Espaço Aberto
Cinema e Medicina, rubrica assinada pelo Dr. António Pais Lacerda
A News@FMUL convidou o Dr. António Pais de Lacerda*, como “perito” em filmes relacionados com Medicina, para contribuir com algumas sugestões cinematográficas aos seus leitores. Para além de ter sido o fundador e Presidente do MedCine Film Festival (Cascais, 2009), este Docente da FMUL elaborou e tem mantido atualizada uma listagem deste tipo de filmes que é fornecida aos alunos no Módulo III-I, logo no 1º ano do Curso de Mestrado Integrado em Medicina.
A News@FMUL agradece, pois, desde já, a sua preciosa colaboração, no âmbito da cultura médica e da 7ª Arte.
“Amour”, de Michael Haneke
Uma das funções sociais do cinema é a sua capacidade de nos revelar o mundo em que vivemos, para reconhecermos os nossos atos e vontades, as nossas deficiências e limites, as nossas ambições. Olhando para a tela, como espectadores (experientes, todavia) tornamo-nos mais conscientes da pertença a um grupo com vivências semelhantes e reagindo às mesmas emoções, para nos situarmos melhor na “natureza da sociedade” em que vivemos, e no que significa “viver” com os desafios (sempre novos) com que nos deparamos nas diferentes etapas da vida.
É a este nosso mundo tão desconcertante do dia-a-dia que nos transporta o realizador Michael Haneke, sempre metódica e friamente atento aos sentimentos e emoções que se desenrolam em volta dos grandes temas morais e filosóficos das sociedades ocidentais contemporâneas originando ressentimentos e ódios ou crueldade “gratuita” . Agora, porém, Haneke dá-nos um pouco mais. A agressividade é o tempo e o sofrimento de quem se ama. Na realidade Haneke, quer falar-nos dos seus próprios sentimentos perante a velhice e o isolamento – recriando em nós as emoções por que passamos quando alguém querido ou que está “perto” sofre e se degrada; faz-nos sentir ainda simultaneamente os sentimentos e a revolta (tantas vezes oculta por não se ter palavras) de quem perde a autonomia e tem de ser “cuidado”.
O realizador austríaco escolhe criteriosamente os actores: Nunca mais tinha visto Emmanuelle Riva depois de “Hiroshima Mon Amour” (1959) de Alain Resnais, e pensa logo de início em Jean-Louis Trintignant para quem escreve o script. Dois atores agora na década dos 80 – de facto, as suas atuações revelam a sua grandeza excecional no universo do cinema, e vão merecer os lugares cimeiros dos festivais de cinema de 2013.
Com efeito, “Amour” conquistou a Palma de Ouro da 65ª edição do Festival de Cinema de Cannes**. Comoveu a assistência, revelando na tela o esforço-sacrifício-ajuda-empenho-aprendizagem-controlo-medo-muito amor entre um casal de idosos (da classe média) que sempre se amaram. Anne (Emmanuelle Riva), não voltará ao hospital, nem irá para uma casa se repouso – fica prometido quando ela regressa a casa de um internamento para cirurgia eletiva da carótida esquerda, complicado de acidente vascular cerebral. Georges (Jean-Louis Trintignant) ficará a cuidar dela até às últimas consequências, por decisão, por promessa, por amor. O trabalho que tem para fazer, as histórias da juventude que ainda há para contar e as decisões a tomar vão evoluindo a par com a deterioração física e mental de Anne e com o resto da vida “lá fora” que praticamente deixa de existir, mesmo considerando a filha Eva (Isabelle Huppert) cuja preocupação parece “demasiado social”, racional e “afastada”.
O circuito de vida, ou melhor, a “cela de prisão” passa a ser o seu apartamento de Paris – cenário único do filme que, diria, é também “personagem principal” já que revela muito de quem são as pessoas que o habitaram nos anos de “força” das suas vidas (e que Haneke desenha retratando a casa dos seus próprios pais, onde viveu a sua infância, em Viena, facilitando-lhe pensar nos trajetos utilizados, e nos seus obstáculos). O mundo do idoso incapacitado reduz-se implacavelmente ao interior das quatro paredes da sua casa, não só por necessidade, como também por proteção - o exterior (desconhecido/ inesperado) pode mesmo constituir um perigo potencial (comentado pelo casal, ao chegar, numa noite, a casa). Dessa casa/fortaleza, onde passamos um período de cerca de um ano de vida (a roupa de Georges muda consoante a estação), só um pombo sairá em liberdade pela janela.
“Amour” vai seguramente ficar como um dos melhores filmes sobre a vivência do período de envelhecimento e de debilidade, com o aparecimento de uma doença crónica/incurável e perda progressiva da autonomia.
“A vida é tão longa”, diz Anne, ao rever as fotos da sua infância e juventude. Sentimos com ela aquela felicidade de poder viver uma longa vida com um amor que nos acompanhe e compreenda. Percebemos porque não é fácil perspectivar o sofrimento, nem pensar na morte.
Aperta-se-nos o coração.
*Assistente das Disciplinas de Módulo III.I “Medicina Clínica - O Médico, a Pessoa e o Doente” e de Medicina Intensiva da FMUL.
** “Amour” recebeu ainda (para além de vários outros prémios) os César de “Meilleur film”, “Meilleur réalisateur” (Michael Haneke), “Meilleure actrice” (Emmanuelle Riva), “Meilleur acteur” (Jean-Louis Trintignant), e “Meilleur scénario original” (França, 2013) e o Globo de Ouro de “Best Foreign Language Film” (EUA, 2013), sendo galardoado nos London Critics Circle Film Awards de 2013 com “Film of the Year”, “Actress of the Year” (Emmanuelle Riva) e “Screenwriter of the Year” (Michael Haneke).
Ver trailer.
A News@FMUL agradece, pois, desde já, a sua preciosa colaboração, no âmbito da cultura médica e da 7ª Arte.
“Amour”, de Michael Haneke
Uma das funções sociais do cinema é a sua capacidade de nos revelar o mundo em que vivemos, para reconhecermos os nossos atos e vontades, as nossas deficiências e limites, as nossas ambições. Olhando para a tela, como espectadores (experientes, todavia) tornamo-nos mais conscientes da pertença a um grupo com vivências semelhantes e reagindo às mesmas emoções, para nos situarmos melhor na “natureza da sociedade” em que vivemos, e no que significa “viver” com os desafios (sempre novos) com que nos deparamos nas diferentes etapas da vida.
É a este nosso mundo tão desconcertante do dia-a-dia que nos transporta o realizador Michael Haneke, sempre metódica e friamente atento aos sentimentos e emoções que se desenrolam em volta dos grandes temas morais e filosóficos das sociedades ocidentais contemporâneas originando ressentimentos e ódios ou crueldade “gratuita” . Agora, porém, Haneke dá-nos um pouco mais. A agressividade é o tempo e o sofrimento de quem se ama. Na realidade Haneke, quer falar-nos dos seus próprios sentimentos perante a velhice e o isolamento – recriando em nós as emoções por que passamos quando alguém querido ou que está “perto” sofre e se degrada; faz-nos sentir ainda simultaneamente os sentimentos e a revolta (tantas vezes oculta por não se ter palavras) de quem perde a autonomia e tem de ser “cuidado”.
O realizador austríaco escolhe criteriosamente os actores: Nunca mais tinha visto Emmanuelle Riva depois de “Hiroshima Mon Amour” (1959) de Alain Resnais, e pensa logo de início em Jean-Louis Trintignant para quem escreve o script. Dois atores agora na década dos 80 – de facto, as suas atuações revelam a sua grandeza excecional no universo do cinema, e vão merecer os lugares cimeiros dos festivais de cinema de 2013.
Com efeito, “Amour” conquistou a Palma de Ouro da 65ª edição do Festival de Cinema de Cannes**. Comoveu a assistência, revelando na tela o esforço-sacrifício-ajuda-empenho-aprendizagem-controlo-medo-muito amor entre um casal de idosos (da classe média) que sempre se amaram. Anne (Emmanuelle Riva), não voltará ao hospital, nem irá para uma casa se repouso – fica prometido quando ela regressa a casa de um internamento para cirurgia eletiva da carótida esquerda, complicado de acidente vascular cerebral. Georges (Jean-Louis Trintignant) ficará a cuidar dela até às últimas consequências, por decisão, por promessa, por amor. O trabalho que tem para fazer, as histórias da juventude que ainda há para contar e as decisões a tomar vão evoluindo a par com a deterioração física e mental de Anne e com o resto da vida “lá fora” que praticamente deixa de existir, mesmo considerando a filha Eva (Isabelle Huppert) cuja preocupação parece “demasiado social”, racional e “afastada”.
O circuito de vida, ou melhor, a “cela de prisão” passa a ser o seu apartamento de Paris – cenário único do filme que, diria, é também “personagem principal” já que revela muito de quem são as pessoas que o habitaram nos anos de “força” das suas vidas (e que Haneke desenha retratando a casa dos seus próprios pais, onde viveu a sua infância, em Viena, facilitando-lhe pensar nos trajetos utilizados, e nos seus obstáculos). O mundo do idoso incapacitado reduz-se implacavelmente ao interior das quatro paredes da sua casa, não só por necessidade, como também por proteção - o exterior (desconhecido/ inesperado) pode mesmo constituir um perigo potencial (comentado pelo casal, ao chegar, numa noite, a casa). Dessa casa/fortaleza, onde passamos um período de cerca de um ano de vida (a roupa de Georges muda consoante a estação), só um pombo sairá em liberdade pela janela.
“Amour” vai seguramente ficar como um dos melhores filmes sobre a vivência do período de envelhecimento e de debilidade, com o aparecimento de uma doença crónica/incurável e perda progressiva da autonomia.
“A vida é tão longa”, diz Anne, ao rever as fotos da sua infância e juventude. Sentimos com ela aquela felicidade de poder viver uma longa vida com um amor que nos acompanhe e compreenda. Percebemos porque não é fácil perspectivar o sofrimento, nem pensar na morte.
Aperta-se-nos o coração.
*Assistente das Disciplinas de Módulo III.I “Medicina Clínica - O Médico, a Pessoa e o Doente” e de Medicina Intensiva da FMUL.
** “Amour” recebeu ainda (para além de vários outros prémios) os César de “Meilleur film”, “Meilleur réalisateur” (Michael Haneke), “Meilleure actrice” (Emmanuelle Riva), “Meilleur acteur” (Jean-Louis Trintignant), e “Meilleur scénario original” (França, 2013) e o Globo de Ouro de “Best Foreign Language Film” (EUA, 2013), sendo galardoado nos London Critics Circle Film Awards de 2013 com “Film of the Year”, “Actress of the Year” (Emmanuelle Riva) e “Screenwriter of the Year” (Michael Haneke).
Ver trailer.