tinham vivido experiências semelhantes, de reuniões que ele conduzia com a sua admirável e implacável lucidez.
Havia, contudo, a priori, dois problemas a resolver. O primeiro era, evidentemente, criar as condições operacionais que tornassem possível um Instituto deste tipo. À época, a única forma de o fazer era conseguir aceder ao clube seleto dos Laboratórios Associados ao Ministério da Ciência, estruturas com financiamento público privilegiado, entidades meta-universitárias com regras de gestão ágeis, livres do espartilho burocrático da própria Universidade. Os Laboratórios Associados, contudo, só podiam ver a luz do dia por decisão exclusiva ministerial, pelo que fui encarregue de “sondar” a FCT sobre o assunto. Sondei, e Luís Magalhães, na altura o Presidente da FCT, mostrou desde logo aquilo a que hoje é costume chamar-se de “abertura”. Sim, o Ministério veria com bons olhos um novo Laboratório Associado na área biomédica em Lisboa, baseado no “CEBIP”, centro FCT criado anos antes por David-Ferreira.
Subsistia o segundo problema – convencer a Escola a acolher no seu seio, sem o rejeitar, um “corpo estranho”, a ela ligado, mas dela independente. Lobo Antunes, negociador tão hábil quanto pragmático, sabia bem o que o esperava. Mas sabia também, que a liberdade, aliada a uma intransigente exigência qualitativa, são os valores que sustentam a boa ciência e, portanto, não são negociáveis.
Conseguiu. Em 2002, o Instituto de Medicina Molecular era formalmente criado como Laboratório Associado e instalava-se no (pouco) espaço que restava no novo edifício Egas Moniz, já (generosamente) ocupado por alguns institutos de ciências básicas da Faculdade.
Sob a sua orientação estratégica, como Presidente, coadjuvado pela mão firme e eficaz da Diretora Executiva Maria do Carmo Fonseca, o Instituto de Medicina Molecular transformou-se rapidamente num ambiente fervilhante de jovens investigadores, alguns deles vindos de percursos internacionais de excelência.
Dez anos depois, quando decide passar o testemunho a Carmo Fonseca e atribuir a nova Direção executiva a Maria Mota, Bruno Silva Santos e Henrique Veiga Fernandes, eles próprios jovens estrelas ascendentes na ciência mundial, o Instituto de Medicina Molecular era já considerado um dos melhores centros de investigação biomédica do país.
Digo “considerado” porque, como sabemos, em ciência o que vale não é a perceção subjetiva e “local” de valor. O valor absoluto e relativo de uma instituição só pode ser determinado por avaliação externa, isenta e competitiva. Assim, a consideração só passaria a inquestionável facto quando, em 2014, o IMM é reconhecido com Excelente por avaliadores internacionais independentes, no âmbito de uma avaliação global de todas as unidades de I&D do país.
O que essa avaliação não podia mostrar, contudo, era o impacto da instituição na própria Universidade. Em Outubro de 2015, estava eu ainda em funções governamentais, Maria Mota convida-me para dizer “umas palavras” numa cerimónia pública de apresentação de uma ERA-CHAIR do IMM (CAML).
Pedi que me fornecessem dados estatísticos desagregados sobre a Universidade de Lisboa, no que respeita à conquista de fundos no Horizonte 2020, o mais competitivo programa europeu de financiamento para a ciência. Confesso a surpresa (minha e de todos): 45% dos cerca de 33 milhões de euros obtidos pela Universidade de Lisboa nos dois primeiros anos daquele Programa (2014 e 2015), tinham sido capturados pelo Instituto de Medicina Molecular.
A que se devia então este singular sucesso? A competitividade internacional em ciência é, obviamente, um proxy de qualidade, e a qualidade, por sua vez, é sempre uma derivada da atividade de indivíduos. Procurei, e a explicação surgiu, cristalina: o Instituto de Medicina Molecular era, à data, o centro de investigação público com mais grantees do European Research Council, e uma das instituições com maior número de Investigadores FCT, eles próprios selecionados por concurso internacional competitivo. O Instituto de Medicina Molecular tinha-se tornado, inequivocamente, um polo atractor de talentos.
Estes números pouco nos dizem, no entanto, sobre a imaterialidade da influência do Instituto na própria Faculdade de Medicina. Não tenho dados que me permitam um juízo objetivo. Sei apenas que o Instituto de Medicina Molecular é hoje motivo de orgulho para a Faculdade, vários dos seus Professores são nele Investigadores principais, os alunos usufruem do contacto com laboratórios e cientistas, a investigação clínica adquire progressivamente a pujança derivada da pesquisa pluridisciplinar. Por seu lado, o Hospital, elemento fundamental da trindade CAML, invoca sistematicamente a “parceria” com o IMM como peça curricular distintiva entre os centros hospitalares nacionais.
A minha perceção, como observadora externa que não pertence ao IMM, é a de que, o caminho se tem feito caminhando (y al volver la vista atrás se ve la senda que nunca se ha de volver a pisar), mas o desígnio maior de Lobo Antunes - a fértil e harmoniosa cooperação entre ciência básica e a medicina clínica, alicerçada em impecáveis valores éticos e de ethos institucional – ainda não foi plenamente atingido.
Esse é o desafio, e o imperativo moral, das atuais lideranças nos anos que se aproximam.
Tarefa fácil e de sucesso garantido? Não o é certamente e ele sabia-o, melhor do que ninguém. Mas, como diz Edward O. Wilson, no seu luminoso livro Consilience. The Unity of Knowledge, “The moral imperative of humanism is the endeavor alone, whether successful or not, provided the effort is honorable and failure memorable. If those committed to the quest fail, they will be forgiven. When lost, they will find another way. “
Leonor Parreira
Lisboa, 30 de outubro de 2016