Reportagem / Perfil
Entrevista ao Prof. Doutor Miguel Castanho, Director do Instituto de Bioquímica
A Newsletter da FMUL entrevistou o Director do Instituto de Bioquímica da Faculdade para conhecer melhor esta unidade e os projectos que desenvolve.
Newsletter: O que nos pode dizer sobre a génese do instituto?
Prof. Miguel Castanho: Muitas pessoas não têm esta consciência, mas a Bioquímica em Portugal nasceu aqui. Historicamente, há duas grandes fontes para a Bioquímica em Portugal. Uma delas é a Química Orgânica. O berço da Química Orgânica na Europa foi a Alemanha, tendo entrado em Portugal através de um investigador alemão, Kurt Jacobson. A outra é a Química Fisiológica, que está mais ligada à Medicina. Este segundo ramo nasceu na Faculdade de Medicina de Lisboa. O Instituto tem esse legado histórico: ser um dos berços da Bioquímica em Portugal. A pessoa de referência neste nascimento da Bioquímica foi Mark Athias. Ele é mais conhecido pelos seus estudos histológicos, mas também começou a tentar fazer o raciocínio das reacções químicas e dos fenómenos químicos dentro das células. Foi Mark Athias quem fez muito do trabalho embrionário da Bioquímica em Portugal e nós somos herdeiros desse legado.
O Instituto passou por várias fases. Começou por ser chamado de Química Fisiológica. Aliás, o instituto de Bioquímica era tratado como simplesmente “Química” por muita gente, num sentido abreviado. Posteriormente, passou por Instituto de Biopatologia Química e agora é denominado Instituto de Bioquímica, o nome consagrado na maior parte das faculdades de medicina do mundo.
O que nos pode dizer relativamente às actividades que são desenvolvidas no Instituto relativamente à formação, ao ensino, à investigação e à relação com a comunidade?
Tentamos ter uma relação estreita entre o ensino e a investigação e fazer ambos com qualidade. É isso que se espera de uma universidade. A Universidade de Lisboa é aquilo que se chama uma research oriented university. Temos acolhido muitos alunos, por exemplo, em projectos de investigação, quer na cadeira de Estágio de Investigação Científica, quer em projectos GAPIC. Chamamos o máximo possível de alunos para a investigação. Também fazemos o inverso: garantimos que todos os docentes do Instituto de Bioquímica são muito activos em investigação. Só temos professores directamente envolvidos em investigação, com excepção dos docentes convidados, que nem todos estes fazem investigação, mas todos são clínicos. Assim, garantimos que os alunos no ensino da Bioquímica são expostos à investigação, por via dos professores que são investigadores, ou à clínica, por via dos docentes que são clínicos. Assim, seguimos as directivas mais avançadas que existem para o ensino da Bioquímica dentro da Medicina. Eu, inclusive, fiz parte de uma comissão, a Comissão da Educação da FEBS (Federation of European Biochemical Societies) onde estas questões são muito debatidas e onde vamos buscar o melhor benchmarking para aplicar aqui.
Os docentes são chamados a participar em projectos de investigação, ou tentam já que venham investigadores para a FMUL exercer a função de docência? São investigadores que são chamados a ensinar, ou docentes que são chamados a participar em investigação?
Hoje em dia, e uma vez que o número de lugares é muito restrito, todas as pessoas que entram têm já um passado de investigação e têm créditos estabelecidos na área. Já não se contratam “jovens promessas”, são pessoas minimamente consagradas e experientes.
Quanto à missão pedagógica, e no que se refere à formação daqueles que serão os nossos futuros médicos, quais são as metas que estabelece na formação?
Nós temos intervenção na bioquímica, no Mestrado Integrado em Medicina, na licenciatura em Ciências da Saúde, no Mestrado em Engenharia Biomédica, que temos em parceria com o IST, e também no Mestrado em Tecnologias Biomédicas, entre outros. De qualquer maneira, é no MIM que temos um foco muito particular. Aí, a meta principal é dotar os alunos de raciocínio à escala molecular. Abandonámos aquilo que é uma visão clássica e redutora da Bioquímica, muito focada na descrição dos metabolismos, para entrar numa Bioquímica mais moderna, focada no raciocínio das moléculas e na sua interacção. Isto quer dizer que, em termos de metabolismo, não colocamos o foco na descrição do mesmo, mas sim na sua regulação, porque é nela que estão as bases moleculares da homeostasia e da sua perturbação. Também é aí que está o foco, por exemplo, de toda a farmacologia e de toda a farmacoterapia. Saber como actuam os fármacos, por exemplo, exige saber muito bem o que são as moléculas determinantes do metabolismo, como é que funcionam e como é que interagem entre si. É um raciocínio que se adquire pensando nas moléculas, na sua estrutura, na sua função e nos determinantes básicos da sua interacção.
Isto é a Bioquímica moderna e é o que tentamos fazer, porque dota os alunos de instrumentos para que depois consigam raciocinar em diversos campos clínicos, quer estejam a trabalhar nas terapias ou stress fisológico, por exemplo, quer venham a fazer investigação, ou até mesmo algo diferente. Os médicos, tal como outros profissionais altamente qualificados hoje em dia, têm de estar dotados de uma lógica de raciocínio que os permita serem bons em tudo aquilo que fazem. É isso que nós tentamos fazer no ensino da Bioquímica: dotar os alunos dessa maleabilidade de pensamento e dessa capacidade de adaptação. Abandonámos por completo aquele raciocínio meramente descritivo, em que o aluno tinha de saber a glicólise do princípio ao fim, com o nome de todas as enzimas, mas não tinha a capacidade de elaborar raciocínios sobre a dinâmica do metabolismo.
Esta é uma das razões pelas quais tentamos trazer a investigação para o ensino. Porque há coisas que só se aprendem fazendo, que não se ensinam falando. O cultivo da curiosidade, o cultivo do espírito crítico não se ensina numa sala de aula. Não há aulas sobre espírito crítico, é uma coisa que se exercita. A Bioquímica pode ajudar, porque é uma ciência laboratorial - chama os alunos ao laboratório, expõe-os a projectos de investigação. A Bioquímica mantém um ensino que não é só teórico e teórico-prático, é laboratorial. Nós temos estas três frentes de ensino, para uma formação mais completa dos nossos alunos, pois eles passam pela bancada, manipulam, manuseiam.
Muitas Faculdades de Medicina abandonaram esta via porque o ensino prático (e o laboratorial em particular) é dispendioso. Uma das formas mais fáceis, embora não muito razoável, de economizar nos custos é acabar com o ensino laboratorial. Felizmente, aqui na FMUL temos mantido a ordem de prioridades bem presente. Temos feito cortes noutras despesas que não vemos como essenciais, sendo a qualidade do ensino encarada como um dos bens vitais. É o que faz mais sentido pois, por um lado, é essa qualidade que nos garante o futuro. Não podemos resolver problemas do presente hipotecando o futuro, isto é, abdicando daquilo que é importante a longo prazo. Felizmente, temos tido a lucidez de manter este investimento.
Esta estratégia não é válida apenas para a Bioquímica, mas igualmente para outras áreas. Temos mantido o ensino prático em variadíssimas áreas, não só as áreas mais microscópicas mas também as macroscópicas. Dou como exemplo o teatro anatómico, que foi um investimento avultado.
Temos tido inclusivamente o retorno, por parte dos estudantes estrangeiros que escolhem a nossa Faculdade para programas como o ERASMUS, referindo que uma das razões principais da escolha da FMUL resulta precisamente da informação sobre a prevalência desse investimento no ensino prático. Tinha noção deste facto?
Não sabia, mas fico muito satisfeito por tal acontecer. Esta filosofia de investir nas práticas, o que em Bioquímica significa laboratório e noutras áreas disciplinares poderá significar outras realidades, incluindo a exposição ao ambiente dos centros de saúde logo desde muito cedo, tem sido, de facto, um elemento distintivo da nossa Faculdade, pela positiva.
Espero que esta tendência tenha continuidade e nos crie um diferencial efectivo em relação a outras instituições, a outras ofertas formativas, porque vai ser importante no futuro ter essa diferenciação pela positiva.
Cada vez mais os alunos candidatos a um curso superior começam a discriminar entre as várias ofertas. Cada vez se nota mais que só algumas Instituições têm prestigio e conseguem inspirar confiança nos alunos e nas suas famílias. Todos os inquéritos já feitos apontam para que os critérios de decisão da universidade, e do curso que se escolhe, passam, por um lado, por uma decisão partilhada e influenciada pela família, e por outro, pelos antigos professores. Portanto, toda a credibilidade que nós conseguirmos angariar junto de famílias e de professores é extremamente importante para conseguirmos captar os melhores alunos em cada ano. Não queremos apenas ter alunos, queremos ter os melhores alunos.
Hoje há mestres em Medicina com receio do desemprego…
Eu acho que há uma certa dramatização exagerada em torno desse assunto; há uma mudança, o contexto está em evolução rápida, mas não é caso para uma dramatização tão grande. A questão da diversidade de carreiras à volta da medicina vai colocar-se, porque o Mundo mudou e as pessoas já não vêem a sua vida como uma linha contínua que vai de A a B. Há uma série de ramificações intermédias e cada um vai fazendo o seu caminho; é assim para tudo, para a carreira, para a vida pessoal, familiar, etc. Existe esta mudança de contexto na empregabilidade nogeral. Mesmo assim, a área da Medicina está melhor que a generalidade das carreiras.
O que nos pode dizer sobre o contributo do Instituto de Bioquímica ao nível das parcerias e das relações que esta unidade mantém com os outros organismos que formam o Centro Académico de Medicina?
A nossa relação com o Instituto de Medicina Molecular é de sobreposição quase total. Todos os investigadores do Instituto de Bioquímica são investigadores do IMM.
Os docentes/investigadores do Instituto de Bioquímica repartem-se em quatro unidades de investigação que estão ligadas ao IMM. Há um empenho e uma dedicação total de recursos. Em termos de colaboração com o Hospital de Santa Maria, temos feito pontes muito significativas entre o que é tipicamente o campo da Bioquímica com diversas áreas clínicas. Temos feito um grande investimento em ligação a investigação clínica do Hospital de Santa Maria e outros hospitais.
E a ligação com os doentes…
A ligação aos clínicos do HSM é, automaticamente, uma ligação aos doentes. É para os doentes e pelos doentes que se faz a investigação. Se não for para eles, quase não vale a pena.
Temos a preocupação de que a nossa investigação possa ser aproveitada em benefício das pessoas. Isto envolve forçosamente a indústria. Temos sempre a preocupação de transformar ideias em novos produtos que possam ser aproveitados pela indústria e que possam vir a gerar, por sua vez, outros produtos disponíveis às pessoas, aos doentes. Digo produtos no sentido lato, não estritamente material. Por exemplo, novos procedimentos terapêuticos também são considerados um produto. A ideia final é sempre o bem-estar dos doentes, a saúde, a melhoria da qualidade de vida. Falamos dos doentes e da sua família, porque o impacto da doença não se restringe apenas ao doente.
Fomos coordenadores de um projecto europeu, que acabou há pouco tempo, para desenvolvimento de um analgésico e que envolveu precisamente a universidade e a indústria. Todo o projecto foi concebido para gerar patentes e poder ter, posteriormente, um desenvolvimento no seio da indústria. O objectivo foi criar novos analgésicos, o que concretizámos, Tudo foi feito logo desde o princípio com a colaboração entre a universidade e as empresas. O projecto foi orientado para resultar em novos produtos, neste caso novos analgésicos. Isto é diferente de um grupo académico descobrir algo e publicar depois, podendo ser mais tarde descoberto pela indústria ou não e correndo o risco de já não pode ser patenteado. Há que ter a preocupação, desde o início, de juntar os parceiros certos e fazer tudo certo do princípio ao fim. Patenteia-se o que houver a patentear e, posteriormente, publica-se. Isto exige uma parceria de princípio, um planeamento e uma intenção de fazer as coisas desta maneira. Por isso é que é importante ter bons projectos, ter bons parceiros logo de início, cultivar pontes com a clínica, com os hospitais e a indústria, e conseguir agir organizadamente. É o que temos tentado fazer aqui no Instituto de Bioquímica. Temos cada vez mais projectos conjuntos com a indústria e com parceiros clínicos. Fazer avançar tudo em bloco dá muito trabalho, mas é a maneira certa de se fazer, é esse caminho que temos de trilhar.
Quando fala de parceiros, está a referir-se a instituições de ensino ou laboratórios, empresas? Todo o tipo de entidades?
Refiro-me a todo o tipo de instituições onde se faça investigação ou inovação de qualidade e onde tenham aquilo que nós precisamos. Nestes projectos integrados é preciso juntar peças, desde o princípio. Por exemplo, no Instituto não temos valência de química orgânica de síntese. Não construímos moléculas. Por isso, associamo-nos a laboratórios em Espanha que sintetizam moléculas. Nós somos bioquímicos e trabalhamos em várias áreas relacionadas com vírus, mas não temos capacidade de cultivar vírus, manipular vírus. Então, associamo-nos com pessoas que têm essa capacidade, quer seja em Portugal ou, por exemplo, no Brasil. Existem programas internacionais de mobilidade e de cooperação. Nós coordenamos um. O Professor Nuno Santos coordena um projecto de cooperação intercontinental. O desafio é garantir mecanismos de financiamento e sustentabilidade duradouros da actividade de investigação. É uma luta permanente.
Newsletter: O que nos pode dizer sobre a génese do instituto?
Prof. Miguel Castanho: Muitas pessoas não têm esta consciência, mas a Bioquímica em Portugal nasceu aqui. Historicamente, há duas grandes fontes para a Bioquímica em Portugal. Uma delas é a Química Orgânica. O berço da Química Orgânica na Europa foi a Alemanha, tendo entrado em Portugal através de um investigador alemão, Kurt Jacobson. A outra é a Química Fisiológica, que está mais ligada à Medicina. Este segundo ramo nasceu na Faculdade de Medicina de Lisboa. O Instituto tem esse legado histórico: ser um dos berços da Bioquímica em Portugal. A pessoa de referência neste nascimento da Bioquímica foi Mark Athias. Ele é mais conhecido pelos seus estudos histológicos, mas também começou a tentar fazer o raciocínio das reacções químicas e dos fenómenos químicos dentro das células. Foi Mark Athias quem fez muito do trabalho embrionário da Bioquímica em Portugal e nós somos herdeiros desse legado.
O Instituto passou por várias fases. Começou por ser chamado de Química Fisiológica. Aliás, o instituto de Bioquímica era tratado como simplesmente “Química” por muita gente, num sentido abreviado. Posteriormente, passou por Instituto de Biopatologia Química e agora é denominado Instituto de Bioquímica, o nome consagrado na maior parte das faculdades de medicina do mundo.
O que nos pode dizer relativamente às actividades que são desenvolvidas no Instituto relativamente à formação, ao ensino, à investigação e à relação com a comunidade?
Tentamos ter uma relação estreita entre o ensino e a investigação e fazer ambos com qualidade. É isso que se espera de uma universidade. A Universidade de Lisboa é aquilo que se chama uma research oriented university. Temos acolhido muitos alunos, por exemplo, em projectos de investigação, quer na cadeira de Estágio de Investigação Científica, quer em projectos GAPIC. Chamamos o máximo possível de alunos para a investigação. Também fazemos o inverso: garantimos que todos os docentes do Instituto de Bioquímica são muito activos em investigação. Só temos professores directamente envolvidos em investigação, com excepção dos docentes convidados, que nem todos estes fazem investigação, mas todos são clínicos. Assim, garantimos que os alunos no ensino da Bioquímica são expostos à investigação, por via dos professores que são investigadores, ou à clínica, por via dos docentes que são clínicos. Assim, seguimos as directivas mais avançadas que existem para o ensino da Bioquímica dentro da Medicina. Eu, inclusive, fiz parte de uma comissão, a Comissão da Educação da FEBS (Federation of European Biochemical Societies) onde estas questões são muito debatidas e onde vamos buscar o melhor benchmarking para aplicar aqui.
Os docentes são chamados a participar em projectos de investigação, ou tentam já que venham investigadores para a FMUL exercer a função de docência? São investigadores que são chamados a ensinar, ou docentes que são chamados a participar em investigação?
Hoje em dia, e uma vez que o número de lugares é muito restrito, todas as pessoas que entram têm já um passado de investigação e têm créditos estabelecidos na área. Já não se contratam “jovens promessas”, são pessoas minimamente consagradas e experientes.
Quanto à missão pedagógica, e no que se refere à formação daqueles que serão os nossos futuros médicos, quais são as metas que estabelece na formação?
Nós temos intervenção na bioquímica, no Mestrado Integrado em Medicina, na licenciatura em Ciências da Saúde, no Mestrado em Engenharia Biomédica, que temos em parceria com o IST, e também no Mestrado em Tecnologias Biomédicas, entre outros. De qualquer maneira, é no MIM que temos um foco muito particular. Aí, a meta principal é dotar os alunos de raciocínio à escala molecular. Abandonámos aquilo que é uma visão clássica e redutora da Bioquímica, muito focada na descrição dos metabolismos, para entrar numa Bioquímica mais moderna, focada no raciocínio das moléculas e na sua interacção. Isto quer dizer que, em termos de metabolismo, não colocamos o foco na descrição do mesmo, mas sim na sua regulação, porque é nela que estão as bases moleculares da homeostasia e da sua perturbação. Também é aí que está o foco, por exemplo, de toda a farmacologia e de toda a farmacoterapia. Saber como actuam os fármacos, por exemplo, exige saber muito bem o que são as moléculas determinantes do metabolismo, como é que funcionam e como é que interagem entre si. É um raciocínio que se adquire pensando nas moléculas, na sua estrutura, na sua função e nos determinantes básicos da sua interacção.
Isto é a Bioquímica moderna e é o que tentamos fazer, porque dota os alunos de instrumentos para que depois consigam raciocinar em diversos campos clínicos, quer estejam a trabalhar nas terapias ou stress fisológico, por exemplo, quer venham a fazer investigação, ou até mesmo algo diferente. Os médicos, tal como outros profissionais altamente qualificados hoje em dia, têm de estar dotados de uma lógica de raciocínio que os permita serem bons em tudo aquilo que fazem. É isso que nós tentamos fazer no ensino da Bioquímica: dotar os alunos dessa maleabilidade de pensamento e dessa capacidade de adaptação. Abandonámos por completo aquele raciocínio meramente descritivo, em que o aluno tinha de saber a glicólise do princípio ao fim, com o nome de todas as enzimas, mas não tinha a capacidade de elaborar raciocínios sobre a dinâmica do metabolismo.
Esta é uma das razões pelas quais tentamos trazer a investigação para o ensino. Porque há coisas que só se aprendem fazendo, que não se ensinam falando. O cultivo da curiosidade, o cultivo do espírito crítico não se ensina numa sala de aula. Não há aulas sobre espírito crítico, é uma coisa que se exercita. A Bioquímica pode ajudar, porque é uma ciência laboratorial - chama os alunos ao laboratório, expõe-os a projectos de investigação. A Bioquímica mantém um ensino que não é só teórico e teórico-prático, é laboratorial. Nós temos estas três frentes de ensino, para uma formação mais completa dos nossos alunos, pois eles passam pela bancada, manipulam, manuseiam.
Muitas Faculdades de Medicina abandonaram esta via porque o ensino prático (e o laboratorial em particular) é dispendioso. Uma das formas mais fáceis, embora não muito razoável, de economizar nos custos é acabar com o ensino laboratorial. Felizmente, aqui na FMUL temos mantido a ordem de prioridades bem presente. Temos feito cortes noutras despesas que não vemos como essenciais, sendo a qualidade do ensino encarada como um dos bens vitais. É o que faz mais sentido pois, por um lado, é essa qualidade que nos garante o futuro. Não podemos resolver problemas do presente hipotecando o futuro, isto é, abdicando daquilo que é importante a longo prazo. Felizmente, temos tido a lucidez de manter este investimento.
Esta estratégia não é válida apenas para a Bioquímica, mas igualmente para outras áreas. Temos mantido o ensino prático em variadíssimas áreas, não só as áreas mais microscópicas mas também as macroscópicas. Dou como exemplo o teatro anatómico, que foi um investimento avultado.
Temos tido inclusivamente o retorno, por parte dos estudantes estrangeiros que escolhem a nossa Faculdade para programas como o ERASMUS, referindo que uma das razões principais da escolha da FMUL resulta precisamente da informação sobre a prevalência desse investimento no ensino prático. Tinha noção deste facto?
Não sabia, mas fico muito satisfeito por tal acontecer. Esta filosofia de investir nas práticas, o que em Bioquímica significa laboratório e noutras áreas disciplinares poderá significar outras realidades, incluindo a exposição ao ambiente dos centros de saúde logo desde muito cedo, tem sido, de facto, um elemento distintivo da nossa Faculdade, pela positiva.
Espero que esta tendência tenha continuidade e nos crie um diferencial efectivo em relação a outras instituições, a outras ofertas formativas, porque vai ser importante no futuro ter essa diferenciação pela positiva.
Cada vez mais os alunos candidatos a um curso superior começam a discriminar entre as várias ofertas. Cada vez se nota mais que só algumas Instituições têm prestigio e conseguem inspirar confiança nos alunos e nas suas famílias. Todos os inquéritos já feitos apontam para que os critérios de decisão da universidade, e do curso que se escolhe, passam, por um lado, por uma decisão partilhada e influenciada pela família, e por outro, pelos antigos professores. Portanto, toda a credibilidade que nós conseguirmos angariar junto de famílias e de professores é extremamente importante para conseguirmos captar os melhores alunos em cada ano. Não queremos apenas ter alunos, queremos ter os melhores alunos.
Hoje há mestres em Medicina com receio do desemprego…
Eu acho que há uma certa dramatização exagerada em torno desse assunto; há uma mudança, o contexto está em evolução rápida, mas não é caso para uma dramatização tão grande. A questão da diversidade de carreiras à volta da medicina vai colocar-se, porque o Mundo mudou e as pessoas já não vêem a sua vida como uma linha contínua que vai de A a B. Há uma série de ramificações intermédias e cada um vai fazendo o seu caminho; é assim para tudo, para a carreira, para a vida pessoal, familiar, etc. Existe esta mudança de contexto na empregabilidade nogeral. Mesmo assim, a área da Medicina está melhor que a generalidade das carreiras.
O que nos pode dizer sobre o contributo do Instituto de Bioquímica ao nível das parcerias e das relações que esta unidade mantém com os outros organismos que formam o Centro Académico de Medicina?
A nossa relação com o Instituto de Medicina Molecular é de sobreposição quase total. Todos os investigadores do Instituto de Bioquímica são investigadores do IMM.
Os docentes/investigadores do Instituto de Bioquímica repartem-se em quatro unidades de investigação que estão ligadas ao IMM. Há um empenho e uma dedicação total de recursos. Em termos de colaboração com o Hospital de Santa Maria, temos feito pontes muito significativas entre o que é tipicamente o campo da Bioquímica com diversas áreas clínicas. Temos feito um grande investimento em ligação a investigação clínica do Hospital de Santa Maria e outros hospitais.
E a ligação com os doentes…
A ligação aos clínicos do HSM é, automaticamente, uma ligação aos doentes. É para os doentes e pelos doentes que se faz a investigação. Se não for para eles, quase não vale a pena.
Temos a preocupação de que a nossa investigação possa ser aproveitada em benefício das pessoas. Isto envolve forçosamente a indústria. Temos sempre a preocupação de transformar ideias em novos produtos que possam ser aproveitados pela indústria e que possam vir a gerar, por sua vez, outros produtos disponíveis às pessoas, aos doentes. Digo produtos no sentido lato, não estritamente material. Por exemplo, novos procedimentos terapêuticos também são considerados um produto. A ideia final é sempre o bem-estar dos doentes, a saúde, a melhoria da qualidade de vida. Falamos dos doentes e da sua família, porque o impacto da doença não se restringe apenas ao doente.
Fomos coordenadores de um projecto europeu, que acabou há pouco tempo, para desenvolvimento de um analgésico e que envolveu precisamente a universidade e a indústria. Todo o projecto foi concebido para gerar patentes e poder ter, posteriormente, um desenvolvimento no seio da indústria. O objectivo foi criar novos analgésicos, o que concretizámos, Tudo foi feito logo desde o princípio com a colaboração entre a universidade e as empresas. O projecto foi orientado para resultar em novos produtos, neste caso novos analgésicos. Isto é diferente de um grupo académico descobrir algo e publicar depois, podendo ser mais tarde descoberto pela indústria ou não e correndo o risco de já não pode ser patenteado. Há que ter a preocupação, desde o início, de juntar os parceiros certos e fazer tudo certo do princípio ao fim. Patenteia-se o que houver a patentear e, posteriormente, publica-se. Isto exige uma parceria de princípio, um planeamento e uma intenção de fazer as coisas desta maneira. Por isso é que é importante ter bons projectos, ter bons parceiros logo de início, cultivar pontes com a clínica, com os hospitais e a indústria, e conseguir agir organizadamente. É o que temos tentado fazer aqui no Instituto de Bioquímica. Temos cada vez mais projectos conjuntos com a indústria e com parceiros clínicos. Fazer avançar tudo em bloco dá muito trabalho, mas é a maneira certa de se fazer, é esse caminho que temos de trilhar.
Quando fala de parceiros, está a referir-se a instituições de ensino ou laboratórios, empresas? Todo o tipo de entidades?
Refiro-me a todo o tipo de instituições onde se faça investigação ou inovação de qualidade e onde tenham aquilo que nós precisamos. Nestes projectos integrados é preciso juntar peças, desde o princípio. Por exemplo, no Instituto não temos valência de química orgânica de síntese. Não construímos moléculas. Por isso, associamo-nos a laboratórios em Espanha que sintetizam moléculas. Nós somos bioquímicos e trabalhamos em várias áreas relacionadas com vírus, mas não temos capacidade de cultivar vírus, manipular vírus. Então, associamo-nos com pessoas que têm essa capacidade, quer seja em Portugal ou, por exemplo, no Brasil. Existem programas internacionais de mobilidade e de cooperação. Nós coordenamos um. O Professor Nuno Santos coordena um projecto de cooperação intercontinental. O desafio é garantir mecanismos de financiamento e sustentabilidade duradouros da actividade de investigação. É uma luta permanente.