Espaço Aberto
Caminhada Meco-Cabo Espichel
«Abril águas mil» - transmite-nos a sabedoria popular.
Assim o previa a meteorologia, mas mais para o fim da tarde. Porém, pelo menos no passado dia 21 de Abril, fomos bafejados pela sorte e não nos molhamos.
Com uma temperatura muito agradável para caminhar e pouco vento, os corajosos aventureiros começaram a juntar-se progressivamente na praia da Praia das Bicas, próxima do parque de campismo da Aldeia do Meco (Campimeco).
Á medida que nos aproximávamos das 10:00, o grupo, bastante heterogéneo, constituído por alunos, funcionários e docentes, foi-se reunindo à volta dos 2 excepcionais guias do Núcleo de Desporto, Cultura e Bem-estar da Universidade de Lisboa.
Após a chamada e um rápido momento de instruções e regras básicas, dispersar-nos-íamos novamente, desta vez apenas para uma rápida ida aos sanitários ou em função de preparativos de última hora, dando-se dessa forma tempo para um escasso número de participantes retardatários reunir-se a nós, após serem devidamente orientados para rota certa através do telefone.
A caminhada em direcção ao Cabo Espichel acompanhou de perto a linha de costa, bordada por falésias espectaculares e praias desertas.
O percurso desta vez não foi o mais plano mas foi extraordinariamente compensador e pouco monótono, com subidas e descidas por vezes íngremes mas nada arriscadas ou difíceis de transpor.
Pontualmente os carreiros estreitos aproximavam-se da borda das falésias ou faziam-nos mergulhar no leito de caprichosas ribeiras que esculpiram vales profundos, ao longo de milhares de anos, mas que no dia preciso em que os atravessámos estavam quase todas sem caudal visível, devido à seca registada durante o último Inverno.
A primeira parte do percurso foi, por essa razão, pontuada por algumas paragens extra de reagrupamento devido à irregularidade do terreno.
Por cima de nós, a pouca altura, ou mesmo ao nível do nosso olhar mas sobre o vazio, com o vasto Atlântico e o horizonte a unirem-se no infinito como cenário, planavam suavemente na brisa silenciosas envergaduras de voo livre, quais pterossauros vindos de um passado longínquo perdido na memória dos tempos.
A paisagem era digna de ser comemorada num quadro pintado por um bom exemplo do Realismo pictórico francês da Escola de Barbizon, de influência ligeiramente romântica.
Alguma frescura acometia aos nossos pulmões, compensando o calor gerado pelo caminhar e transmitindo aquela sensação de ar puro, infelizmente hoje já mais escasso. Contudo, dada a proximidade do oceano, invadia-nos por vezes o aroma inconfundível da maresia pontuada, aqui e acolá, pelos odores típicos do Garrigue.
Em certas partes do percurso, algumas raridades como a Convolvulus fernandesii, conhecida vulgarmente como Corriola do Espichel, poderiam ser descobertas apenas pelos olhares mais treinados, mas somente nos afloramentos calcários e em arribas costeiras. Já quem ia no encalço da Euphorbia pedroi ou o Trovisco do Espichel, ficaria desapontado, pois trata-se de um endemismo apenas visível nas falésias entre a Serra da Arrábida e o Cabo Espichel, desde que as mesmas estejam voltadas para Sul. Embora sejam ambas plantas extremamente raras e ameaçadas, outras mais vulgares caracterizam a flora muito característica daquele ambiente litoral, onde por vezes surpreendemos pequenos animais a procurarem refúgio à nossa passagem.
O almoço caiu no programa do dia como um autêntico “descanso do guerreiro”.
Foi uma pausa extremamente compensadora. Não por ter constituído a paragem mas longa, nomeadamente ao fim de algumas horas de caminho, mas devido ao facto de podermos tomar uma refeição que, embora ligeira, aconteceu ao ar livre, num local muito aprazível para todos os sentidos.
Talvez pela fome ou pela distracção só reparei nelas quando os mais despachados, nestas coisas do repasto, se começaram a dirigir para uma placa de rocha assaz inclinada, a escassas dezenas de metros do sítio escolhido para almoçarmos.
A posição oblíqua do terreno a princípio não me permitiu reconhecer que estava perante uma autêntica fotografia de como tinha sido o chão algures por ali há milhões de anos.
Esta componente geológica do cabo merece realmente um olhar atento, em particular nas arribas de origem sedimentar, formadas por um notável puzzle de múltiplas camadas diferenciadas, onde são visíveis trajectos de pegadas deixadas pelos dinossauros, de várias espécies, sabe-se lá há quanto tempo.
Obviamente que qualquer espírito inquisitivo que se deixe facilmente envolver pela curiosidade não poderia consentir ficar-se pela tranquilidade distante a apreciar as pegadas apenas de longe.
Apesar da inclinação do terreno, levantado por imponentes movimentos das placas tectónicas, pisar aquele mesmo chão tanto tempo volvido, foi uma sensação indescritível.
No próprio local conseguimos identificar outros vestígios que a distância ocultara, possibilitando-nos mergulhar as mãos e os pensamentos em pegadas que vão do inconcebivelmente grande (à luz dos animais contemporâneos), ao compatível com a nossa dimensão… como as marcas de garras ancestrais onde afundei os meus dedos numa viagem ao passado.
O regresso foi calmo e tranquilo, por um trajecto mais uniforme e interior.
Foi propício a menos paragens mas igualmente aventureiro.
O momento marcante foi sem dúvida o pânico gerado por uma singela cobra que se aquecia no carreiro por onde seguíamos, longe de imaginar que iria ser incomodada por um grupo de criaturas assustadiças. Nessa altura só tive pena de não estar no pelotão da frente para sossegar os mais inquietos e deixarmos o animal ir à sua vida.
Há contudo algo muito difícil de transmitir, por muito engenho e inspiração que se tenha.
Exactamente a mesma paisagem, mas vista em dias alternativos não transmite as mesmas emoções, até porque a natureza é extremamente mutável e dinâmica. A luminosidade com que o dia se despediu do grupo foi de facto única e intransmissível.
Miguel Andrade
mandrade@fm.ul.pt
Assim o previa a meteorologia, mas mais para o fim da tarde. Porém, pelo menos no passado dia 21 de Abril, fomos bafejados pela sorte e não nos molhamos.
Com uma temperatura muito agradável para caminhar e pouco vento, os corajosos aventureiros começaram a juntar-se progressivamente na praia da Praia das Bicas, próxima do parque de campismo da Aldeia do Meco (Campimeco).
Á medida que nos aproximávamos das 10:00, o grupo, bastante heterogéneo, constituído por alunos, funcionários e docentes, foi-se reunindo à volta dos 2 excepcionais guias do Núcleo de Desporto, Cultura e Bem-estar da Universidade de Lisboa.
Após a chamada e um rápido momento de instruções e regras básicas, dispersar-nos-íamos novamente, desta vez apenas para uma rápida ida aos sanitários ou em função de preparativos de última hora, dando-se dessa forma tempo para um escasso número de participantes retardatários reunir-se a nós, após serem devidamente orientados para rota certa através do telefone.
A caminhada em direcção ao Cabo Espichel acompanhou de perto a linha de costa, bordada por falésias espectaculares e praias desertas.
O percurso desta vez não foi o mais plano mas foi extraordinariamente compensador e pouco monótono, com subidas e descidas por vezes íngremes mas nada arriscadas ou difíceis de transpor.
Pontualmente os carreiros estreitos aproximavam-se da borda das falésias ou faziam-nos mergulhar no leito de caprichosas ribeiras que esculpiram vales profundos, ao longo de milhares de anos, mas que no dia preciso em que os atravessámos estavam quase todas sem caudal visível, devido à seca registada durante o último Inverno.
A primeira parte do percurso foi, por essa razão, pontuada por algumas paragens extra de reagrupamento devido à irregularidade do terreno.
Por cima de nós, a pouca altura, ou mesmo ao nível do nosso olhar mas sobre o vazio, com o vasto Atlântico e o horizonte a unirem-se no infinito como cenário, planavam suavemente na brisa silenciosas envergaduras de voo livre, quais pterossauros vindos de um passado longínquo perdido na memória dos tempos.
A paisagem era digna de ser comemorada num quadro pintado por um bom exemplo do Realismo pictórico francês da Escola de Barbizon, de influência ligeiramente romântica.
Alguma frescura acometia aos nossos pulmões, compensando o calor gerado pelo caminhar e transmitindo aquela sensação de ar puro, infelizmente hoje já mais escasso. Contudo, dada a proximidade do oceano, invadia-nos por vezes o aroma inconfundível da maresia pontuada, aqui e acolá, pelos odores típicos do Garrigue.
Em certas partes do percurso, algumas raridades como a Convolvulus fernandesii, conhecida vulgarmente como Corriola do Espichel, poderiam ser descobertas apenas pelos olhares mais treinados, mas somente nos afloramentos calcários e em arribas costeiras. Já quem ia no encalço da Euphorbia pedroi ou o Trovisco do Espichel, ficaria desapontado, pois trata-se de um endemismo apenas visível nas falésias entre a Serra da Arrábida e o Cabo Espichel, desde que as mesmas estejam voltadas para Sul. Embora sejam ambas plantas extremamente raras e ameaçadas, outras mais vulgares caracterizam a flora muito característica daquele ambiente litoral, onde por vezes surpreendemos pequenos animais a procurarem refúgio à nossa passagem.
O almoço caiu no programa do dia como um autêntico “descanso do guerreiro”.
Foi uma pausa extremamente compensadora. Não por ter constituído a paragem mas longa, nomeadamente ao fim de algumas horas de caminho, mas devido ao facto de podermos tomar uma refeição que, embora ligeira, aconteceu ao ar livre, num local muito aprazível para todos os sentidos.
Talvez pela fome ou pela distracção só reparei nelas quando os mais despachados, nestas coisas do repasto, se começaram a dirigir para uma placa de rocha assaz inclinada, a escassas dezenas de metros do sítio escolhido para almoçarmos.
A posição oblíqua do terreno a princípio não me permitiu reconhecer que estava perante uma autêntica fotografia de como tinha sido o chão algures por ali há milhões de anos.
Esta componente geológica do cabo merece realmente um olhar atento, em particular nas arribas de origem sedimentar, formadas por um notável puzzle de múltiplas camadas diferenciadas, onde são visíveis trajectos de pegadas deixadas pelos dinossauros, de várias espécies, sabe-se lá há quanto tempo.
Obviamente que qualquer espírito inquisitivo que se deixe facilmente envolver pela curiosidade não poderia consentir ficar-se pela tranquilidade distante a apreciar as pegadas apenas de longe.
Apesar da inclinação do terreno, levantado por imponentes movimentos das placas tectónicas, pisar aquele mesmo chão tanto tempo volvido, foi uma sensação indescritível.
No próprio local conseguimos identificar outros vestígios que a distância ocultara, possibilitando-nos mergulhar as mãos e os pensamentos em pegadas que vão do inconcebivelmente grande (à luz dos animais contemporâneos), ao compatível com a nossa dimensão… como as marcas de garras ancestrais onde afundei os meus dedos numa viagem ao passado.
O regresso foi calmo e tranquilo, por um trajecto mais uniforme e interior.
Foi propício a menos paragens mas igualmente aventureiro.
O momento marcante foi sem dúvida o pânico gerado por uma singela cobra que se aquecia no carreiro por onde seguíamos, longe de imaginar que iria ser incomodada por um grupo de criaturas assustadiças. Nessa altura só tive pena de não estar no pelotão da frente para sossegar os mais inquietos e deixarmos o animal ir à sua vida.
Há contudo algo muito difícil de transmitir, por muito engenho e inspiração que se tenha.
Exactamente a mesma paisagem, mas vista em dias alternativos não transmite as mesmas emoções, até porque a natureza é extremamente mutável e dinâmica. A luminosidade com que o dia se despediu do grupo foi de facto única e intransmissível.
Miguel Andrade
mandrade@fm.ul.pt
