Investigação e Formação Avançada
Prevenção Quaternária
A prevenção da doença através da acção médica e da mudança de estilo de vida transformou-se numa das pedras de toque da medicina de hoje, e ainda bem que assim é: avanços como a vacinação infantil e a generalização da amamentação, para citar apenas duas áreas, constituíram enormes saltos qualitativos na saúde das sociedades contemporâneas. O sucesso das medidas preventivas foi na verdade de tal ordem que levou ao surgimento de expectativas irrealistas sobre as intervenções classificadas como preventivas; além disso, a noção de que “mais vale prevenir do que remediar” está de tal maneira enraizada na nossa cultura que é hoje quase impossível pôr em causa qualquer actividade preventiva sem se ser imediatamente atacado pelos seus defensores, muitas vezes impermeáveis a factos demonstrando que algumas actividades preventivas podem não só ser inúteis como manifestamente prejudiciais para os pacientes.
Este tipo de situação tornou-se particularmente relevante quando se começou a rastrear grandes grupos de populações assintomáticas. David Sackett e Walter Holland, discutindo os rastreios, observaram que “os defensores dos rastreios, habitualmente por motivos impecáveis, concluem que a evidência pré-existente, adicionada ao senso comum, perante o preço continuado de incapacidade e de morte antecipada, exige programas de rastreio maciço[…] Para “manterem a fé”, os defensores dos rastreios podem ver-se forçados a aceitar ou rejeitar a evidência não tanto com base no seu mérito científico como na medida em que essa evidência apoie ou rejeite a proposição de que os rastreios são bons.”(Sackett e Holland, 1975). O mesmo Sackett, anos mais tarde, debate o que classifica como "arrogância da medicina preventiva" (Sackett, 2002), a propósito dos resultados do estudo Women's Health Initiative (Writing Group for the Women’s Health Initiative Investigators, 2002) que demonstrou os efeitos deletérios da terapêutica hormonal de substituição, uma intervenção até então intensamente promovida junto das mulheres pós-menopáusicas. O facto de o conceito de prevenção ser ter alargado de modo a incluir factores de risco como se estes fossem doenças tem sido igualmente objecto de crítica (Starfield et al, 2008). A descida progressiva dos limiares a partir dos quais se define a existência de doença - hipertensão, dislipidemia e diabetes constituem os exemplos mais imediatos - leva a que se classifiquem como doentes ou potencialmente doentes muitos milhões de pessoas assintomáticas e até ao momento consideradas como saudáveis (Westin e Health, 2005).
O conceito de prevenção quaternária surge a partir da tomada de consciência de que o excesso de intervenção médica pode gerar mais prejuízos que benefícios. Marc Jamoulle e Michael Roland, tomando como ponto de partida o preceito hipocrático primum non nocere, propuseram o conceito de prevenção quaternária, definindo-o como “Iniciativa para identificar pacientes em risco de sobremedicalização, para os proteger de novas invasões médicas e para lhes sugerir intervenções eticamente aceitáveis” (Jamoulle e Roland, 2005). Concebida a partir das definições estabelecidas de prevenção primária, secundária e terciária, a prevenção quaternária incide em indivíduos que se sentem doentes mas não apresentam nenhum quadro patológico que justifique as suas queixas ou que tenha uma relação directa com elas (Kuehlein et al, 2010) (Figura 1). Este conceito encontra-se hoje bem implantado na medicina geral e familiar em todo o mundo (Bentzen, 2003).
A prevenção quaternária pratica-se no dia a dia com os pacientes que recorrem ao seu médico. Os princípios que a regem são, de forma resumida, os seguintes (Melo, 2007):
• Adoptar uma perspectiva biopsicosocial, encarando o paciente globalmente e praticando uma abordagem centrada no paciente.
• Aceitar que há queixas não explicáveis.
• Evitar pseudo-diagnósticos e rótulos.
• Trabalhar no reforço da relação médico-paciente.
• Envolver o paciente nas decisões.
• Manter a actualização técnico-científica através de informação independente e isenta, exercitando um permanente espírito crítico sobre a informação recebida.
• Utilizar instrumentos que permitam as melhores práticas médicas. A melhor forma de o conseguir é através do uso de protocolos (diagnósticos e terapêuticos) desenvolvidos interpares, adaptados localmente e baseados na melhor evidência disponível.
A prevenção assenta hoje na identificação e conversão de factores de risco em regras preditivas e a equiparação destas a regras de decisão, assumindo-se risco relativo como se fosse risco absoluto (Gérvas et al, 2008). A prática da prevenção quaternária permite ao médico retirar a máxima vantagem das intervenções ao seu dispor para os pacientes que a ele recorrem, protegendo-os de intervenções excessivas e das suas consequências.
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Referências bibliográficas
Bentzen N (editor). [2003). WONCA Dictionary of General/Family Practice. Cope- nhagen, Maanedskift Lager.
Gérvas J, Starfield B, Heath I. (2008). Is clinical prevention better than cure? Lancet, 372, 1997-99.
Getz L, Sigurdson JA, Hetlevik I. (2003). Is opportunistic disease prevention in the consultation ethically justifiable? BMJ, 327, 498-500.
Heath I. (2005). Who needs health care—the well or the sick? BMJ, 330, 954-956.
Jamoulle M, Roland M. (2005, Junho 6-9). Quaternary prevention and the glossary of general practice/family medicine. Hong Kong WONCA Congress Proceedings. Hong Kong: WONCA - World Organization of Family Doctors.
Kuehlein T, Sghedoni D, Visentin G, Gérvas J. (2010). Quaternary prevention: a task of the general practitioner. Primary Care, 10 (18), 350-354.
Melo M. (2007). A prevenção quaternária contra os excessos da Medicina. Rev Port Clin Geral, 23, 289-293.
Sackett DL. (2002). The arrogance of preventive medicine. CMAJ, 167 (4), 363-364.
Sackett DL, Holland WW. (1975). Controversy in the detection of disease. Lancet, ii, 357-359.
Starfield B, Hyde J, Gérvas J, Heath I. (2008). The concept of prevention: a good idea gone astray? J Epidemiol Community Health, 62, 580-583.
Westin S, Heath I. (2005). Thresholds for normal blood pressure and serum cholesterol. BMJ, 330, 1461-1462.
Writing Group for the Women’s Health Initiative Investigators. (2002). Risks and benefits of estrogen plus progestin in healthy postmenopausal women. Principal results from the Women’s Health Initiative randomized controlled trial. JAMA, 288 (3), 321-333.
Este tipo de situação tornou-se particularmente relevante quando se começou a rastrear grandes grupos de populações assintomáticas. David Sackett e Walter Holland, discutindo os rastreios, observaram que “os defensores dos rastreios, habitualmente por motivos impecáveis, concluem que a evidência pré-existente, adicionada ao senso comum, perante o preço continuado de incapacidade e de morte antecipada, exige programas de rastreio maciço[…] Para “manterem a fé”, os defensores dos rastreios podem ver-se forçados a aceitar ou rejeitar a evidência não tanto com base no seu mérito científico como na medida em que essa evidência apoie ou rejeite a proposição de que os rastreios são bons.”(Sackett e Holland, 1975). O mesmo Sackett, anos mais tarde, debate o que classifica como "arrogância da medicina preventiva" (Sackett, 2002), a propósito dos resultados do estudo Women's Health Initiative (Writing Group for the Women’s Health Initiative Investigators, 2002) que demonstrou os efeitos deletérios da terapêutica hormonal de substituição, uma intervenção até então intensamente promovida junto das mulheres pós-menopáusicas. O facto de o conceito de prevenção ser ter alargado de modo a incluir factores de risco como se estes fossem doenças tem sido igualmente objecto de crítica (Starfield et al, 2008). A descida progressiva dos limiares a partir dos quais se define a existência de doença - hipertensão, dislipidemia e diabetes constituem os exemplos mais imediatos - leva a que se classifiquem como doentes ou potencialmente doentes muitos milhões de pessoas assintomáticas e até ao momento consideradas como saudáveis (Westin e Health, 2005).
O conceito de prevenção quaternária surge a partir da tomada de consciência de que o excesso de intervenção médica pode gerar mais prejuízos que benefícios. Marc Jamoulle e Michael Roland, tomando como ponto de partida o preceito hipocrático primum non nocere, propuseram o conceito de prevenção quaternária, definindo-o como “Iniciativa para identificar pacientes em risco de sobremedicalização, para os proteger de novas invasões médicas e para lhes sugerir intervenções eticamente aceitáveis” (Jamoulle e Roland, 2005). Concebida a partir das definições estabelecidas de prevenção primária, secundária e terciária, a prevenção quaternária incide em indivíduos que se sentem doentes mas não apresentam nenhum quadro patológico que justifique as suas queixas ou que tenha uma relação directa com elas (Kuehlein et al, 2010) (Figura 1). Este conceito encontra-se hoje bem implantado na medicina geral e familiar em todo o mundo (Bentzen, 2003).
Figura 1 - Modelo de tabela de duas entradas das diferentes formas de prevenção (retirado de Kuehlein et al, 2010 - tradução de Gustavo Gusso, versão portuguesa disponível em http://www.primary-care.ch/d/index.html)
A prevenção quaternária pratica-se no dia a dia com os pacientes que recorrem ao seu médico. Os princípios que a regem são, de forma resumida, os seguintes (Melo, 2007):
• Adoptar uma perspectiva biopsicosocial, encarando o paciente globalmente e praticando uma abordagem centrada no paciente.
• Aceitar que há queixas não explicáveis.
• Evitar pseudo-diagnósticos e rótulos.
• Trabalhar no reforço da relação médico-paciente.
• Envolver o paciente nas decisões.
• Manter a actualização técnico-científica através de informação independente e isenta, exercitando um permanente espírito crítico sobre a informação recebida.
• Utilizar instrumentos que permitam as melhores práticas médicas. A melhor forma de o conseguir é através do uso de protocolos (diagnósticos e terapêuticos) desenvolvidos interpares, adaptados localmente e baseados na melhor evidência disponível.
A prevenção assenta hoje na identificação e conversão de factores de risco em regras preditivas e a equiparação destas a regras de decisão, assumindo-se risco relativo como se fosse risco absoluto (Gérvas et al, 2008). A prática da prevenção quaternária permite ao médico retirar a máxima vantagem das intervenções ao seu dispor para os pacientes que a ele recorrem, protegendo-os de intervenções excessivas e das suas consequências.
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Referências bibliográficas
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Writing Group for the Women’s Health Initiative Investigators. (2002). Risks and benefits of estrogen plus progestin in healthy postmenopausal women. Principal results from the Women’s Health Initiative randomized controlled trial. JAMA, 288 (3), 321-333.