Espaço Ciência
Modulação do transporte de GABA – Efeito da adenosina sobre a recaptação de GABA mediada por GAT-1 e GAT-3
A homeostasia do sistema nervoso central resulta da existência de um equilíbrio entre a transmissão excitatória, mediada por glutamato e a transmissão inibitória, mediada pelo ácido gama-aminobutírico (GABA). O controlo da concentração dos neurotransmissores na sinapse bem como a limitação temporal e espacial das suas acções é fundamental para assegurar uma transmissão fidedigna. Este controlo é assegurado por transportadores específicos expressos no terminal pré-sináptico e nos astrócitos que envolvem a sinapse.
No que diz respeito ao GABA, foram identificados, até ao momento, quatro transportadores (GATs): GAT-1, GAT-2, GAT-3 e BGT-1. Os principais responsáveis pela recaptação de GABA são o GAT-1 e o GAT-3. O GAT-1 é o principal transportador neuronal, sendo também expresso nos astrócitos, os quais expressam principalmente GAT-3 (1).
Assim, uma vez na sinapse, o GABA pode ser recaptado directamente para o terminal pré-sináptico, onde será armazenado em vesículas exocíticas - estando assim rapidamente disponível para ser novamente libertado -, ou ser reencaminhado para os astrócitos, onde será metabolizado em glutamato, que é depois convertido em glutamina. Esta é, então, transportada até ao neurónio pré-sináptico, onde depois é convertida novamente em glutamato, que é posteriormente metabolisado em GABA (2).
A recaptação de GABA é, sem dúvida, uma vantagem energética, pois permite a reutilização quase imediata do neurotransmissor, permitindo à célula continuar a responder eficazmente (através da libertação de GABA) mesmo em períodos de elevada actividade sináptica. Por outro lado, o facto da recaptação de GABA poder ser realizada quer para o terminal pré-sináptico quer para os astrócitos envolventes permite uma resposta integrada do sistema a diferentes situações. Assim, em situações de elevada actividade inibitória, o GABA será preferencialmente recaptado para o terminal pré-sináptico, o que permite manter uma frequência elevada de actividade GABAérgica sem esgotamento das reservas pré-sinápticas. Já em situações predominantemente excitatórias, o GABA será reencaminhado para as células da glia, sendo por isso retardado o seu reempacotamento em vesículas, estando a transmissão glutamatérgica facilitada em consequência da menor disponibilidade de GABA. Fica assim claro que a regulação dos transportadores de GABA assume especial importância no estudo da função cerebral.
Neste âmbito, a adenosina assume especial importância. Este conhecido neuromodulador pode ser libertado pelos neurónios ou pelas células da glia, podendo ainda ter origem extracelular, por catabolismo do ATP. A adenosina, através da activação dos receptores de alta-afinidade, A1 e A2A, modula a actividade do sistema nervoso através de acções pré, pós e não-sinápticas (3).
Tendo como ponto de partida o efeito modulador da adenosina através da activação dos receptores A2A, sobre libertação de GABA no hipocampo (4), este trabalho teve como principal objectivo a identificação de um possível efeito modulador da adenosina sobre os transportadores GAT-1 e GAT-3.
No que diz respeito à recaptação de GABA mediada por GAT-1 nos terminais pré-sinápticos (sinaptossomas), verificou-se que a remoção da adenosina endógena -através da incubação dos sinaptossomas com adenosina desaminase (ADA), um enzima que converte a adenosina em inosina, um metabolito inactivo nos receptores de adenosina -, diminuia a recaptação de GABA mediada pelo GAT-1. Esta diminuição foi mimetizada pelo uso do antagonista selectivo dos receptores A2A. A activação dos receptores A2A pelo agonista selectivo promoveu o transporte de GABA. Foram ainda testados agonistas e antagonistas selectivos para outros receptores de adenosina, que não tiveram qualquer efeito sobre o transporte. Por estudos de biotinilação foi possível mostrar que o efeito dos receptores A2A se deve a um aumento da expressão membranar de GAT-1. O bloqueio da proteína cinase A (PKA) preveniu totalmente o efeito do agonista dos receptores A2A, enquanto que a activação da adenilato ciclase (AC) mimetizou a acção deste agonista. Assim, os resultados indicam que a adenosina, por activação dos receptores A2A promove a recaptação de GABA mediada por GAT-1, através da activação da proteína cinase A (PKA). Este aumento da recaptação resulta do aumento da expressão de GAT-1 na membrana (5).
Considerando a recaptação de GABA mediada pelos astrócitos, verificou-se que a cloro-adenosina (CADO), um análogo da adenosina tem um efeito bifásico sobre o transporte: a baixas concentrações (0,3µM) inibe o transporte enquanto que a concentrações mais elevadas (3 e 10 µM) promove a recaptação de GABA. Quando se removeu a adenosina endógena, verificou-se uma redução da recaptação de GABA. A realização de ensaios de recaptação com fármacos selectivos para os receptores de adenosina permitiu a identificação dos receptores envolvidos. Assim, o agonista selectivo dos receptores A2A promoveu a recaptação de GABA mediada por GAT-1 e GAT-3. Curiosamente, este efeito para além de ter sido bloqueado pelo antagonista selectivos dos receptores A2A foi também prevenido pelo bloqueio dos receptores A1. Por seu lado, a activação dos receptores A1 levou à diminuição da recaptação de GABA. Este efeito foi totalmente bloqueado quer pelo antagonista dos receptores A1 quer pelo antagonista dos receptores A2A. Estes resultados indicam a existência de uma interacção entre os receptores A1 e A2A nos astrócitos. Esta interacção foi confirmada por ensaios de bioluminesce ressonance energy transfer (BRET) e de binding que mostraram que os receptores A1 e A2A estão, de facto, heteromerizados nos astrócitos. Assim, os resultados sugerem que a adenosina tem um efeito bifásico sobre a recaptação de GABA em astrócitos mediado pelos receptores A1 e A2A que se encontram sob a forma de heterómero. A baixa concentração, a adenosina activa preferencialmente os receptores A1, diminuindo a recaptação de GABA, enquanto que, a concentrações superiores, a adenosina através da activação dos receptores A2A promove a recaptação de GABA em astrócitos.
Considerando a sinapse tripartida em conjunto, os resultados sugerem que a baixas concentrações a adenosina conduz preferencialmente o GABA para o terminal pré-sináptico, favorecendo a transmissão fásica inibitória e impedindo o esgotamento das reservas pré-sinápticas. Concentrações mais elevadas de adenosina aumentam a recaptação de GABA pelos astrócitos, o que diminui a inibição tónica e permite o aumento da excitabilidade. A adenosina apresenta-se, assim, mais uma vez, como um modelador sofisticado pois, dependendo da concentração, modela diferentemente a recaptação de GABA, e consequentemente a transmissão sináptica.
Sofia Cristóvão Ferreira
Instituto de Farmacologia e Neurociências, Faculdade de Medicina de Lisboa
Unidade de Neurociências, Instituto de Medicina Molecular
aferreira@fm.ul.pt
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Bibliografia
(1) Borden et al. (1996) Neurochem Int. 29, 335-356.
(2) Bak et al. (2006) J Neurochem. 98, 641-653.
(3) Sebastião e Ribeiro (2000) Trends Pharmacol Sci. 21, 341-346.
(4) Cunha e Ribeiro (2000) Neuropharmacology. 39, 1156-1167.
(5) Cristóvão-Ferreira et al. (2009) J Neurochem. 109, 336-347.
No que diz respeito ao GABA, foram identificados, até ao momento, quatro transportadores (GATs): GAT-1, GAT-2, GAT-3 e BGT-1. Os principais responsáveis pela recaptação de GABA são o GAT-1 e o GAT-3. O GAT-1 é o principal transportador neuronal, sendo também expresso nos astrócitos, os quais expressam principalmente GAT-3 (1).
Assim, uma vez na sinapse, o GABA pode ser recaptado directamente para o terminal pré-sináptico, onde será armazenado em vesículas exocíticas - estando assim rapidamente disponível para ser novamente libertado -, ou ser reencaminhado para os astrócitos, onde será metabolizado em glutamato, que é depois convertido em glutamina. Esta é, então, transportada até ao neurónio pré-sináptico, onde depois é convertida novamente em glutamato, que é posteriormente metabolisado em GABA (2).
A recaptação de GABA é, sem dúvida, uma vantagem energética, pois permite a reutilização quase imediata do neurotransmissor, permitindo à célula continuar a responder eficazmente (através da libertação de GABA) mesmo em períodos de elevada actividade sináptica. Por outro lado, o facto da recaptação de GABA poder ser realizada quer para o terminal pré-sináptico quer para os astrócitos envolventes permite uma resposta integrada do sistema a diferentes situações. Assim, em situações de elevada actividade inibitória, o GABA será preferencialmente recaptado para o terminal pré-sináptico, o que permite manter uma frequência elevada de actividade GABAérgica sem esgotamento das reservas pré-sinápticas. Já em situações predominantemente excitatórias, o GABA será reencaminhado para as células da glia, sendo por isso retardado o seu reempacotamento em vesículas, estando a transmissão glutamatérgica facilitada em consequência da menor disponibilidade de GABA. Fica assim claro que a regulação dos transportadores de GABA assume especial importância no estudo da função cerebral.
Neste âmbito, a adenosina assume especial importância. Este conhecido neuromodulador pode ser libertado pelos neurónios ou pelas células da glia, podendo ainda ter origem extracelular, por catabolismo do ATP. A adenosina, através da activação dos receptores de alta-afinidade, A1 e A2A, modula a actividade do sistema nervoso através de acções pré, pós e não-sinápticas (3).
Tendo como ponto de partida o efeito modulador da adenosina através da activação dos receptores A2A, sobre libertação de GABA no hipocampo (4), este trabalho teve como principal objectivo a identificação de um possível efeito modulador da adenosina sobre os transportadores GAT-1 e GAT-3.
No que diz respeito à recaptação de GABA mediada por GAT-1 nos terminais pré-sinápticos (sinaptossomas), verificou-se que a remoção da adenosina endógena -através da incubação dos sinaptossomas com adenosina desaminase (ADA), um enzima que converte a adenosina em inosina, um metabolito inactivo nos receptores de adenosina -, diminuia a recaptação de GABA mediada pelo GAT-1. Esta diminuição foi mimetizada pelo uso do antagonista selectivo dos receptores A2A. A activação dos receptores A2A pelo agonista selectivo promoveu o transporte de GABA. Foram ainda testados agonistas e antagonistas selectivos para outros receptores de adenosina, que não tiveram qualquer efeito sobre o transporte. Por estudos de biotinilação foi possível mostrar que o efeito dos receptores A2A se deve a um aumento da expressão membranar de GAT-1. O bloqueio da proteína cinase A (PKA) preveniu totalmente o efeito do agonista dos receptores A2A, enquanto que a activação da adenilato ciclase (AC) mimetizou a acção deste agonista. Assim, os resultados indicam que a adenosina, por activação dos receptores A2A promove a recaptação de GABA mediada por GAT-1, através da activação da proteína cinase A (PKA). Este aumento da recaptação resulta do aumento da expressão de GAT-1 na membrana (5).
Considerando a recaptação de GABA mediada pelos astrócitos, verificou-se que a cloro-adenosina (CADO), um análogo da adenosina tem um efeito bifásico sobre o transporte: a baixas concentrações (0,3µM) inibe o transporte enquanto que a concentrações mais elevadas (3 e 10 µM) promove a recaptação de GABA. Quando se removeu a adenosina endógena, verificou-se uma redução da recaptação de GABA. A realização de ensaios de recaptação com fármacos selectivos para os receptores de adenosina permitiu a identificação dos receptores envolvidos. Assim, o agonista selectivo dos receptores A2A promoveu a recaptação de GABA mediada por GAT-1 e GAT-3. Curiosamente, este efeito para além de ter sido bloqueado pelo antagonista selectivos dos receptores A2A foi também prevenido pelo bloqueio dos receptores A1. Por seu lado, a activação dos receptores A1 levou à diminuição da recaptação de GABA. Este efeito foi totalmente bloqueado quer pelo antagonista dos receptores A1 quer pelo antagonista dos receptores A2A. Estes resultados indicam a existência de uma interacção entre os receptores A1 e A2A nos astrócitos. Esta interacção foi confirmada por ensaios de bioluminesce ressonance energy transfer (BRET) e de binding que mostraram que os receptores A1 e A2A estão, de facto, heteromerizados nos astrócitos. Assim, os resultados sugerem que a adenosina tem um efeito bifásico sobre a recaptação de GABA em astrócitos mediado pelos receptores A1 e A2A que se encontram sob a forma de heterómero. A baixa concentração, a adenosina activa preferencialmente os receptores A1, diminuindo a recaptação de GABA, enquanto que, a concentrações superiores, a adenosina através da activação dos receptores A2A promove a recaptação de GABA em astrócitos.
Considerando a sinapse tripartida em conjunto, os resultados sugerem que a baixas concentrações a adenosina conduz preferencialmente o GABA para o terminal pré-sináptico, favorecendo a transmissão fásica inibitória e impedindo o esgotamento das reservas pré-sinápticas. Concentrações mais elevadas de adenosina aumentam a recaptação de GABA pelos astrócitos, o que diminui a inibição tónica e permite o aumento da excitabilidade. A adenosina apresenta-se, assim, mais uma vez, como um modelador sofisticado pois, dependendo da concentração, modela diferentemente a recaptação de GABA, e consequentemente a transmissão sináptica.
Sofia Cristóvão Ferreira
Instituto de Farmacologia e Neurociências, Faculdade de Medicina de Lisboa
Unidade de Neurociências, Instituto de Medicina Molecular
aferreira@fm.ul.pt
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Bibliografia
(1) Borden et al. (1996) Neurochem Int. 29, 335-356.
(2) Bak et al. (2006) J Neurochem. 98, 641-653.
(3) Sebastião e Ribeiro (2000) Trends Pharmacol Sci. 21, 341-346.
(4) Cunha e Ribeiro (2000) Neuropharmacology. 39, 1156-1167.
(5) Cristóvão-Ferreira et al. (2009) J Neurochem. 109, 336-347.
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