Espaço Aberto
Cinema e Medicina, rubrica assinada pelo Dr. António Pais Lacerda
A News@FMUL convidou o Dr. António Pais de Lacerda*, como “perito” em filmes relacionados com Medicina, para contribuir com algumas sugestões cinematográficas aos seus leitores. Para além de ter sido o fundador e Presidente do MedCine Film Festival (Cascais, 2009), este Docente da FMUL elaborou e tem mantido atualizada uma listagem deste tipo de filmes que é fornecida aos alunos no Módulo III-I, logo no 1º ano do Curso de Mestrado Integrado em Medicina.
A News@FMUL agradece, pois, desde já, a sua preciosa colaboração, no âmbito da cultura médica e da 7ª Arte
*Assistente das Disciplinas de Módulo III.I “Medicina Clínica - O Médico, a Pessoa e o Doente” e de Medicina Intensiva da FMUL.
“E Agora? Lembra-me” de Joaquim Pinto (2013)
Há muitas coisas que não me lembro. Não sei por que as terei perdido para as profundezas de tudo o que não me seria útil ou agradável saber. Por vezes penso nesses tempos perdidos e saltam-me logo à mente muitos daqueles outros que a memória me obriga a lembrar. Parece que é por estas últimas que me encontro e me situo no meu mundo, já que me tento por elas compreender, e que me vou construindo no dia a dia, explicando-me as atitudes pelas quais caminho para um futuro possível.
Parece-me por isso, que sou quase só tijolos de experiências padronizadas de memória meticulosamente escolhidos, de entre muitos outros por diferentes vibrações dos microtúbulos neuronais que me organizam a consciência, e colocados (nem sempre harmoniosamente) numa construção em constante remodelação, com o tempo dos meus anos. É assim que a memória que tenho de mim me faz ter a consciência que condiciona a minha realidade.
Quando vi o filme de Joaquim Pinto “E agora? Lembra-me”, tendo vivenciado em simultâneo muitos dos momentos de vida de que ele se vai lembrando (construindo e desconstruindo) ao longo de vinte anos, fui revendo em simultâneo um outro (meu) edifício crescido num mesmo tempo de memórias.
É mesmo verdade, Joaquim! Foi bom recordar todos os momentos desses anos antigos que cada um foi cristalizando a seu modo. Mas o teu documentário de vida em relato de primeira pessoa, realça bem (para além de nos relembrar, também a nós, espectadores, alguns momentos da história desse tempo), o que foi viver as idades da juventude em que se sonham grandes projetos e desafios, e em que os prazeres e o amor são soberanos, numa época ensombrada por um vírus gerador de polémicas clivagens sociais, e de grande sofrimento pessoal físico e psicológico.
Percebe-se porque este documentário autobiográfico foi classificado pela Film Comment entre os melhores três filmes de 2013 (ainda) sem distribuição nos Estados Unidos, apresentados no 51st New York Film Festival, e porque é que foi logo à partida galardoado com o Prémio Especial do Júri no 66º Festival de Locarno, tendo vencido mais tarde, outros festivais e o concurso internacional da 11ª edição do DocLisboa.
Joaquim Pinto soube trazer para a tela a emoção de viver (com o vírus da imunodeficiência humana e o vírus da hepatite C), os medos e angústias e as manifestações orgânicas dos tratamentos de um modo claro, sem rodeios, misturando os conhecimentos científicos com as interpretações da memória e a construção diária do seu futuro, com Nuno Leonel, seu companheiro de sonhos e de luta.
Este relato intimista, medindo o tempo que o tempo tem, viajando nas memórias de 20 anos de doença, oferece-nos a história real de uma pessoa que é capaz de transmitir pelas palavras, imagens (e pensamentos) a realidade vivenciada por tantos outros que, na mesma época sofreram também e foram partindo. É também uma lembrança, e uma homenagem a todos eles e aos seus entes queridos.
Junta-se pois, Joaquim Pinto (1957) com “E Agora? Lembra-me”, aos escritores/cineastas Cyril Collard (1957-1993), Derek Jarman (1942-1994) e Hervé Guibert (1955-1991) que souberam também deixar-nos testemunhos vivos das suas memórias-vivências da década de entre meados dos anos 80 e 90 pautada pela ignorância, luta, medo e sofrimento.
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A News@FMUL agradece, pois, desde já, a sua preciosa colaboração, no âmbito da cultura médica e da 7ª Arte
*Assistente das Disciplinas de Módulo III.I “Medicina Clínica - O Médico, a Pessoa e o Doente” e de Medicina Intensiva da FMUL.
“E Agora? Lembra-me” de Joaquim Pinto (2013)
Há muitas coisas que não me lembro. Não sei por que as terei perdido para as profundezas de tudo o que não me seria útil ou agradável saber. Por vezes penso nesses tempos perdidos e saltam-me logo à mente muitos daqueles outros que a memória me obriga a lembrar. Parece que é por estas últimas que me encontro e me situo no meu mundo, já que me tento por elas compreender, e que me vou construindo no dia a dia, explicando-me as atitudes pelas quais caminho para um futuro possível.
Parece-me por isso, que sou quase só tijolos de experiências padronizadas de memória meticulosamente escolhidos, de entre muitos outros por diferentes vibrações dos microtúbulos neuronais que me organizam a consciência, e colocados (nem sempre harmoniosamente) numa construção em constante remodelação, com o tempo dos meus anos. É assim que a memória que tenho de mim me faz ter a consciência que condiciona a minha realidade.
Quando vi o filme de Joaquim Pinto “E agora? Lembra-me”, tendo vivenciado em simultâneo muitos dos momentos de vida de que ele se vai lembrando (construindo e desconstruindo) ao longo de vinte anos, fui revendo em simultâneo um outro (meu) edifício crescido num mesmo tempo de memórias.
É mesmo verdade, Joaquim! Foi bom recordar todos os momentos desses anos antigos que cada um foi cristalizando a seu modo. Mas o teu documentário de vida em relato de primeira pessoa, realça bem (para além de nos relembrar, também a nós, espectadores, alguns momentos da história desse tempo), o que foi viver as idades da juventude em que se sonham grandes projetos e desafios, e em que os prazeres e o amor são soberanos, numa época ensombrada por um vírus gerador de polémicas clivagens sociais, e de grande sofrimento pessoal físico e psicológico.
Percebe-se porque este documentário autobiográfico foi classificado pela Film Comment entre os melhores três filmes de 2013 (ainda) sem distribuição nos Estados Unidos, apresentados no 51st New York Film Festival, e porque é que foi logo à partida galardoado com o Prémio Especial do Júri no 66º Festival de Locarno, tendo vencido mais tarde, outros festivais e o concurso internacional da 11ª edição do DocLisboa.
Joaquim Pinto soube trazer para a tela a emoção de viver (com o vírus da imunodeficiência humana e o vírus da hepatite C), os medos e angústias e as manifestações orgânicas dos tratamentos de um modo claro, sem rodeios, misturando os conhecimentos científicos com as interpretações da memória e a construção diária do seu futuro, com Nuno Leonel, seu companheiro de sonhos e de luta.
Este relato intimista, medindo o tempo que o tempo tem, viajando nas memórias de 20 anos de doença, oferece-nos a história real de uma pessoa que é capaz de transmitir pelas palavras, imagens (e pensamentos) a realidade vivenciada por tantos outros que, na mesma época sofreram também e foram partindo. É também uma lembrança, e uma homenagem a todos eles e aos seus entes queridos.
Junta-se pois, Joaquim Pinto (1957) com “E Agora? Lembra-me”, aos escritores/cineastas Cyril Collard (1957-1993), Derek Jarman (1942-1994) e Hervé Guibert (1955-1991) que souberam também deixar-nos testemunhos vivos das suas memórias-vivências da década de entre meados dos anos 80 e 90 pautada pela ignorância, luta, medo e sofrimento.