Momentos
Entrevista Maria Manuela Lopes - artista residente no IMM
“Acho que toda a gente beneficia com um outro olhar sobre aquilo que faz”
Quem passou pelo átrio do Edifício Egas Moniz durante a semana de 21 a 25 de Março não ficou indiferente à instalação da artista residente no Instituto de Medicina Molecular (IMM) e no Hospital de Santa Maria (HSM), Maria Manuela Lopes.
“Atuando e re-atuando o arquivo” é o nome da instalação que a artista fez no IMM e que permitiu a todos os que passavam pelo piso 01 do EEM assistir aos processos de trabalho e interagir com a artista. Maria Manuela Lopes recriou ali o seu atelier, que foi o seu local de trabalho durante o tempo da instalação.
Maria Manuela Lopes está em residência artística no Instituto de Medicina Molecular e no Hospital de Santa Maria, onde desenvolve o caso de estudo do seu Doutoramento. A artista interessa-se pelo tema da memória e colabora com a Unidade de Neurociências Celular e Molecular e a Unidade Neurológica de Investigação Clínica, Grupo de Demências, do IMM com extensão no Hospital de Santa Maria. O tema da perda da memória, especificamente através da doença de Alzheimer é abordado pelo reactuar das estratégias de representação científicas. Fomos conhecer melhor o seu trabalho.
Como é o seu percurso artístico?
Sou formada em Artes Plásticas, Escultura, na Escola de Belas Artes do Porto. Depois vim para Lisboa, comecei a trabalhar e, passados dois anos fui para Inglaterra fazer um Mestrado em Artes Plásticas. Fui intencionalmente para o Goldsmiths College, porque queria acabar com a barreira disciplinar. Não queria fazer o Mestrado numa escola que me obrigasse outra vez a escolher uma área (pintura/escultura/fotografia).
Achava que o meio era definido pela obra e que não era necessário estar a espartilhar à partida. Lá, comecei a trabalhar com vídeo e fotografia. Depois voltei para Lisboa e comecei a dar aulas. Tenho exposto desde os anos 90 instalação e escultura. Desde 1998, muito na área da instalação multimédia. Em 2006, fui como artista residente para a Ectopia, um laboratório de experimentação artística a iniciar actividade no Instituto Gulbenkian de Ciência. Esse projecto, Ethology I, em que explorava a questão das fronteiras da ideia de ‘self’, trouxe-me ao IMM, aos laboratórios de Imunologia. Entretanto abriu o programa de residências artísticas do DGArtes e Ciência Viva em conjunto e fui para o IBMC, no Porto, produzindo ai o CAGE SSI.
Como é que esta residência no Instituto de Medicina Molecular e no Hospital de Santa Maria se integra no seu trabalho artístico? Como é que surgiu?
Este projecto específico foi surgindo com a necessidade de fazer um Doutoramento. Então decidi mais uma vez que tinha de fazer um doutoramento que implicasse pensar, fazendo, e tendo uma base projectual forte. Descobri uma pessoa em Inglaterra (Kathleen Rogers) que trabalha na fronteira das artes, ciência e tecnologia, explorando temas da consciência e da mitologia, que me fascinam. Entretanto apresentei também o meu projecto inicial ao Prof. João Lobo Antunes, que também me deu apoio e começámos a trabalhar; explorando as investigações que existiam a nível da memória, aqui no Instituto que, permitissem que eu fizesse o doutoramento por projecto ligado à universidade Inglesa. Sendo um campo muito vasto, mas que me interessa profundamente, existiam várias investigações paralelas que me seduziam, mas neste caso, a perda de memória foi a escolhida e a investigação especificou-se mesmo em doença de Alzheimer. Posso aprender investigando um bocadinho mais como é que outras áreas constroem um entendimento desse assunto.
Os meus objectivos obviamente são sempre artísticos, essencialmente são compreender o meu processo de trabalho. A minha proposta é, como é que eu uso as estratégias de representação que a ciência usa - o tipo de exercícios da Neuropsicologia, por exemplo, aquele tipo de testes de aferição da capacidade cognitiva, capacidade de memória do paciente, o tipo de redução de escala que usa a Medicina Molecular - como é que utilizo essa informação, esses métodos, as metáforas, por exemplo, para através da instalação artística evocar a memória autobiográfica. Como é que eu pego na parte visual dos testes que eles fazem? Eu filmo e fotografo os gestos dos cientistas, dos neurologistas da equipa auxiliar médica e dos pacientes nas procuras paralelas de perceberem e lidarem com a condição. Filmo-me a mim própria no atelier submetendo-me a testes de avaliação neuropsicológica idênticos ao que os pacientes fazem; depois utilizo esses registos para tentar fazer uma interpretação, evocando a própria natureza do funcionamento da memória biográfica. Como é que se evoca estas meias verdades utilizando as ferramentas da ciência que depois nos apresenta uns textos tão objectivos. O outro lado é como é que eu os desafio a olhar para o trabalho que fazem de uma forma muito mais visual.
Como é que são as interacções com os laboratórios e os cientistas? Como é que elas contribuem para o seu trabalho?
São excelentes. Os laboratórios são espaços físicos e sociais em que há hierarquias e protocolos. Não são exactamente iguais as interacções nos dois grupos, provavelmente só por minha responsabilidade porque, como é para mim mais fácil partilhar a linguagem do grupo da Demência, que lida mais com os pacientes com o lado social, o lado da história clínica e pessoal. É mais poderoso para mim, talvez o contacto directo com o paciente, por ser um lado mais humanamente intenso onde a doença não está fragmentada e mediada por protocolos científicos e estratégias de arquivos. Mas a relação é excelente, toda a gente muito cooperante e interessada em ver resultados.
O que é que a interessa, artisticamente, na doença de Alzheimer?
Artisticamente, numa doença, é essencialmente a representação a nível não médico: como é que a doença é representada na sociedade? A doença de Alzheimer é uma doença que está ainda sub-representada culturalmente; o lado dramático da situação, digo, que não precisa de ser lamechas, mas é um lado complexo, muito denso. O lado em que a separação entre os conceitos, os objectos e as imagens, é progressivamente aumentado e em que as pessoas se tornam dependentes de uma tradução do mundo permanente. Os modelos existentes ou são demasiado assentes em condutas moralizadoras de comportamento para com os dependentes, ou são herméticas, fechadas num discurso científico inacessível ao grande público.
Durante a semana de 21 a 25 de Março recriou o seu atelier no átrio do Edifício Egas Moniz. Qual era o objectivo e como correu a interacção com os investigadores e estudantes?
Queria ver como é que os objectos, por exemplo uma caixinha de petri, sai da porta do laboratório e vai para um sitio que é um átrio, (átrio ao pé de bar), explorar onde se perde a fronteira da associação exclusivamente científica ao objecto. Ao mesmo tempo, achei que era uma forma mais democrática de sub-repticiamente introduzir o meu projecto no tecido comunitário do edifício. Há um lado mais sociológico, que é este lado relacional que as peças têm de chegar aos funcionários do edifício, que tratam da manutenção, da parte audiovisual, dos animais, etc., e que nunca têm tempo de perceber o que é que acontece dentro de cada laboratório ou das comunicações de auditório. A reconstituição aqui do meu estúdio serviu um bocadinho para trazer a complexidade das várias vias que chegam ao meu estudo e que depois são filtradas e que se traduzem. Quando eu mostro o meu trabalho, mostro uma depuração deste universo em circulação numa instalação. A maior parte das vezes vídeo ou fotografia, que lida com o espaço-tempo daquele local, com o contexto daquele local estendendo-o ao do local de apresentação e ao tempo do espectador. Assim subverti um pouco a lógica do estudo científico normalizador e fechado como um atelier de artista ao olhar do publico e os resultados de ambas as acções em contexto expositivo específicos para públicos seleccionado. Aqui a lógica da rede de circulação de objectos, pessoas, conceitos e relações entre todos, proposta por Latour, foi desmontada durante uma semana.
Se nós tivéssemos feito uma campanha de sensibilização antes, se tivéssemos uma placa muito explícita a dizer “se tiver alguma dúvida pergunte”, acho que tinha havido mais perguntas. Havia curiosidade, mas não demasiadas perguntas, porque nós não interferimos. Houve pessoas engraçadas que acharam que estavam a ser submetidas a um estudo. E que eu era uma espécie de isco para que o comportamento delas fosse estudado. Depois também houve várias pessoas daqui, desde funcionários até investigadores, que estiveram a fazer perguntas muito declaradamente. Quando me levantava e saia do espaço, mais pessoas se aproximavam.
Como é que os cientistas das unidades que a acolhem e os doentes com quem interage vêm o seu trabalho?
De uma forma positiva. Têm consciência que é uma outra dimensão daquilo que fazem. Que não vem opor-se àquilo que eles estão a fazer, não é meu objectivo desafiar o entendimento que a ciência tem de si própria nem que a sociedade tem da ciência, mas posso ajudar a extendê-lo. Acho que toda a gente beneficia de um outro olhar sobre aquilo que faz. O meu próprio exercício de produção é uma produção-investigação. Obriga-me à auto-reflexibilidade: eu tenho que olhar para o que faço, questionar, inserir num contexto que os outros constroem para validar aquilo que faço enquanto investigação. Acredito que a arte pode trazer informação paradoxal e psicológica, despoletando debates acerca da investigação científica que ultrapassa as re-apresentações estetizadas das suas imagens ou os documentários.
Unidade de Comunicação e Formação
Instituto de Medicina Molecular
http://www.imm.ul.pt
Quem passou pelo átrio do Edifício Egas Moniz durante a semana de 21 a 25 de Março não ficou indiferente à instalação da artista residente no Instituto de Medicina Molecular (IMM) e no Hospital de Santa Maria (HSM), Maria Manuela Lopes.
“Atuando e re-atuando o arquivo” é o nome da instalação que a artista fez no IMM e que permitiu a todos os que passavam pelo piso 01 do EEM assistir aos processos de trabalho e interagir com a artista. Maria Manuela Lopes recriou ali o seu atelier, que foi o seu local de trabalho durante o tempo da instalação.
Maria Manuela Lopes está em residência artística no Instituto de Medicina Molecular e no Hospital de Santa Maria, onde desenvolve o caso de estudo do seu Doutoramento. A artista interessa-se pelo tema da memória e colabora com a Unidade de Neurociências Celular e Molecular e a Unidade Neurológica de Investigação Clínica, Grupo de Demências, do IMM com extensão no Hospital de Santa Maria. O tema da perda da memória, especificamente através da doença de Alzheimer é abordado pelo reactuar das estratégias de representação científicas. Fomos conhecer melhor o seu trabalho.
Como é o seu percurso artístico?
Sou formada em Artes Plásticas, Escultura, na Escola de Belas Artes do Porto. Depois vim para Lisboa, comecei a trabalhar e, passados dois anos fui para Inglaterra fazer um Mestrado em Artes Plásticas. Fui intencionalmente para o Goldsmiths College, porque queria acabar com a barreira disciplinar. Não queria fazer o Mestrado numa escola que me obrigasse outra vez a escolher uma área (pintura/escultura/fotografia).
Achava que o meio era definido pela obra e que não era necessário estar a espartilhar à partida. Lá, comecei a trabalhar com vídeo e fotografia. Depois voltei para Lisboa e comecei a dar aulas. Tenho exposto desde os anos 90 instalação e escultura. Desde 1998, muito na área da instalação multimédia. Em 2006, fui como artista residente para a Ectopia, um laboratório de experimentação artística a iniciar actividade no Instituto Gulbenkian de Ciência. Esse projecto, Ethology I, em que explorava a questão das fronteiras da ideia de ‘self’, trouxe-me ao IMM, aos laboratórios de Imunologia. Entretanto abriu o programa de residências artísticas do DGArtes e Ciência Viva em conjunto e fui para o IBMC, no Porto, produzindo ai o CAGE SSI.
Como é que esta residência no Instituto de Medicina Molecular e no Hospital de Santa Maria se integra no seu trabalho artístico? Como é que surgiu?
Este projecto específico foi surgindo com a necessidade de fazer um Doutoramento. Então decidi mais uma vez que tinha de fazer um doutoramento que implicasse pensar, fazendo, e tendo uma base projectual forte. Descobri uma pessoa em Inglaterra (Kathleen Rogers) que trabalha na fronteira das artes, ciência e tecnologia, explorando temas da consciência e da mitologia, que me fascinam. Entretanto apresentei também o meu projecto inicial ao Prof. João Lobo Antunes, que também me deu apoio e começámos a trabalhar; explorando as investigações que existiam a nível da memória, aqui no Instituto que, permitissem que eu fizesse o doutoramento por projecto ligado à universidade Inglesa. Sendo um campo muito vasto, mas que me interessa profundamente, existiam várias investigações paralelas que me seduziam, mas neste caso, a perda de memória foi a escolhida e a investigação especificou-se mesmo em doença de Alzheimer. Posso aprender investigando um bocadinho mais como é que outras áreas constroem um entendimento desse assunto.
Os meus objectivos obviamente são sempre artísticos, essencialmente são compreender o meu processo de trabalho. A minha proposta é, como é que eu uso as estratégias de representação que a ciência usa - o tipo de exercícios da Neuropsicologia, por exemplo, aquele tipo de testes de aferição da capacidade cognitiva, capacidade de memória do paciente, o tipo de redução de escala que usa a Medicina Molecular - como é que utilizo essa informação, esses métodos, as metáforas, por exemplo, para através da instalação artística evocar a memória autobiográfica. Como é que eu pego na parte visual dos testes que eles fazem? Eu filmo e fotografo os gestos dos cientistas, dos neurologistas da equipa auxiliar médica e dos pacientes nas procuras paralelas de perceberem e lidarem com a condição. Filmo-me a mim própria no atelier submetendo-me a testes de avaliação neuropsicológica idênticos ao que os pacientes fazem; depois utilizo esses registos para tentar fazer uma interpretação, evocando a própria natureza do funcionamento da memória biográfica. Como é que se evoca estas meias verdades utilizando as ferramentas da ciência que depois nos apresenta uns textos tão objectivos. O outro lado é como é que eu os desafio a olhar para o trabalho que fazem de uma forma muito mais visual.
Como é que são as interacções com os laboratórios e os cientistas? Como é que elas contribuem para o seu trabalho?
São excelentes. Os laboratórios são espaços físicos e sociais em que há hierarquias e protocolos. Não são exactamente iguais as interacções nos dois grupos, provavelmente só por minha responsabilidade porque, como é para mim mais fácil partilhar a linguagem do grupo da Demência, que lida mais com os pacientes com o lado social, o lado da história clínica e pessoal. É mais poderoso para mim, talvez o contacto directo com o paciente, por ser um lado mais humanamente intenso onde a doença não está fragmentada e mediada por protocolos científicos e estratégias de arquivos. Mas a relação é excelente, toda a gente muito cooperante e interessada em ver resultados.
O que é que a interessa, artisticamente, na doença de Alzheimer?
Artisticamente, numa doença, é essencialmente a representação a nível não médico: como é que a doença é representada na sociedade? A doença de Alzheimer é uma doença que está ainda sub-representada culturalmente; o lado dramático da situação, digo, que não precisa de ser lamechas, mas é um lado complexo, muito denso. O lado em que a separação entre os conceitos, os objectos e as imagens, é progressivamente aumentado e em que as pessoas se tornam dependentes de uma tradução do mundo permanente. Os modelos existentes ou são demasiado assentes em condutas moralizadoras de comportamento para com os dependentes, ou são herméticas, fechadas num discurso científico inacessível ao grande público.
Durante a semana de 21 a 25 de Março recriou o seu atelier no átrio do Edifício Egas Moniz. Qual era o objectivo e como correu a interacção com os investigadores e estudantes?
Queria ver como é que os objectos, por exemplo uma caixinha de petri, sai da porta do laboratório e vai para um sitio que é um átrio, (átrio ao pé de bar), explorar onde se perde a fronteira da associação exclusivamente científica ao objecto. Ao mesmo tempo, achei que era uma forma mais democrática de sub-repticiamente introduzir o meu projecto no tecido comunitário do edifício. Há um lado mais sociológico, que é este lado relacional que as peças têm de chegar aos funcionários do edifício, que tratam da manutenção, da parte audiovisual, dos animais, etc., e que nunca têm tempo de perceber o que é que acontece dentro de cada laboratório ou das comunicações de auditório. A reconstituição aqui do meu estúdio serviu um bocadinho para trazer a complexidade das várias vias que chegam ao meu estudo e que depois são filtradas e que se traduzem. Quando eu mostro o meu trabalho, mostro uma depuração deste universo em circulação numa instalação. A maior parte das vezes vídeo ou fotografia, que lida com o espaço-tempo daquele local, com o contexto daquele local estendendo-o ao do local de apresentação e ao tempo do espectador. Assim subverti um pouco a lógica do estudo científico normalizador e fechado como um atelier de artista ao olhar do publico e os resultados de ambas as acções em contexto expositivo específicos para públicos seleccionado. Aqui a lógica da rede de circulação de objectos, pessoas, conceitos e relações entre todos, proposta por Latour, foi desmontada durante uma semana.
Se nós tivéssemos feito uma campanha de sensibilização antes, se tivéssemos uma placa muito explícita a dizer “se tiver alguma dúvida pergunte”, acho que tinha havido mais perguntas. Havia curiosidade, mas não demasiadas perguntas, porque nós não interferimos. Houve pessoas engraçadas que acharam que estavam a ser submetidas a um estudo. E que eu era uma espécie de isco para que o comportamento delas fosse estudado. Depois também houve várias pessoas daqui, desde funcionários até investigadores, que estiveram a fazer perguntas muito declaradamente. Quando me levantava e saia do espaço, mais pessoas se aproximavam.
Como é que os cientistas das unidades que a acolhem e os doentes com quem interage vêm o seu trabalho?
De uma forma positiva. Têm consciência que é uma outra dimensão daquilo que fazem. Que não vem opor-se àquilo que eles estão a fazer, não é meu objectivo desafiar o entendimento que a ciência tem de si própria nem que a sociedade tem da ciência, mas posso ajudar a extendê-lo. Acho que toda a gente beneficia de um outro olhar sobre aquilo que faz. O meu próprio exercício de produção é uma produção-investigação. Obriga-me à auto-reflexibilidade: eu tenho que olhar para o que faço, questionar, inserir num contexto que os outros constroem para validar aquilo que faço enquanto investigação. Acredito que a arte pode trazer informação paradoxal e psicológica, despoletando debates acerca da investigação científica que ultrapassa as re-apresentações estetizadas das suas imagens ou os documentários.
Unidade de Comunicação e Formação
Instituto de Medicina Molecular
http://www.imm.ul.pt