Espaço Ciência
O Projecto ÍCARO: 15 anos de investigação e vigilância
O Projecto ÍCARO (Importância do Calor: Repercussão nos Óbitos) começou por ser um modelo simples para a ocorrência de ondas de calor e a respectiva relação com a mortalidade observada no distrito de Lisboa, que acabou por inspirar um sistema de vigilância das ondas de calor com a ambição de minorar os conhecidos impactos avultados na mortalidade.
Passados 15 anos, o Projecto ÍCARO, sedeado no INSA (Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge) continua a ter a mesma missão de contribuir para minorar os impactos do calor na saúde, mas muitos passos foram dados entretanto e muitos são os seus argumentos novos.
Objectivo: Antecipar e identificar a ocorrência de períodos de calor com potenciais impactos nefastos na saúde; contribuir para a medição desses impactos; desenvolver investigação sobre modelos de medição, de previsão, de monitorização e de vigilância de períodos climáticos extremos com potencial impacto na saúde.
Âmbito: Sistema Nacional de Vigilância.
Componentes do Projecto ÍCARO:
• Regiões ÍCARO;
• Modelos ÍCARO;
• Índices-ÍCARO e Índices-Alerta-ÍCARO;
• Sistema de Vigilância ÍCARO.
Note-se que o objectivo actual do Projecto ÍCARO já não refere explicitamente ondas de calor mas períodos de calor. De facto, as ocorrências de calor extremo que estiveram na motivação inicial do projecto e dos modelos construídos não são o foco essencial.
O facto de Sistema de Vigilância ÍCARO se poder agora considerar de âmbito nacional é um grande passo técnico. Originariamente, o sistema de vigilância ÍCARO, estabelecido em 1999 (ver cronologia, Figura 1), baseava-se em dados meteorológicos e de mortalidade do distrito de Lisboa e era uma versão portuguesa daquilo a que se chamou internacionalmente Heat Health Watch/Warning Systems [1], que na sua essência, são sistemas de vigilância centrados numa única cidade.
Figura 1. Cronologia do Projecto ÍCARO
Como os dados conhecidos relativos a mortalidade associada a grandes ondas de calor até ao ano 2000, em Portugal, mostravam uma grande correlação entre o observado para o distrito de Lisboa e o observado para o país, quando o sistema de Vigilância foi construído, assumiu-se o modelo de previsão para o distrito de Lisboa como um bom preditor para o nível de Portugal Continental [2].
A experiência da vigilância tida durante os Verões de 2000 a 2002 mostrou que esta relação entre a previsão para Lisboa e para o nível mais alargado do país, apesar de essencialmente verdadeiro para fenómenos de calor particularmente extremos, tinha grandes limitações para fenómenos locais. A solução que parecia mais imediata seria a construção de múltiplos modelos/sistemas de vigilância para diferentes cidades distribuídas pelo país. Mas tal revelou-se inviável pelo facto das restantes cidades/distritos não terem as densidades populacionais que reúnam a evidência necessária para a construção de modelos. Esta limitação foi contornada construindo as Regiões ÍCARO (Figura 2).
Figura 2. Regiões ÍCARO
O primeiro modelo ÍCARO, para o distrito de Lisboa, introduziu o conceito de Sobrecarga Térmica Acumulada (STA) um rationale de que quando faz muito calor o respectivo “stresse” vai acumulando ao longo dos dias, enquanto as temperaturas do ar não arrefecem. A variável STA pressupõe a existência de uma temperatura máxima limiar e resulta da temperatura máxima do dia acima desse limiar, multilplicado pelo número de dias consecutivos em que a temperatura máxima esteve acima do limiar. Em 2005, os modelos para o distrito de Lisboa foram aperfeiçoados integrando duas ideias novas: limiares de temperatura dinâmicos e a generalização da variável STA integrando a ideia de arrefecimento (lento desvanecer do “stresse” acumulado) quando as temperaturas descem abaixo do limiar em vez do arrefecimento total imediato[3].
A definição de modelos pelas Regiões ÍCARO (conjuntos de distritos) colocou grandes desafios, pois existiam múltiplas temperaturas possíveis de considerar e não apenas uma como acontecia no modelo de Lisboa. Os modelos obtidos por regiões incluíram as variáveis STA para dois limiares de temperaturas 32ºC e 35ºC, todas as regiões incluíram temperaturas de pelo menos dois ou três distritos.
A existência de bons modelos estatísticos para a previsão de óbitos levou à criação de índices-ÍCARO [4], que tiveram inicialmente o objectivo de relativizar os números absolutos de óbitos previstos, que tinha a seguinte forma:
Índice ICARO =Nº de óbitos esperados com o efeito do calor
__________________________________________ - 1 Nº de óbitos esperados sem o efeito do calor
Quando começaram a existir múltiplos modelos ÍCARO (a partir de 2006), verificou-se que a interpretação dos valores entre os diferentes índices não era imediata. Investigação mais recente mostrou que este índice depende do número médio de óbitos que é modelado, o que levou a uma padronização do Índice a que se deu o nome de Índice-Alerta-ÍCARO, que simplificou a interpretação de todos os índices para as diferentes regiões ou mesmo ao nível nacional (Figura 3).
Todas estas ferramentas permitem que se continue a fazer vigilância dos períodos de calor há 13 anos consecutivos. Em 1999, quando foi estabelecido, o sistema contava com o INSA e o Instituto de Meteorologia numa vertente mais técnica, e com a Direcção Geral da Saúde e a Protecção Civil com um papel mais actuante. Passados todos estes anos, a estrutura ainda é no essencial a mesma, agora guiada pelos planos de contingência de calor que foram instituídos por toda a Europa a partir de 2004, após a grande onda de calor de 2003.
Apesar do longo caminho percorrido pelo Projecto ÍCARO e pelo seu Sistema de Vigilância de Ondas de Calor (o 1.º da Europa), são ainda muitos os desafios de investigação que se colocam, por exemplo, encontrar mais evidências de impactos na morbilidade, construir os respectivos modelos e estudar a efectividade dos planos de contingência e contribuir para respectiva melhoria.
Paulo Jorge Nogueira
Instituto de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa
pnogueira@fm.ul.pt
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Referências
1. Kalkstein LS, Jamason PF, Greene JS, Libby J, Robinson L. (1996). "The Philadelfia Hot Weather - Health Watch/Warning System: Development and Application, Summer 1995." Bulletin of the American Meteorological Society 77(7): 1519-1528.
2. Nogueira P (2005). Examples of Heat Health Warning Systems: Lisbon’s ICARO’s surveillance system, summer of 2003. Extreme weather events and Public Health Responses. European Public Health Association.
3. Nogueira P e Paixão E (2008). "Models for mortality associated with heatwaves: update of the Portuguese heat health warning system." International Journal of Climatology 28(4): 545-562.
4. Nogueira P, Nunes B, Dias CM, Falcão JM. (1999). "Um sistema de vigilância e alerta de ondas de calor com efeitos na mortalidade: o índice Ícaro." Revista Portuguesa de Saúde Pública. I: 79-84.
5. Robalo J, Dieges P, Batalha L, (2011). Plano de contingência para temperaturas extremas adversas 2001 - módulo Calor. www.dgs.pt, Direcção Geral da Saúde.
Passados 15 anos, o Projecto ÍCARO, sedeado no INSA (Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge) continua a ter a mesma missão de contribuir para minorar os impactos do calor na saúde, mas muitos passos foram dados entretanto e muitos são os seus argumentos novos.
Objectivo: Antecipar e identificar a ocorrência de períodos de calor com potenciais impactos nefastos na saúde; contribuir para a medição desses impactos; desenvolver investigação sobre modelos de medição, de previsão, de monitorização e de vigilância de períodos climáticos extremos com potencial impacto na saúde.
Âmbito: Sistema Nacional de Vigilância.
Componentes do Projecto ÍCARO:
• Regiões ÍCARO;
• Modelos ÍCARO;
• Índices-ÍCARO e Índices-Alerta-ÍCARO;
• Sistema de Vigilância ÍCARO.
Note-se que o objectivo actual do Projecto ÍCARO já não refere explicitamente ondas de calor mas períodos de calor. De facto, as ocorrências de calor extremo que estiveram na motivação inicial do projecto e dos modelos construídos não são o foco essencial.
O facto de Sistema de Vigilância ÍCARO se poder agora considerar de âmbito nacional é um grande passo técnico. Originariamente, o sistema de vigilância ÍCARO, estabelecido em 1999 (ver cronologia, Figura 1), baseava-se em dados meteorológicos e de mortalidade do distrito de Lisboa e era uma versão portuguesa daquilo a que se chamou internacionalmente Heat Health Watch/Warning Systems [1], que na sua essência, são sistemas de vigilância centrados numa única cidade.
Figura 1. Cronologia do Projecto ÍCARO
Como os dados conhecidos relativos a mortalidade associada a grandes ondas de calor até ao ano 2000, em Portugal, mostravam uma grande correlação entre o observado para o distrito de Lisboa e o observado para o país, quando o sistema de Vigilância foi construído, assumiu-se o modelo de previsão para o distrito de Lisboa como um bom preditor para o nível de Portugal Continental [2].
A experiência da vigilância tida durante os Verões de 2000 a 2002 mostrou que esta relação entre a previsão para Lisboa e para o nível mais alargado do país, apesar de essencialmente verdadeiro para fenómenos de calor particularmente extremos, tinha grandes limitações para fenómenos locais. A solução que parecia mais imediata seria a construção de múltiplos modelos/sistemas de vigilância para diferentes cidades distribuídas pelo país. Mas tal revelou-se inviável pelo facto das restantes cidades/distritos não terem as densidades populacionais que reúnam a evidência necessária para a construção de modelos. Esta limitação foi contornada construindo as Regiões ÍCARO (Figura 2).
Figura 2. Regiões ÍCARO
O primeiro modelo ÍCARO, para o distrito de Lisboa, introduziu o conceito de Sobrecarga Térmica Acumulada (STA) um rationale de que quando faz muito calor o respectivo “stresse” vai acumulando ao longo dos dias, enquanto as temperaturas do ar não arrefecem. A variável STA pressupõe a existência de uma temperatura máxima limiar e resulta da temperatura máxima do dia acima desse limiar, multilplicado pelo número de dias consecutivos em que a temperatura máxima esteve acima do limiar. Em 2005, os modelos para o distrito de Lisboa foram aperfeiçoados integrando duas ideias novas: limiares de temperatura dinâmicos e a generalização da variável STA integrando a ideia de arrefecimento (lento desvanecer do “stresse” acumulado) quando as temperaturas descem abaixo do limiar em vez do arrefecimento total imediato[3].
A definição de modelos pelas Regiões ÍCARO (conjuntos de distritos) colocou grandes desafios, pois existiam múltiplas temperaturas possíveis de considerar e não apenas uma como acontecia no modelo de Lisboa. Os modelos obtidos por regiões incluíram as variáveis STA para dois limiares de temperaturas 32ºC e 35ºC, todas as regiões incluíram temperaturas de pelo menos dois ou três distritos.
A existência de bons modelos estatísticos para a previsão de óbitos levou à criação de índices-ÍCARO [4], que tiveram inicialmente o objectivo de relativizar os números absolutos de óbitos previstos, que tinha a seguinte forma:
Índice ICARO =Nº de óbitos esperados com o efeito do calor
__________________________________________ - 1 Nº de óbitos esperados sem o efeito do calor
Quando começaram a existir múltiplos modelos ÍCARO (a partir de 2006), verificou-se que a interpretação dos valores entre os diferentes índices não era imediata. Investigação mais recente mostrou que este índice depende do número médio de óbitos que é modelado, o que levou a uma padronização do Índice a que se deu o nome de Índice-Alerta-ÍCARO, que simplificou a interpretação de todos os índices para as diferentes regiões ou mesmo ao nível nacional (Figura 3).
Figura 3. Níveis de Alerta ÍCARO (operacionalização dos Índices-Alerta-ÍCARO)
Todas estas ferramentas permitem que se continue a fazer vigilância dos períodos de calor há 13 anos consecutivos. Em 1999, quando foi estabelecido, o sistema contava com o INSA e o Instituto de Meteorologia numa vertente mais técnica, e com a Direcção Geral da Saúde e a Protecção Civil com um papel mais actuante. Passados todos estes anos, a estrutura ainda é no essencial a mesma, agora guiada pelos planos de contingência de calor que foram instituídos por toda a Europa a partir de 2004, após a grande onda de calor de 2003.
Apesar do longo caminho percorrido pelo Projecto ÍCARO e pelo seu Sistema de Vigilância de Ondas de Calor (o 1.º da Europa), são ainda muitos os desafios de investigação que se colocam, por exemplo, encontrar mais evidências de impactos na morbilidade, construir os respectivos modelos e estudar a efectividade dos planos de contingência e contribuir para respectiva melhoria.
Paulo Jorge Nogueira
Instituto de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa
pnogueira@fm.ul.pt
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Referências
1. Kalkstein LS, Jamason PF, Greene JS, Libby J, Robinson L. (1996). "The Philadelfia Hot Weather - Health Watch/Warning System: Development and Application, Summer 1995." Bulletin of the American Meteorological Society 77(7): 1519-1528.
2. Nogueira P (2005). Examples of Heat Health Warning Systems: Lisbon’s ICARO’s surveillance system, summer of 2003. Extreme weather events and Public Health Responses. European Public Health Association.
3. Nogueira P e Paixão E (2008). "Models for mortality associated with heatwaves: update of the Portuguese heat health warning system." International Journal of Climatology 28(4): 545-562.
4. Nogueira P, Nunes B, Dias CM, Falcão JM. (1999). "Um sistema de vigilância e alerta de ondas de calor com efeitos na mortalidade: o índice Ícaro." Revista Portuguesa de Saúde Pública. I: 79-84.
5. Robalo J, Dieges P, Batalha L, (2011). Plano de contingência para temperaturas extremas adversas 2001 - módulo Calor. www.dgs.pt, Direcção Geral da Saúde.