Momentos
A Sabedoria da Tribo – A João Lobo Antunes in memoriam
João Lobo Antunes foi uma figura cimeira da Faculdade de Medicina, da Universidade e da vida colectiva portuguesa nas últimas décadas. Foi exemplo do Homem de Cultura, de quem com justiça se poderá dizer que Nada lhe foi indiferente, na Medicina e na Ciência, na Arte e na Intervenção Cívica.
Numa época em que a Medicina Académica parece atravessar crise de identidade e de futuro, não apenas em Portugal mas também na Europa e nos Estados Unidos – recorde-se o editorial na revista The Lancet sobre a necessidade de recuperar essa dimensão fundamental da Medicina – João Lobo Antunes corporizou o Homo Academicus, cujos atributos são cultura científica, modernidade na acção clínica, compromisso com o Conhecimento pelo exercício da Ciência, objectividade, exercício critico permanente, respeito pelos Valores da Ética e do Profissionalismo.
Como Neurocirurgião, Director de Serviço e Professor Catedrático, renovou a especialidade na Instituição, o seu Serviço é hoje uma referência no panorama nacional e também internacional, formou um escol de colaboradores que saberá dar continuidade à sua obra.
A Neurocirurgia com suas especificidades e organização hospitalar é, em todo o lado, um mundo à parte. Na nossa Instituição ocupa uma área autónoma, distante do resto da actividade cirúrgica, com o seu Bloco Operatório e Cuidados Intensivos próprios, espaço e equipamentos que possibilitam a sua intervenção e que obviamente não podem estar dispersos. Mas integra o mundo e a cultura da Cirurgia, é componente indispensável para a sua Unidade essencial de que falava Owen Wangesteen. Educação em Cirurgia, desenvolvimento da sua dimensão académica, incorporação inteligente e útil da inovação tecnológica e a defesa duma visão ética e humana, são hoje prioridades numa reflexão necessária sobre o Presente e o Futuro da Cirurgia.
Partilhámos interesses comuns. Na Cirurgia, pelas doenças cerebrovasculares e a prevenção do AVC, ele que trazia da sua vivência americana um interesse discreto pela cirurgia carotídea, mas que rapidamente percebeu que, na nossa realidade, éramos nós os cirurgiões vasculares que tínhamos tradição, know-how e expertise, facto que aceitou naturalmente estimulando a nossa participação nas reuniões clínicas do seu serviço e nas reuniões internacionais que organizou, como na da Sociedade Europeia de Neurocirurgia, a que presidiu, e nos distinguiu com o convite para uma lição plenária. Nas nossas especialidades cirúrgicas experimentámos o impacto tremendo da tecnologia, que mudou a imagem da doença e a intervenção terapêutica. O João não escapou ao fascínio da reflexão sobre a mão, que nos identifica e dá nome à nossa arte de curar – Cirurgia é a arte de curar através da mão - continuou essa inquietação que vinha de João Cid dos Santos, que gostava que as suas fotografias incluíssem a sua mão! – mas concordava com o nosso Mestre que, invocando Leonardo da Vinci, defendia que a Cirurgia como a Arte, era um affare mentale, e que conhecimento, capacidade de decisão, coragem e humanidade são requisitos indispensáveis para a excelência em Cirurgia e não apenas a mão hábil do artesão.
A Educação em Cirurgia necessita de uma reflexão profunda. Há anos que venho expressando a minha preocupação pela excessiva fragmentação da formação dos Cirurgiões, pela ausência de um tempo mais alargado para o que designei por Educação Geral em Cirurgia, antes que o/a jovem aspirante a cirurgião possa escolher o seu caminho futuro, a sua área de intervenção. A aceleração do tempo actual, as vicissitudes das carreiras hospitalares com a necessidade de formação rápida e cada vez mais especializada e até a própria organização hospitalar, têm contribuído para uma visão cada vez mais afunilada – unidimensional(?) - da ciência cirúrgica e para a sua compartimentação excessiva.
No seu livro sobre Hamilton Bailey – A Surgeon´s life Adrian Marston interrogava-se sobre o futuro do cirurgião e cito pela elegância do texto no original ...the new professional will be the expert and to label him/her as radiologist, surgeon, technician will become futile…. they will be experts of a new type, servants of society no longer guardians of tribal wisdom.
Eram relativamente frequentes reuniões de trabalho entre os dois, enquanto fui Director da Faculdade, habitualmente curtas, objectivas e sem perda de tempo. Mas recordo um dia, em que a conversa derivou para a evolução da Cirurgia, a necessidade de preservar a Cultura Cirúrgica – the wisdom of the tribe. Partilhávamos a visão, talvez romântica, da necessidade do compromisso com a Arte e a Ciência da Cirurgia e que esse objectivo era uma necessidade para a sobrevivência do ethos cirúrgico.
A dimensão académica nas especialidades cirúrgicas é um problema decisivo para a sobrevivência da Cirurgia Académica, assunto que foi uma das suas preocupações, sobre a qual escreveu dando o testemunho da sua vivência americana. É um desafio institucional que não podemos perder!
O seu compromisso com o Conhecimento através do exercício da Ciência, atributo do homo academicus, terá sido, porventura, a razão última do seu empenhamento na concretização do Instituto de Medicina Molecular (IMM), aproveitando uma legislação que favoreceu a emergência de Núcleos de Inovação e Investigação com modelos de governação mais dinâmica e menos burocratizante. A mudança foi notável, representou um upgrade na nossa capacidade de interrogação da natureza. Para a sua missão, é fundamental a integração cada vez mais dinâmica com a Escola Médica e o Hospital, esse foi o grande objectivo que presidiu ao lançamento da iniciativa do Centro Académico de Medicina, um consórcio das três instituições, no qual me apoiou e de que foi, também, subscritor. O seu desenvolvimento parece-me imperativo indeclinável, potenciando investigação, inovação, contribuindo para o desenvolvimento da Medicina e para a nossa afirmação como Instituição Académica com verdadeira dimensão europeia, na Ciência, no Ensino e na Prática Clínica. É um marco e um passo decisivo na Reforma indispensável nas instituições académicas da Saúde e na Educação e Formação dos médicos e dos outros profissionais de Saúde.
Era essa cultura médica e cirúrgica que, a par da sua expertise como neurocirurgião, lhe conferia a bird’s eye na arte e na técnica cirúrgica, e que, com a humanidade na relação médico-doente, tornou a sua recordação imperecível. Trabalhámos sempre em Instituições privadas diferentes, mas esse facto nunca impediu a referenciação partilhada de alguns doentes. Transcrevo este mail que recebi de um doente (real! cuja identificação se omite pelas razões óbvias) que é disso testemunho eloquente:
Que melhor poderá aspirar um Médico que a gratidão desinteressada e perene dos seus doentes?
Pertencemos a uma geração que viveu e assumiu um desafio de mudança e que foi, também, de grande progresso no nosso Pais. Poderia ter sido melhor? Certamente que sim, a inquietação, a procura permanente de fazer mais e melhor são também atributo do ethos cirúrgico.
A reflexão que Reynaldo dos Santos iniciou e outros continuaram sobre a Formação das Elites e a sua prioridade numa nação pequena, mantém cada vez mais actualidade, é um imperativo categórico que a inteligência portuguesa não pode ignorar.
A memória da acção de João Lobo Antunes, da sua inteligência e do seu sentido de Dever serão uma inspiração e um estímulo para todos nós.
FMUL, 2 de Novembro 2016
José Fernandes e Fernandes
Professor Catedrático e Decano do Grupo da Cirurgia
Numa época em que a Medicina Académica parece atravessar crise de identidade e de futuro, não apenas em Portugal mas também na Europa e nos Estados Unidos – recorde-se o editorial na revista The Lancet sobre a necessidade de recuperar essa dimensão fundamental da Medicina – João Lobo Antunes corporizou o Homo Academicus, cujos atributos são cultura científica, modernidade na acção clínica, compromisso com o Conhecimento pelo exercício da Ciência, objectividade, exercício critico permanente, respeito pelos Valores da Ética e do Profissionalismo.
Como Neurocirurgião, Director de Serviço e Professor Catedrático, renovou a especialidade na Instituição, o seu Serviço é hoje uma referência no panorama nacional e também internacional, formou um escol de colaboradores que saberá dar continuidade à sua obra.
A Neurocirurgia com suas especificidades e organização hospitalar é, em todo o lado, um mundo à parte. Na nossa Instituição ocupa uma área autónoma, distante do resto da actividade cirúrgica, com o seu Bloco Operatório e Cuidados Intensivos próprios, espaço e equipamentos que possibilitam a sua intervenção e que obviamente não podem estar dispersos. Mas integra o mundo e a cultura da Cirurgia, é componente indispensável para a sua Unidade essencial de que falava Owen Wangesteen. Educação em Cirurgia, desenvolvimento da sua dimensão académica, incorporação inteligente e útil da inovação tecnológica e a defesa duma visão ética e humana, são hoje prioridades numa reflexão necessária sobre o Presente e o Futuro da Cirurgia.
Partilhámos interesses comuns. Na Cirurgia, pelas doenças cerebrovasculares e a prevenção do AVC, ele que trazia da sua vivência americana um interesse discreto pela cirurgia carotídea, mas que rapidamente percebeu que, na nossa realidade, éramos nós os cirurgiões vasculares que tínhamos tradição, know-how e expertise, facto que aceitou naturalmente estimulando a nossa participação nas reuniões clínicas do seu serviço e nas reuniões internacionais que organizou, como na da Sociedade Europeia de Neurocirurgia, a que presidiu, e nos distinguiu com o convite para uma lição plenária. Nas nossas especialidades cirúrgicas experimentámos o impacto tremendo da tecnologia, que mudou a imagem da doença e a intervenção terapêutica. O João não escapou ao fascínio da reflexão sobre a mão, que nos identifica e dá nome à nossa arte de curar – Cirurgia é a arte de curar através da mão - continuou essa inquietação que vinha de João Cid dos Santos, que gostava que as suas fotografias incluíssem a sua mão! – mas concordava com o nosso Mestre que, invocando Leonardo da Vinci, defendia que a Cirurgia como a Arte, era um affare mentale, e que conhecimento, capacidade de decisão, coragem e humanidade são requisitos indispensáveis para a excelência em Cirurgia e não apenas a mão hábil do artesão.
A Educação em Cirurgia necessita de uma reflexão profunda. Há anos que venho expressando a minha preocupação pela excessiva fragmentação da formação dos Cirurgiões, pela ausência de um tempo mais alargado para o que designei por Educação Geral em Cirurgia, antes que o/a jovem aspirante a cirurgião possa escolher o seu caminho futuro, a sua área de intervenção. A aceleração do tempo actual, as vicissitudes das carreiras hospitalares com a necessidade de formação rápida e cada vez mais especializada e até a própria organização hospitalar, têm contribuído para uma visão cada vez mais afunilada – unidimensional(?) - da ciência cirúrgica e para a sua compartimentação excessiva.
No seu livro sobre Hamilton Bailey – A Surgeon´s life Adrian Marston interrogava-se sobre o futuro do cirurgião e cito pela elegância do texto no original ...the new professional will be the expert and to label him/her as radiologist, surgeon, technician will become futile…. they will be experts of a new type, servants of society no longer guardians of tribal wisdom.
Eram relativamente frequentes reuniões de trabalho entre os dois, enquanto fui Director da Faculdade, habitualmente curtas, objectivas e sem perda de tempo. Mas recordo um dia, em que a conversa derivou para a evolução da Cirurgia, a necessidade de preservar a Cultura Cirúrgica – the wisdom of the tribe. Partilhávamos a visão, talvez romântica, da necessidade do compromisso com a Arte e a Ciência da Cirurgia e que esse objectivo era uma necessidade para a sobrevivência do ethos cirúrgico.
A dimensão académica nas especialidades cirúrgicas é um problema decisivo para a sobrevivência da Cirurgia Académica, assunto que foi uma das suas preocupações, sobre a qual escreveu dando o testemunho da sua vivência americana. É um desafio institucional que não podemos perder!
O seu compromisso com o Conhecimento através do exercício da Ciência, atributo do homo academicus, terá sido, porventura, a razão última do seu empenhamento na concretização do Instituto de Medicina Molecular (IMM), aproveitando uma legislação que favoreceu a emergência de Núcleos de Inovação e Investigação com modelos de governação mais dinâmica e menos burocratizante. A mudança foi notável, representou um upgrade na nossa capacidade de interrogação da natureza. Para a sua missão, é fundamental a integração cada vez mais dinâmica com a Escola Médica e o Hospital, esse foi o grande objectivo que presidiu ao lançamento da iniciativa do Centro Académico de Medicina, um consórcio das três instituições, no qual me apoiou e de que foi, também, subscritor. O seu desenvolvimento parece-me imperativo indeclinável, potenciando investigação, inovação, contribuindo para o desenvolvimento da Medicina e para a nossa afirmação como Instituição Académica com verdadeira dimensão europeia, na Ciência, no Ensino e na Prática Clínica. É um marco e um passo decisivo na Reforma indispensável nas instituições académicas da Saúde e na Educação e Formação dos médicos e dos outros profissionais de Saúde.
Era essa cultura médica e cirúrgica que, a par da sua expertise como neurocirurgião, lhe conferia a bird’s eye na arte e na técnica cirúrgica, e que, com a humanidade na relação médico-doente, tornou a sua recordação imperecível. Trabalhámos sempre em Instituições privadas diferentes, mas esse facto nunca impediu a referenciação partilhada de alguns doentes. Transcrevo este mail que recebi de um doente (real! cuja identificação se omite pelas razões óbvias) que é disso testemunho eloquente:
Dr. Um Abraço
Foi com surpresa e dor que ouvi que o Dr Lobo Antunes faleceu.
Foi ele que me levou até si, depois de analisar os meus exames.
Fui lá, pois, as dores que tinha nas costas eram insuportáveis.
É com tristeza que soube da morte dele, pois foi para mim
uma pessoa extraordinária a explicar-me o que se passava realmente comigo.
A todos colegas, família e amigos os meus sentimentos.
Que melhor poderá aspirar um Médico que a gratidão desinteressada e perene dos seus doentes?
Pertencemos a uma geração que viveu e assumiu um desafio de mudança e que foi, também, de grande progresso no nosso Pais. Poderia ter sido melhor? Certamente que sim, a inquietação, a procura permanente de fazer mais e melhor são também atributo do ethos cirúrgico.
A reflexão que Reynaldo dos Santos iniciou e outros continuaram sobre a Formação das Elites e a sua prioridade numa nação pequena, mantém cada vez mais actualidade, é um imperativo categórico que a inteligência portuguesa não pode ignorar.
A memória da acção de João Lobo Antunes, da sua inteligência e do seu sentido de Dever serão uma inspiração e um estímulo para todos nós.
FMUL, 2 de Novembro 2016
José Fernandes e Fernandes
Professor Catedrático e Decano do Grupo da Cirurgia
