Espaço Aberto
Cinema e Medicina, rubrica assinada pelo Dr. António Pais Lacerda
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A News@FMUL agradece a sua preciosa colaboração no âmbito da cultura médica e da Sétima Arte.
Maria-rapaz” (“Tomboy”) de Céline Sciamma (2011)
Lisa: (…) Are you new around here?
Laure: Yeah, we got in yesterday.
Lisa: I'm Lisa. I live here. [pause]
You're shy.
Laure: No, I'm not.
Lisa: Won't you tell me your name?
Laure: Mikael, my name is Mikael.
Zoé Héran, surpreendente na sua representação, (pémio de “Melhor atriz” no Buenos Aires International Festival of Independent Cinema, 2012) é Laure, menina de cabelos curtos e roupas largas, que tem dez anos e vive com a irmã mais nova, Jeanne (Malonn Lévana) que adora bonecas e andar de tutu de ballet, o seu papá (Mathieu Demy) envolto nas preocupações do trabalho, e a mamã grávida de novo (Sophie Cattani). Quando, num verão (inesquecível), conhece Lisa (Jeanne Disson) e os novos meninos do prédio para onde a família se mudou, apresenta-se como Mikael, o menino que “sente ser”, que “quer ser perante todos” e si própria(o), que “é mesmo”!. Quando nós, expectadores, percebemos (só ao fim de um quarto de hora de filme), a verdadeira identidade sexual biológica de Laure, testemunhamos as emoções e a perturbação de se querer viver arriscadamente como que “infiltrado” num “outro” mundo “de modos de ser masculino” sem se revelarem os pormenores mais íntimos de um corpo nascido “erradamente feminino”. O processo de consciencialização está em curso: a rejeição da feminilidade e a opção pela masculinidade.
Céline Sciamma, jovem cineasta francesa formal e minimalista, escreve e realiza um filme delicado e perturbador que trata questões de sexualidade infantil e de definição da identidade num universo em que aparentemente o fenótipo obriga ao comportamento. Mas ela não quer explicar – quer tão só lembrar levemente a sua própria infância, e em particular o relacionamento com a sua irmã; o resto são apenas sentimentos. Na altura da sua infância, diz ela, não havia grande espaço para “rapazes falhados” porque “não havia a moda dos cabelos curtos nas raparigas”. A designação inglesa de Tomboy foi cunhada no séc. XVI com um sentido depreciativo das raparigas que agiam rudemente como “Tom”s, nome masculino comum na época.
Zoé Héran apareceu logo no primeiro dia do casting, e foi imediatamente a primeira escolha – com atitudes perfeitas e amando o futebol. Depois a escolha das outras crianças foi simples: os verdadeiros amigos dela da vida real, que com ela jogavam à bola.
Filmado em apenas 20 dias de Agosto de 2010, o filme ganhou os prémios de melhor filme nos Festivais Internacionais Gays & Lésbicos de Torino, Philadelphia (Prémio do Júri) e de San Francisco (Prémio do Público) e o Teddy Jury Award no Berlin International Film Festival, em 2011, pela sua marca peculiar de veracidade e simplicidade dos momentos de inocência e de companheirismo, conseguindo transportar à superfície da mente tanto do tudo que é percebido como “errado” obrigatoriamente “a corrigir”, sem condenações ou juízos de valor.
“Tomboy” chama a atenção para uma realidade: o sexo biológico não é escolhido pelo próprio: é produto genético, e cada um irá construindo a sua identidade sexual entre a estrutura biológica e a evolução psicológica, sofrendo múltiplas influências sociais e comportamentais, a modulação educacional, a imitação dos nossos “role-models”, enfim toda a envolvência que rodeia o nosso desenvolvimento somato-psíquico. Este filme trata, pois, de uma situação de “disforia do género”, situação sempre muito dramática para o indivíduo que sente recair sobre si mesmo a forte penalização social, escolar ou mesmo laboral. A problemática pessoal caracteriza-se pela distinção clara entre o género que é sentido, expresso e experienciado pelo próprio, e o género “natal” em que seria classificado pelos outros (durante um período de pelo menos 6 meses). Nas crianças deve existir uma verbalizado desse desejo de se “pertencer ao outro género”. A substituição recente da terminologia utilizada para estas situações (referidas anteriormente como “Perturbação da Identidade de Género”) para apenas “Disforia de Género” veio retirar o estigma patológico de “perturbação” psiquiátrica, ficando claramente à parte das disfunções sexuais e das parafilias.
“Tomboy” foi um dos filmes escolhidos para ser visualizado e comentado por alguns alunos do 3º ciclo das escolas francesas no quadro do programa conjunto dos Ministérios da Educação Nacional e da Cultura para sensibilizar as crianças para a 7ª arte. Na sequência deste filme seriam abordadas as temáticas relacionadas com o género, devendo depois os alunos realizar um pequeno trabalho sobre o assunto. Todavia esta programação levantou vasta contestação no final de 2013 (um ano depois do filme estar a ser comentado), dando mesmo origem à implementação de uma petição pugnando pela “concepção cristã da pessoa” para interromper a visualização deste filme. Depois de larga polémica, não está prevista, porém, a retirada do filme do programa “École et Cinéma” das escolas francesas.
Na realidade este é um filme visualmente belo que olha o mundo pelos olhos das crianças (a leve câmara Canon 7D filma de ângulos baixos) e que nos faz sofrer a dor da “diferença” de se “não estar bem na nossa pele” – incongruência que não deveria ter de ser notada, contrariada, sequer censurada.
Aprende-se dolorosamente nele a vivenciar os riscos e a assumir a realidade num mundo cruel, onde se têm de estabelecer compromissos, mas onde também existe aceitação e amor.
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*Assistente das Disciplinas de Módulo III.I “Medicina Clínica - O Médico, a Pessoa e o Doente” e de Medicina Intensiva da FMUL.
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