Espaço Aberto
Cinema e Medicina, rubrica assinada pelo Dr. António Pais Lacerda
A News@FMUL convidou o Dr. António Pais de Lacerda*, como “perito” em filmes relacionados com Medicina, para contribuir com algumas sugestões cinematográficas aos seus leitores. Para além de ter sido o fundador e Presidente do MedCine Film Festival (Cascais, 2009), este Docente da FMUL elaborou e tem mantido atualizada uma listagem deste tipo de filmes que é fornecida aos alunos no Módulo III-I, logo no 1º ano do Curso de Mestrado Integrado em Medicina.
A News@FMUL agradece, pois, desde já, a sua preciosa colaboração, no âmbito da cultura médica e da 7ª Arte
Efeitos Secundários, de Steven Soderbergh
Emily Taylor: “What do you doctors call faking? Malingering? Such a funny word. Girls learn to fake things at a very early age - probably around the same time that boys are learning to lie.”
Um dia, em conversa com estudantes de Cinema, Steven Soderbergh disse que, para além das matérias próprias que eles tivessem que aprender, era fundamental entenderem os seus comportamentos como pessoas. Na realidade, para a maior parte de nós, as nossas vidas são sobre “o contar de histórias”. Por isso, perguntava-lhes, “Quais são as histórias que querem que se conte sobre vocês?”
Que histórias quer Soderbergh que se conte sobre ele? Que conta ele de nós outros quando nos transporta para os seus filmes?
Conhecido logo aos 26 anos ao vencer a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1989 com “Sexo, Mentiras e Vídeo” (escrito em 8 dias apenas), foi com “Traffic – Ninguém sai ileso” (2000) que Steven Soderbergh ganhou a notoriedade merecida ao receber o óscar da Academia Americana como “Melhor Realizador” (com nomeação para 2 filmes no mesmo ano!). Durante a sua carreira como cineasta prolífico (que diz ter interrompido sabaticamente em 2013) manteve uma produção constante entre filmes “independentes” (“Kafka” de 1993, “Bubble” em 2006) e grandes sucessos de bilheteira (“Erin Brockovich”, de 2000, a saga “Ocean”, de 2001/04/07, “Contagion”, de 2011 ou ainda “Behind the Candelabra” de 2013). Todos os seus filmes patenteiam uma atenção invulgar sobre o universo da mente humana no mundo da realidade contemporânea e os seus factores condicionantes de (des)equilíbrio.
“Efeitos secundários/”Side effects” (2013) levanta igualmente (nos primeiros 35 minutos) inúmeras questões sobre a mente (doente?) e as suas diversas reações circunstanciais mais ou menos elaboradas, revelando também a problemática das relações entre a indústria farmacêutica e a classe médica, a ética nas relações médico-doente (e suas responsabilidades), e a necessidade social/individual “obsessiva” de medicamentação na doença mental, em particular na depressão (...e na solidão).
O guião segue depois a estrutura de “thriller”, num filme (que se poderia referir como um revisitar do “sexo e mentiras” dos anos 80) com personagens hitchcockianas movimentando-se ao estilo “Brian De Palma”, sendo impossível descortinar a linha entre o verdadeiro e o falso, num argumento inteligente em que o espectador se sentirá mais próximo do lado “mais simpático” ou “credível” (?) mas nem por isso mais verdadeiro. De facto, Soderbergh sabe transmitir-nos subtilmente através das imagens, luzes e cores, as emoções requeridas para que nos identifiquemos, tomando posição no contexto dos acontecimentos, e fazendo-nos entrar numa espécie de estado hipnagógico para o qual muito contribui o ritmo lento (onírico?) das cenas iniciais. Se pensamos poder prever o evoluir da trama, esquecemo-nos da imprevisibilidade das reações humanas, e Soderbergh demonstra-o ao limite.
O contexto é linear: um psiquiatra com clínica hospitalar e privada, Jonathan Banks (Jude Law), fica a tratar Emily Taylor (Rooney Mara), uma doente que ele observa no hospital quando ela é internada por tentativa de suicídio numa altura em que o seu marido Martin (Channing Tatum) regressara a casa após um período de reclusão. Depois de algumas sessões de terapia, e discutido o caso com a anterior psiquiatra da doente, Victoria Siebert (Catherine Zeta-Jones), Emily inicia uma nova terapêutica com um fármaco antidepressivo (Ablixa) recentemente introduzido no mercado. A medicação administrada terá, contudo, efeitos secundários dramáticos que conduzirão eventualmente à concretização de um crime do qual não tem qualquer memória, não podendo ser responsabilizável...
O conjunto de enganos (em diálogos muito reais) só se revelará tardiamente – curiosamente através do espírito de perspicácia clínica dedutiva que tanto nos é ensinado durante a formação médica.
Dos grandes filmes que realizou já no século XXI, depois de “Solaris” (2002), “Che” (2008) ou “Magic Mike” (2012), este “Efeitos Secundários” é, na verdade, um espantoso exercício de estilo Soderberghiano, marcando o final (espero que apenas de uma primeira parte) da carreira de um cineasta brilhante.
Quando nós, médicos, acabamos de ver este filme, percebemos que ele também provoca em nós um importante efeito secundário: o de nos fazer relembrar da nossa condição de sermos “falíveis”, porque afinal continuamos a ser humanos.
Ver trailer.
*Assistente das Disciplinas de Módulo III.I “Medicina Clínica - O Médico, a Pessoa e o Doente” e de Medicina Intensiva da FMUL.
A News@FMUL agradece, pois, desde já, a sua preciosa colaboração, no âmbito da cultura médica e da 7ª Arte
Efeitos Secundários, de Steven Soderbergh
Emily Taylor: “What do you doctors call faking? Malingering? Such a funny word. Girls learn to fake things at a very early age - probably around the same time that boys are learning to lie.”
Um dia, em conversa com estudantes de Cinema, Steven Soderbergh disse que, para além das matérias próprias que eles tivessem que aprender, era fundamental entenderem os seus comportamentos como pessoas. Na realidade, para a maior parte de nós, as nossas vidas são sobre “o contar de histórias”. Por isso, perguntava-lhes, “Quais são as histórias que querem que se conte sobre vocês?”
Que histórias quer Soderbergh que se conte sobre ele? Que conta ele de nós outros quando nos transporta para os seus filmes?
Conhecido logo aos 26 anos ao vencer a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1989 com “Sexo, Mentiras e Vídeo” (escrito em 8 dias apenas), foi com “Traffic – Ninguém sai ileso” (2000) que Steven Soderbergh ganhou a notoriedade merecida ao receber o óscar da Academia Americana como “Melhor Realizador” (com nomeação para 2 filmes no mesmo ano!). Durante a sua carreira como cineasta prolífico (que diz ter interrompido sabaticamente em 2013) manteve uma produção constante entre filmes “independentes” (“Kafka” de 1993, “Bubble” em 2006) e grandes sucessos de bilheteira (“Erin Brockovich”, de 2000, a saga “Ocean”, de 2001/04/07, “Contagion”, de 2011 ou ainda “Behind the Candelabra” de 2013). Todos os seus filmes patenteiam uma atenção invulgar sobre o universo da mente humana no mundo da realidade contemporânea e os seus factores condicionantes de (des)equilíbrio.
“Efeitos secundários/”Side effects” (2013) levanta igualmente (nos primeiros 35 minutos) inúmeras questões sobre a mente (doente?) e as suas diversas reações circunstanciais mais ou menos elaboradas, revelando também a problemática das relações entre a indústria farmacêutica e a classe médica, a ética nas relações médico-doente (e suas responsabilidades), e a necessidade social/individual “obsessiva” de medicamentação na doença mental, em particular na depressão (...e na solidão).
O guião segue depois a estrutura de “thriller”, num filme (que se poderia referir como um revisitar do “sexo e mentiras” dos anos 80) com personagens hitchcockianas movimentando-se ao estilo “Brian De Palma”, sendo impossível descortinar a linha entre o verdadeiro e o falso, num argumento inteligente em que o espectador se sentirá mais próximo do lado “mais simpático” ou “credível” (?) mas nem por isso mais verdadeiro. De facto, Soderbergh sabe transmitir-nos subtilmente através das imagens, luzes e cores, as emoções requeridas para que nos identifiquemos, tomando posição no contexto dos acontecimentos, e fazendo-nos entrar numa espécie de estado hipnagógico para o qual muito contribui o ritmo lento (onírico?) das cenas iniciais. Se pensamos poder prever o evoluir da trama, esquecemo-nos da imprevisibilidade das reações humanas, e Soderbergh demonstra-o ao limite.
O contexto é linear: um psiquiatra com clínica hospitalar e privada, Jonathan Banks (Jude Law), fica a tratar Emily Taylor (Rooney Mara), uma doente que ele observa no hospital quando ela é internada por tentativa de suicídio numa altura em que o seu marido Martin (Channing Tatum) regressara a casa após um período de reclusão. Depois de algumas sessões de terapia, e discutido o caso com a anterior psiquiatra da doente, Victoria Siebert (Catherine Zeta-Jones), Emily inicia uma nova terapêutica com um fármaco antidepressivo (Ablixa) recentemente introduzido no mercado. A medicação administrada terá, contudo, efeitos secundários dramáticos que conduzirão eventualmente à concretização de um crime do qual não tem qualquer memória, não podendo ser responsabilizável...
O conjunto de enganos (em diálogos muito reais) só se revelará tardiamente – curiosamente através do espírito de perspicácia clínica dedutiva que tanto nos é ensinado durante a formação médica.
Dos grandes filmes que realizou já no século XXI, depois de “Solaris” (2002), “Che” (2008) ou “Magic Mike” (2012), este “Efeitos Secundários” é, na verdade, um espantoso exercício de estilo Soderberghiano, marcando o final (espero que apenas de uma primeira parte) da carreira de um cineasta brilhante.
Quando nós, médicos, acabamos de ver este filme, percebemos que ele também provoca em nós um importante efeito secundário: o de nos fazer relembrar da nossa condição de sermos “falíveis”, porque afinal continuamos a ser humanos.
Ver trailer.
*Assistente das Disciplinas de Módulo III.I “Medicina Clínica - O Médico, a Pessoa e o Doente” e de Medicina Intensiva da FMUL.