Espaço Ciência
A detecção precoce e intervenções breves de consumo nocivo de álcool em Cuidados de Saúde Primários
Identificar consumos de risco e nocivo de Álcool
São várias as consequências individuais e sociais causadas pelo consumo nocivo de álcool: mortalidade, incapacidade (devido aos acidentes e doenças que provoca), falta de produtividade no trabalho, violência familiar e criminalidade, entre outras. Sendo assim, afigura-se necessário detectar quer o consumo de risco quer o nocivo, constituindo os Cuidados de Saúde Primários, o contexto ideal para que a identificação destas situações seja possível, assim como a intervenção dirigida em função do nível de complexidade e gravidade do problema. No que se refere aos casos de dependência em função de alguns critérios definidos, devem ser devidamente referenciados aos Cuidados de Saúde Secundários.
Como a maioria de doentes com consumo de risco e nocivo não são conhecidos pelo seu médico (Rush et al. 2003), seria pelo menos necessária a detecção em determinados grupos de doentes ou situações clínicas ou sociais específicas. A selecção destes grupos pode ser feita tendo como base, relevância epidemiológica no que respeita aos consumos, ou tendo como base os riscos para a saúde que o álcool representa como sejam grávidas, adolescentes ou jovens adultos.
Para implementar estes hábitos de detecção do consumo de álcool nos Cuidados de Saúde Primários e para optimizar os resultados, as questões relacionadas com o álcool, poderão ser englobadas em exames gerais de saúde ou em perguntas relacionadas com hábitos e estilos de vida, tais como exercício físico, hábitos alimentares ou hábitos tabágicos.
O consumo de risco e nocivo de álcool pode ser detectado através de instrumentos de detecção, questionários breves que podem ser auto-preenchidos, ou cujas questões podem ser colocadas pelo profissional de saúde.
A investigação tem demonstrado, que alguns questionários detectam cerca do dobro dos consumidores excessivos encontrados nas consultas médicas de rotina e três vezes mais dos revelados por algumas provas laboratoriais (Kaner et al. 1999).
A identificação do tipo de consumos é fundamental já que está demonstrado que se os consumidores excessivos forem sujeitos a Intervenções Breves ou aceitarem um plano de tratamento, reduzem os níveis de consumo, sendo tanto mais eficazes quanto mais cedo for iniciada a intervenção clínica (Bien et al. 1993).
AUDIT (Alcohol Use Disorders Identification Test)
Este questionário foi construído de forma a ser adequado aos Cuidados de Saúde Primários, permitindo detectar níveis variados de consumo, desde o consumo de risco, nocivo e ainda a dependência.
A utilização do AUDIT original encontrou uma sensibilidade de 97% e uma especificidade de 78% para consumo de risco e uma sensibilidade de 85% e especificidade de 85% para consumo nocivo quando um ponto de corte (cut-off) de maior ou igual a oito foi usado (Saunders et al.1993).
Uma variedade de subpopulações, foi estudada com doentes de Cuidados de Saúde Primários (Piccinelli et al. 1993) nos serviços de emergência (Cherpitel et al. 1995), consumidores de substâncias ilícitas (Skipsey et al. 1997), desempregados (Claussen et al. 1993), estudantes universitários (Fleming et al.1991), doentes idosos hospitalares (Powell et al. 1994) e pessoas de estrato socioeconómico baixo (Isaacson et al. 1994). O AUDIT teve boa discriminação numa variedade de contextos, mas é mais adequado para a detecção de consumidores de risco e nocivo e está essencialmente direccionado para os Cuidados de Saúde Primários.
Alguns estudos consideraram a relação entre as pontuações do AUDIT e indicadores de futuros problemas relacionados com o álcool (Claussen et al. 1993).
O AUDIT C (Aertgeerts et al. 2001) inclui só as três primeiras questões de quantificação do AUDIT.
Gordon (Gordon, et al. 2001) utilizaram AUDIT C para identificar consumo de risco em Cuidados de Saúde Primários. Em geral, o AUDIT C tem uma sensibilidade de 54 a 98% e uma especificidade de 57 a 93%.
Gual et al. compararou o AUDIT C com o diagnóstico clínico do consumo de risco realizado por médicos que acompanhavam doentes em unidades de Cuidados de Saúde Primários. Para os homens, o melhor score de cut-off era de 5 (sensibilidade 92,4%; especificidade 74,3%) e nas mulheres o melhor score de cut-off era de 4 (sensibilidade 90,9%; e especificidade 68,4%).
Não há evidência que confirme que a identificação dos consumidores de risco ou nocivos, provoque efeitos adversos tal como desconforto ou insatisfação por parte dos doentes.
Intervenção breve nos consumos de risco e nocivo de Álcool
Existem várias meta-análises e/ou revisões sistemáticas, sobre a investigação da efectividade das intervenções breves, utilizando objectivos e métodos diferentes (Moyer et al. 2002; Whitlock et al. 2004; Cuijpers et al 2004; Bertholet et al. 2005; Kanner et al. 2007). Todos eles chegaram a conclusões que favorecem a efectividade das intervenções breves em reduzir o consumo de álcool até baixos níveis de risco, entre indivíduos com consumos de álcool de risco e nocivos após ter sido feita a detecção precoce.
Os profissionais dos cuidados primários de saúde podem oferecer a todos os pacientes identificados com consumos de risco ou nocivos de álcool, uma intervenção breve que pode ser descrita com base em cinco passos, (os 5-As do inglês): avaliação do consumo de álcool, com recurso de um instrumento de identificação breve, seguido de uma avaliação clínica; aconselhamento dos pacientes a reduzir o consumo de álcool; acordar e estabelecer os objectivos individuais para reduzir o consumo ou iniciar a abstinência (se indicada); assistir os pacientes no desenvolvimento de motivação ou de suporte necessário a mudanças comportamentais; assegurar seguimento incluindo o encaminhamento dos pacientes dependentes para um tratamento especializado (US Preventive Services Task Force 2004).
Estes modelos de Intervenção Breve, baseados na entrevista motivacional, são intervenções com uma duração média de 5 a 10 minutos e podem decorrer em 3 ou 4 sessões, que têm por finalidade modificar o comportamento de risco de um indivíduo no sentido da redução dos seus níveis de consumo de álcool.
Se o doente está a fazer progressos, dever-se-á prever a periodicidade da intervenção numa visita de 6/6 meses ou anual. Porém, se o doente tem dificuldade em cumprir as metas a que se propôs, poder-se-á reconsiderar a intervenção feita e prever uma referenciação.
Comparado com um grupo de controlo, as Intervenções Breves podem prevenir uma em cada três mortes que ocorram por Problemas Ligados ao consumo de Álcool (Cuijpers et al 2004).
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A Medicina Geral e Familiar e a Abordagem do Consumo de Álcool
Detecção e Intervenções Breves no âmbito dos Cuidados de Saúde Primários
RESUMO DA TESE DE DOUTORAMENTO
Portugal é um dos países que tem mantido um dos mais elevados consumos per capita de bebidas alcoólicas da Europa e do Mundo, originando Problemas Ligados ao Álcool (PLA) que constituem uma repercussão importante na saúde pública.
Numerosos estudos demonstram que existe uma relação dose-resposta entre o consumo de álcool e a frequência e gravidade de várias doenças. Deste modo, a maiores níveis de consumo correspondem taxas de mortalidade e morbilidade mais elevadas.
Após a detecção dos consumos, vários estudos sugerem que a detecção precoce e as intervenções breves, consistindo em aconselhamento de médicos de família sobre o consumo de álcool e o fornecimento de informação no âmbito da prática clínica correspondem, em termos de evidência, ao tipo de abordagem mais eficaz no consumo de risco e nocivo a nível dos Cuidados de Saúde Primários. A tese de doutoramento, numa lógica de investigação-acção, teve como objectivos avaliar a efectividade da detecção precoce e intervenções breves na abordagem junto dos doentes detectados como consumidores de risco e nocivo de álcool e confirmar se a formação de médicos em Intervenções Breves para abordar os Problemas Ligados ao Álcool (PLA) contribui, de algum modo, para mudar atitudes dos mesmos em relação aos consumidores de risco e nocivo de álcool. O trabalho teve duas fases distintas. Uma fase de caracterização e aferição de um questionário de percepção de atitudes numa amostra aleatória de médicos e outra fase, com duas componentes, por um lado a percepção de atitudes dos médicos de família em relação ao consumo de álcool dos seus doentes e por outro a detecção e avaliação do nível de consumo de álcool pelos doentes através da aplicação do AUDIT. Houve algumas mudanças de atitudes dos médicos do grupo experimental, nomeadamente no que se refere a motivação, auto-estima e satisfação quando comparados com os médicos do grupo de controlo. Observou-se que 21% dos doentes tinham consumo de risco (AUDIT C). Ser seguido por um médico do grupo experimental (relativamente a ser seguido por um médico do grupo de controlo), foi favorável à redução dos níveis de consumo por parte dos doentes com consumo de risco e nocivo de álcool. Os resultados relativos à relação entre médicos e doentes, apontam ainda no sentido de uma melhor atitude dos médicos em relação aos doentes com PLA poder influenciar a diminuição do consumo de álcool por estes doentes no momento inicial e final do estudo.
Cristina Ribeiro
Docente da Unidade de Medicina Geral e Familiar
Instituto de Medicina Preventiva
Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa
cristina.mpr@sapo.pt
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