Mais e Melhor
"Alma" - entre a Arte e a Medicina, por Francisco Goiana da Silva
Alma – entre a Arte e a Medicina
Francisco Goiana da Silva
Parece ter sido ainda ontem que, dividido entre a loucura insegura das “Belas Artes” e a segurança e elevação da “Medicina”, sondava cada uma das pessoas de respeito relativamente à minha dúvida vocacional.
Se era apenas vocacional, talvez não. Mas se há anos atrás a realidade permitia investir cegamente num feeling, nos dias de hoje o “gostar” pode não ser suficiente.
A luz fez-se num conselho singelo mas sábio: “Um escultor não será capaz de ser um bom médico nas suas horas vagas mas, um bom médico, poderá ser ainda melhor praticando escultura nos seus tempos livres!”. Não era naquela altura capaz de compreender a complexidade dessas sábias palavras e, talvez por isso, não concordasse totalmente com elas. No entanto, segui-as porque o caminho que indicavam permitiria continuar a usufruir do melhor de dois mundos. A liberdade da “Arte Escultura” e a elevação intelectual da “Arte Medicina”.
Exames nacionais, candidaturas, médias, colocações… Quis o destino que a Faculdade de Medicina de Lisboa me levasse de casa e me lançasse um dos maiores desafios da minha vida.
Devo confessar, a adaptação não foi fácil nem tão pouco rápida. Mascarado de “caloiro do bombo” e de “valente guerreiro das praxes”, não havia espaço para lamechices artísticas ou sensibilidades demasiadas neste mundo novo. Achava eu que esconder as minhas “diferenças” era a melhor forma de me proteger. Mas como ninguém consegue anular uma parte essencial de si mesmo durante todo o tempo, sentia uma necessidade gritante de “fugir” para Santo Tirso todos os fins-de-semana. Aí, num “barracão” feito atelier, o “impulso artístico” continuava vivo. Uma forma de “Arte” que parecia não ter nada a ver com discurso teórico, muitas vezes repetitivo, enfadonho e vago, que eramos obrigados a interiorizar sobre a importância da arte na formação médica, durante longas tardes de seminários.
Qual seria a lógica de pensar que a arte me tornaria um melhor médico? Falar com os doentes sobre a riqueza do tecto da capela cistina ia curá-los mais rápido?
Como a vida de estudante não o é verdadeiramente sem uma paixão avassaladora, apaixonei-me! Esse namoro fez-me sentir em Lisboa e na Faculdade a minha casa. Esse amor fez-me investir todas as horas e minutos! Esse amor fez-me viver com uma intensidade alucinante, sorrir, chorar. Esse amor foi e é a AEFML. Esse amor calejou-me, mas acabou por me dar a segurança suficiente para me assumir diferente: estudante de Medicina, artista, excêntrico, megalómano.
E foi só quando o meu “Amor” mo pediu, que trouxe a criação artística para a minha vida da capital. Depois de um mês de clausura em Santo Tirso, a AEFML oferecia à FMUL, pelas comemorações dos seus 100 anos, uma peça de altura suficiente para deixar boquiabertos os grandes mestres. Foi inaugurada uma escultura de exterior que ainda hoje se afirma frente ao Edifício Egas Moniz: “A transmissão do conhecimento”.
Aquilo que muitos nunca conseguirão imaginar são as peripécias que muita gente teve de fazer para aquela peça chegar à sua localização habitual. Mas isso, isso seria suficiente para todo um outro artigo como este.
Ao ver tantas e tão diversas reacções relativas à escultura “A transmissão do conhecimento”, senti um poder enorme: o poder de fazer as pessoas parar e pensar. O poder de interferir com a mente de quem aprecia. Aí encontrei o meu verdadeiro sentido de Arte. Arte enquanto Alma que habita em alguns objectos e nos desacomoda! Portanto, cada crítica ou sketch feitos numa “Noite da Medicina”, com tom de gozo, relativamente aos famosos “bustos do Edifício Egas Moniz” é, mais do que tudo, prova de que as pessoas não são alheias a essa “tentativa” de Arte. Se apreciam ou não, isso é toda uma outra conversa.
Afinal de contas, a força da Arte não estava na capacidade de ter uma conversa erudita com um doente. A verdadeira força da arte estava em conseguir tocar o íntimo e a sensibilidade dos doentes.
Na educação médica existe um equilíbrio muito ténue entre a sensibilidade demasiada e a frieza, distante e defensiva. Assim, se foi graças à AEFML e à FMUL que revelei este meu lado “escultor” de forma pública nas comemorações dos 100 anos da Faculdade, tempos depois, foram também elas que me mudaram, me endureceram, fizeram com que eu achasse mais correcto castrar muita da minha sensibilidade natural. Isso aconteceu durante o meu mandato de Presidente. Isso aconteceu durante os anos clínicos do curso.
De facto, o “Kiko” artista, excêntrico, especial, não era o mesmo que o “Kiko” quase médico, Presidente da AEFML. Na altura, pensava eu: “Quem irá dar ouvidos a um excêntrico? Que doente confiará num médico artista?”.
Deixei de transparecer todas as emoções…
Deixei de expressar todas as opiniões…
Endureci!
Mais uma vez, a necessidade de fugir foi voltando, assim como a urgência de encontrar um local onde pudesse dizer tudo o que me ia na Alma. Esse local foi o “barracão” feito atelier. A minha voz foi a pedra.
Pouco a pouco, de uma forma natural, ia descobrindo uma nova Liberdade.
Pouco a pouco iam tomando forma desabafos silenciosos.
Terminado o curso há apenas uns meses atrás, percebi que, talvez fosse tempo de parar e, de uma vez por todas, dar total voz às minhas mãos. Miúdo feito médico e médico feito ser sensível e sonhador, novamente.
Acabei por perceber que, provavelmente, estive sempre errado e que, terei tanto mais capacidade de “tocar” as pessoas que me rodeiam (quer na qualidade de médico, político ou gestor) quanto mais verdadeiro for comigo próprio e com aquilo que realmente sou.
Estão expostas no palácio Centeno (antiga reitoria da UTL) 12 peças nas quais poderão descobrir, com certeza, uma mensagem, uma saudade, uma admiração, uma tristeza, pois no final de todo um percurso de 6 anos, elas são a voz de uma alma em libertação.
A cerimónia de inauguração da exposição de Escultura “Alma- entre a Arte e a Medicina” foi um momento especial. Apadrinhada pela UL, FMUL e AEFML, foi um momento quase mágico. Entre professores e estudantes não havia ali barreiras, a arte unia gerações e facções.
Na arte todos somos sensíveis e semelhantes. Na arte todos somos frágeis. A nova liderança surgirá da fusão de um pragmatismo vazio que vivemos hoje com a cultura, arte e humanidade que nos fará voltar a acreditar num amanhã.
A todos os estudantes da FMUL gostaria de deixar o desafio: sejam diferentes. Sejam mais do que aquilo que vos é exigido. Leiam, escrevam, pratiquem desporto, viajem. Serão certamente essas diferenças, que não constam dos números da média de curso, que vos farão sobressair na multidão.
Saiba mais sobre o jovem médico e escultor, clicando nos links abaixo:
"Alma"
MUNHAC-exposição