Reportagem / Perfil
Reflexões sobre as Ciências Cardiovasculares numa Instituição Académica Médica
Cardiologia em Portugal e na FML/HSM
Em Portugal, várias foram as figuras que contribuíram para o desenvolvimento da Cardiologia, tendo a Faculdade de Medicina de Lisboa/Hospital de Santa Maria estado sempre no centro desses avanços desde o seu início. De realçar nomes como o do Professor Eduardo Coelho, autor da primeira arteriografia coronária humana, em 1952, infelizmente raramente citado nos livros de texto; Professor Arsénio Cordeiro, que em 1968 abre a primeira Unidade de Cuidados Intensivos Coronários em Portugal, no Hospital de Santa Maria. Após a jubilação destes dois Mestres fica o legado da Cardiologia na Faculdade de Medicina de Lisboa nas mãos dos Professores Salomão Sequerra Amram, Carlos Ribeiro e Fernando de Pádua. Posteriormente à jubilação destes Mestres o Serviço Hospitalar de Cardiologia, já unificado, é dirigido sucessivamente pelos Professores Celeste Vagueiro, Correia da Cunha, Mário Lopes, António Nunes Diogo e desde 27 de Julho deste ano por mim próprio. Mais recentemente, e na sequência da criação do Centro Hospitalar Lisboa Norte, o Serviço de Cardiologia do Hospital Pulido Valente, inicialmente designado Serviço de Cardiologia II, foi fundido com o Serviço de Cardiologia do HSM.
O actual Serviço de Cardiologia do CHLN é assim composto pelo serviço localizado em Sta Maria e pelo polo localizado no HPV.
Hoje em dia é cada vez mais importante a existência de metodologias de gestão que permitam uma rentabilização de recursos, o que é particularmente relevante quando se tratam de estruturas públicas e em países com dificuldades económicas, como é o nosso caso. Penso ser visível para todos o grande esforço de contenção, racionalização e rigor de gestão dos dinheiros públicos efectuado pela actual Administração do CHLN. É também muito importante que os médicos estejam sensibilizados para os conceitos de rentabilidade e eficácia dos meios diagnósticos e terapêuticos, estando certo de que querem ser parte desse esforço de transparência e de rigor. Também penso que numa estrutura hospitalar universitária há janelas de oportunidade que podem ajudar a resolver alguns dos problemas. Pela sua essência, um Serviço Universitário pode, e deve, ser imaginativo na sua gestão. Por exemplo através do acesso a outras fontes de financiamento que podem contribuir para a auto-sustentabilidade do mesmo. Refiro-me, por exemplo, à participação em registos, ensaios clinicos, projectos de iniciativa do investigador, contratos de cooperação com entidades várias, incluindo industria farmacêutica e de equipamentos, dentro de toda a transparência e legalidade exigidas, mas que hoje em dia são prática comum nos centros mais avançados de todo o Mundo.
Um conjunto de circunstâncias actuais permitir conceptualizar uma integração das várias áreas cardiovasculares (Cardiologia, Cirurgia Cardiotorácica e Cirurgia Vascular), de forma a criar-se um grande Departamento de Coração e Vasos, com a capacidade de dar uma resposta completa e integrada aos problemas relacionados com Patologia Cardiovascular. Sendo esta a responsável pela maior parte da mortalidade e morbilidade na nossa população, será pois crucial ter um Departamento funcionante numa perspectiva moderna dum Hospital Terciário Universitário, como é o CHLN, no verdadeiro espírito do que actualmente se designa por "Heart Vascular Team".
Objectivos gerais de funcionamento
Os objectivos essenciais do Serviço de Cardiologia podem resumir-se aos seguintes aspectos:
1) Prática duma Cardiologia Clínica e de Intervenção Modernas, num hospital terciário Universitário integrado na rede do Serviço Nacional de Saúde, o que inclui Técnicas Diagnósticas Invasivas e de Intervenção Terapêutica Cardiológica (Cateterismo cardíaco/Avaliação Hemodinâmica, Electrofisiologia e Pacing), Técnicas de Diagnóstico Não Invasivas (Electrocardiografia, Ergometria, Ecocardiografia em todas as vertentes e outros métodos imagiológicos, Registo de Holter, Marcador de Eventos, Testes de Vasoreactividade, MAPA, etc) para além das consultas (gerais e especializadas), Cuidados Intensivos Cardiológicos e prestação da Cardiologia de Urgência/Emergência.
2) Formação de novos médicos especialistas de Cardiologia de Adultos (Internato), de médicos sub-especialistas em Cardiologia (Electrofisiologia e Pacing, Imagiologia Cardíaca Avançada, Cardiologia de Intervenção e Intensivistas Cardiológicos) e ainda de Técnicos Cardiopneumologistas e de Enfermeiras Especializadas.
3) Investigação científica clínica e translacional, em articulação com o Centro Cardiovascular da Universidade de Lisboa (CCUL), de que sou Coordenador Científico, com a FMUL (onde sou o Regente da área de Cardiologia), com o IMM e ainda com outras instituições nacionais e internacionais, nas várias áreas e subáreas da Medicina Cardiovascular. Nesse âmbito foi criado o Gabinete de Apoio à Investigação Científica (GAIC) no âmbito da AIDFM, o qual tem sido um instrumento fundamental no planeamento e concretização da investigação clinica no Serviço.
4) Ensino Médico pré e pós-graduado adequado às exigências actuais, incluindo a responsabilidade de todo o ensino da Medicina Cardiovascular dos alunos do Mestrado Integrado em Medicina da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (cerca de 350 alunos por ano), bem como colaboração com outras instituições Universitárias no ensino pré e pós-graduado (Instituto Superior Técnico, Escola Superior de Tecnologias da Saúde, entre outras).
5) Gestão de um Serviço de Cardiologia académico por objectivos, apoiado nas novas Tecnologias de Informação e Comunicação e com fortes preocupações com a Ética, a Humanização da prática médica e a Economia da Saúde em Cardiologia.
Para cada um dos pés do tripé Prestação clinica, Investigação e Ensino, os problemas que se colocam actualmente e no futuro próximo podem ser resumidos da seguinte forma:
a) Cuidados Hospitalares. Os doentes hospitalizados com cardiopatias primárias (como arritmias malignas, síndromes coronários agudos, insuficiência cardíaca refractária ou hipertensão pulmonar, apenas como exemplos) necessitam de ter acesso rápido a cuidados diferenciados de Saúde, onde os métodos mais avançados de diagnóstico e tratamento cardiológico possam ser postos à sua disposição, incluindo meios sofisticados de diagnóstico (imagiologia cardiovascular, laboratórios de electrofisiologia e de hemodinâmica) e de tratamento (cardiologia de intervenção, arritmologia de intervenção, articulação funcional à cirurgia cardíaca). Tudo isto implica uma dinâmica muito activa que permita uma rentabilização adequada dos recursos e o estabelecimento de regras de funcionamento que permitam equilibrar a relação benefício-custo. Estes aspectos são particularmente relevantes numa altura de escassos recursos em que a utilização apropriada e judiciosa de meios é fundamental.
Um Departamento de Cardiologia moderno deverá englobar todas as áreas cardiológicas que hoje em dia são essenciais para a qualidade da assistência que o doente cardíaco exige, incluindo, as Unidades de Cuidados Intensivos Cardíacos, Laboratórios de Electrocardiografia, Electrofisiologia e Pacing, Meios complementares de diagnóstico não invasivos nas suas várias vertentes, e com especial relevo para a Ecocardiografia e a Ressonância Magnética, Hemodinâmica e Cardiologia de Intervenção, áreas de internamento não intensivo, consulta externa de Cardiologia, e consultoria cardiológica de apoio a outros serviços.
Só é possível fazer uma Cardiologia moderna, eficaz, rentável, de acordo com os padrões que estão bem estabelecidos, se de facto houver uma excelente articulação funcional de todos estes componentes.
Deverão, assim, estar perfeitamente coordenados e interactuantes os múltiplos componentes da cardiologia moderna, incluindo as unidades de cuidados intensivos, bem equipadas e treinadas para o doente cardíaco, a unidade de cardiologia invasiva de diagnóstico e intervenção, a imagiologia cardiovascular, com especial relevo para a ecocardiografia avançada (transesofágica e de sobrecarga) e a ressonância magnética cardíaca, a electrocardiologia, com Holter, potenciais tardios, esforço, a electrofisiologia e pacing e o ambulatório de cardiologia. Tudo isto em estreita colaboração com as especialidades mais próximas, com especial relevo para a Cirurgia cardíaca, em primeira mão, e para a Cirurgia Vascular.
b) Investigação. Pode considerar-se que deverão existir três grandes objectivos investigacionais em Cardiologia nos anos mais próximos: 1. Continuar a aperfeiçoar o estado da arte, através de melhoramentos e novos desenvolvimentos na área da imagiologia, cardiologia invasiva/intervenção e fármacos cardiovasculares; 2. Avaliação de novas tecnologias, quer técnicas de diagnóstico, quer intervenções terapêuticas e definir “guidelines” de actuação; 3. Aplicação dos conhecimentos e técnicas da biologia moderna no conhecimento, prevenção e tratamento das doenças cardiovasculares.
A investigação científica representa uma das áreas fundamentais num Hospital de cariz académico. Assim, o desenvolvimento de protocolos de investigação nas áreas mais recentes e relevantes, em estreita colaboração quer com os serviços quais?? de índole clínica, quer com as ciências básicas (numa visão de aplicação translacional do conhecimento) será igualmente uma das nossas prioridades. Esta dinamizaçao da produção científica traduzir-se-á naturalmente na publicação de artigos científicos em revistas com factor de impacto, o que permitirá aumentar de forma significativa a visibilidade nacional e internacional do Serviço e, consequentemente, da instituição. Iremos também continuar a participar em ensaios de investigação clínica e registos multicêntricos, o que se traduzirá não só num incremento da imagem do Centro, como também num potenciar da sua sustentabilidade, o que é hoje em dia crítico em qualquer instituição.
c) Ensino. O papel do Serviço/Departamento de Cardiologia Universitário no Ensino deverá ser encarado ao nível pré-graduado no ensino da Cardiologia para estudantes, e no pós-graduado na formação de especialistas de Cardiologia e Educação Médica Continuada, quer para cardiologistas, quer para não cardiologistas. O enfoque deverá ser, naturalmente, na formação do cardiologista do futuro, seguindo aquilo que são as recomendações internacionais, com especial relevo para o Core Curriculum definido pela Sociedade Europeia de Cardiologia onde se detalham os vários passos na formação do cardiologista. Mas importa também referir a relevância do treino pós-graduado de outros profissionais de saúde, como médicos de outras especialidades, com especial enfoque na anestesia, cuidados intensivos/medicina intensiva e cirurgia cardiotorácica e vascular.
As doenças cardiovasculares representam a maior causa de mortalidade e morbilidade no nosso País, a par do que se passa no Mundo em geral. Assim, a existência dum Serviço de Cardiologia funcional, moderno, bem articulado com as outras especialidades, em particular aquelas que por natureza lhe estão mais próximas, é essencial afim de prestar os cuidados de saúde cardiovascular hoje exigíveis a uma instituição hospitalar como o CHLN. Neste sentido enumero algumas das áreas em que me parece ser necessário um cuidado e enfoque especial:
a) A cardiopatia isquémica tem um peso específico muito elevado, na admissão diária de doentes que acorrem directamente ao nosso Hospital, ou são enviados por outros hospitais. Assim é fundamental continuar a dar uma resposta adequada ao elevado número de doentes admitidos com suspeita de sindrome coronário agudo/enfarte agudo do miocárdio que diariamente acorrem aos Serviços de Urgência (e outras situações agudas ou agudizadas: angina instável, disritmia grave, disfunção hemodinâmica aguda). Apenas como exemplo, de acordo com publicações recentes, 20% dos internamentos médicos na Suécia são por doença coronária aguda. Nos E.U.A. um Hospital Comunitário duma zona de 250 000 habitantes tem 18 camas de Unidade Coronária e 32 camas de Cuidados Intermediários. No nosso caso são realizadas cerca de 500 angioplastias primárias, no contexto de enfarte agudo do miocárdio, sendo o centro nacional com maior volume de casos neste âmbito
b) Reforçar o Programa de Cardiologia de Intervenção, incluindo não só o tratamento da doença arterial coronária, mas também o tratamento de cardiopatias estruturais, no que constitui hoje em dia um dos maiores avanços da Cardiologia Moderna. Neste sentido, mais uma vez, a integração com o Serviço de Cirurgia Cardiotorácica é essencial para dar corpo ao conceito de "Heart Team", hoje em dia, ums indicação formal para tratar grande parte das cardiopatias. Seria importante o estabelecimento duma sala hibrida, que permitisse a realização de procedimentos combinados, em estreita colaboração da cardiologia de intervenção com a cirurga cardíaca e vascular. As patologias que actualmente se incluem nesta área incluem a patologia valvular, sobretudo a estenose valvular aórtica, com implantação de próteses valvulares por via percutânea, bem como a insuficiência mitral com o sistema de Mitraclip; encerramento do apêndice auricular na prevenção do tromboembolismo em doentes com fibrilhação auricular; encerramento de Foramen Ovale Permeável (FOP), Comunicações inter-auriculares (CIAs) ou ventriculares (CIVs); desnervação simpática das artérias renais, entre outras.
c) Uma outra área clinica que consome elevados recursos e cujo número está previsto continuar a aumentar de forma muito significativa, é a Insuficiência Cardíaca. Esta previsão acenta no facto de cada vez mais doentes sobreviverem a processos importantes, como a isquémia miocárdica aguda, para além da maior longevidade das populações.
O Serviço tem tido um papel muito importante no tratamento e seguimento destes doentes, em que a complexidade de alguns dos tratamentos hoje em dia indicados (como é exemplo, entre outros, a ressincronização cardíaca), implica a existência de equipas treinadas no tratamento agudo e no seguimento destes doentes.
O reforço da equipa de insuficiência cardíaca, com a criação duma verdadeira Unidade de Insuficiência Cardíaca que permita dar resposta atempada e dentro do que mais avançado se faz, a estes doentes, parece-me ser uma das prioridades.
Aqui também a articulação com a cirurgia cardíaca tem que ser muito próxima com a criação de um programa de assistência ventricular (ECMO; Coração artificial etc. ) como “bridge to recovery or to transplant”, já previsto no programa do Serviço de Cirurgia Cardiotorácica. (Transplantação- de inicio protocolo de colaboração com centro com transplantação- futuro programa de transplantação no HSM)
d) A área de Hipertensão Pulmonar tem sido tradicionalmente uma área forte do Serviço tendo conquistado por direito próprio ser uma das Unidades de referenciação em Portugal.
Trata-se duma área em que a articulação estreita do ambulatório com o internamento é essencial, bem como a existência de equipas altamente treinadas no tratamento destes doentes, pelo que a manutenção e se possível reforço da equipa actual será muito importante.
e) Realização atempada de todas as técnicas diagnósticas cardiológicas (invasivas e não-invasivas) nos doentes referenciados de outros Serviços ou enviados ao Hospital: Electrocardiologia (ECG simples e de alta resolução, Prova de esforço, Electrocardiografia dinâmica de Holter), Imagiologia cardiovascular, com particular relevo para a Ecocardiologia (Modo M, bidimensional, Doppler, de sobrecarga e transesofágica nas indicações especificas, sem esquecer a eco intracoronária ou a tridimensional), Hemodinâmica invasiva e angiografia coronária, Estudos Electrofisiológicos de rotina e avançados.
f) Centro de “Pacemakers” e Arritmologia Diagnóstica e de Intervenção. Tradicionalmente uma área de excelência do Serviço, com um movimento anual comparável ao das maiores instituições europeias.
g) Avaliação e selecção pré-operatória dos doentes com potencial indicação cirúrgica e apoio aos problemas do pós-operatório, em estreita cooperação com a Cirurgia Cardiotorácica, incluindo a realização periódica de sessões clinicas conjuntas, já em funcionamento uma vez por mês.
h) Avaliar o risco cardiológico em doentes cardíacos candidatos a cirurgia não-cardíaca, através do estabelecimento duma estrutura funcional de apoio aos outros Serviços.
i) Consulta Externa de Cardiologia, a qual deverá ser uma verdadeira consulta de hospital terciário, em estreita ligação com as Unidades de Saúde Familiar e Hospitais pertencentes à nossa área de referenciação.
Será igualmente importante a existência de consultas especiais (algumas já existentes) que permitam explorar e demonstrar o carácter de diferenciação e excelência do Serviço.
j) Centro de Reabilitação Cardíaca, já iniciado no Núcleo do HPV, em colaboração com a Medicina Física e de Reabilitação, o qual representa uma área algo esquecida na instituição, mas que poderá receber com esta Unidade um impulso significativo.
Centro Cardiovascular da Universidade de Lisboa (CCUL): A missão do CCUL consiste em contribuir para o conhecimento do sistema CV, no estado de saúde e de doença, através de investigação interdisciplinar, permitindo a translação dos conhecimentos básicos para a prática clínica, de forma a intervir decisivamente no prognóstico, cuidados e qualidade de vida dos doentes, organizar-se para desenvolver inovação disruptiva e assegurar liderança na formação da próxima geração de cientistas.
A estratégia actual do CCUL é a de construir em Portugal em paralelo com os objectivos do Serviço, uma plataforma de pesquisa translacional tangível, madura e eficaz em ciências cardiovascular com base em pilares de excelência das ciências clínicas e básicas, integrada na estratégia alargada da investigação do Serviço e nos objectivos do serviço nacional de saúde.
A dedicação e empenho dos investigadores do Serviços de Cardiologia, e da sua rede de parceiros, associado a uma sólida base estratégica e estrutural, contribuirá para o posicionamento e expansão do papel de Portugal nas ciências cardiovasculares, com benefícios directos para a comunidade científica e utentes.
Prof. Fausto J. Pinto