Espaço Ciência
Meta-modulação da transmissão excitatória no hipocampo de rato pela adenosina: da situação fisiológica ao insulto hipóxico/isquémico
Foi em 1791 que Luigi Galvani nos deu a conhecer a natureza eléctrica do impulso nervoso na junção neuro-muscular da rã, com a publicação da sua obra magistral, De viribus electricitatis in motu musculari commentarius [1]. Fortemente influenciada pelo trabalho de Galvani, a comunidade científica defendeu o conceito de bio-electricidade até ao início do século XX, altura em que as ilustrações de Ramón y Cajal colocaram em causa a possibilidade de transmissão eléctrica através dos intervalos discerníveis entre neurónios comunicantes. Subsequentemente, as experiências de Otto Loewi em preparações de nervo vago viriam a conduzir à identificação do primeiro neurotransmissor, a acetilcolina [2]. Nascia assim o conceito de neurotransmissor, uma substância química endógena capaz de assegurar a transmissão fidedigna de informação entre um neurónio e outra célula do corpo. O reconhecimento do glutamato enquanto principal neurotransmissor excitatório aconteceria somente na década de 50, tendo Jeffrey Watkins contribuido com a identificação de diferentes tipos de receptores ionotrópicos para o glutamato [3]. Destes, os receptores do tipo AMPA são os principais mediadores da transmissão excitatória rápida no sistema nervoso central. Ao permitir variar a capacidade de resposta do neurónio pós-sináptico ao glutamato libertado pelo neurónio aferente, a regulação da função AMPA assegura alterações significativas na eficiência da transmissão sináptica, inerentes à maturação de redes neuronais com o desenvolvimento, bem como a fenómenos de plasticidade sináptica. Estes receptores são ainda moléculas-chave em situações de excitotoxicidade, de que são exemplo insultos de hipóxia ou isquémia. Nestas situações, o aumento da concentração extracelular de glutamato com sobreactivação dos seus receptores propicia a entrada desregulada de cálcio com activação de cascatas de morte celular. Infelizmente, o potencial neuroprotector conferido por antagonistas AMPA em modelos animais de isquémia cerebral não tem encontrado expressão nos ensaios clínicos até à data realizados [4]. Como alternativa, estratégias de modulação farmacológica da função AMPA poderão revelar-se de interesse terapêutico. Assim, o presente trabalho pretendeu investigar uma possível modulação da componente AMPA pós-sináptica pela adenosina, um neuromodulador ubíquo cujas múltiplas acções convergem na manutenção do equilíbrio entre o aporte e o gasto de substratos energéticos em tecidos excitáveis [5]. Com este fim, foram realizados registos de patch-clamp de correntes mediadas por receptores AMPA, em células piramidais da área CA1 do hipocampo. Particularmente propensa a expressar alterações de eficiência sináptica de acordo com os níveis de actividade, esta população neuronal é também especialmente susceptível a morte por apoptose, após isquémia. Verificou-se que a aplicação de um fármaco agonista dos receptores A2A da adenosina (CGS21680) conduzia a um aumento significativo da amplitude das correntes AMPA, perdido na presença de um inibidor da proteína cinase A (PKA). Sabe-se que a fosforilação de receptores AMPA pela PKA permite regular o seu tráfego para a membrana neuronal. Usando ensaios de biotinilação para avaliar selectivamente os níveis membranares de receptores, verificámos que estes se encontravam aumentados após tratamento com CGS21680. Seguidamente e a fim de averiguar o impacto funcional desta modulação, usou-se um protocolo de estimulação aferente de alta frequência capaz de evocar uma potenciação a longo prazo (LTP) da transmissão sináptica, considerada o substrato celular da formação de novas memórias. Observou-se uma facilitação desta forma de plasticidade após um curto tratamento com CGS21680. Adicionalmente, o bloqueio dos receptores A2A diminuiu, por si só, a magnitude da LTP, sugerindo tratar-se de um mecanismo de regulação endógeno. É assim possível inferir que, em condições de aumento súbito da adenosina extracelular proporcionadas por um exarcebamento da actividade neuronal, a activação de receptores A2A, facilita a fosforilação pela PKA de receptores AMPA – aumentando a sua disponibilidade nas reservas membranares e o seu recrutamento para a sinapse, permitindo o reforço da transmissão sináptica.
Curiosamente, estas condições de exacerbamento da actividade neuronal e acumulação extracelular de adenosina verificam-se também nas fases iniciais de insultos isquémicos. Sabe-se também que a exposição a insultos hipóxicos/isquémicos transitórios induz um aumento persistente na eficiência sináptica que partilha muitos dos mecanismos inerentes à expressão de LTP, incluindo um ganho de função pela componente AMPA pós-sináptica. Com o objectivo de investigar o envolvimento dos receptores A2A neste processo, compararam-se os efeitos de breves insultos isquémicos [6], na presença e ausência de um antagonista selectivo destes receptores (SCH58261). Tal como observado por outros autores, à inibição da transmissão sináptica pelo insulto seguiu-se uma recuperação gradual da resposta pós-sináptica, até valores significativamente acima dos iniciais. Esta forma de plasticidade induzida por isquémia foi totalmente abolida quer pelo bloqueio prévio dos receptores A2A, como pelo antagonismo de uma subclasse de receptores AMPA permeáveis ao cálcio. Estes resultados revelam assim um novo mecanismo de neuromodulação pela adenosina, evidenciando ainda novos aspectos em comum entre formas de plasticidade fisiológicas e “patológicas”. Neste contexto, será de particular interesse esclarecer o papel desempenhado pelos processos de plasticidade induzida por isquémia, já que é controverso se estes contribuem para um exacerbamento dos danos por excitotoxicidade ou se, por outro lado, participarão na formação de novos contactos sinápticos capazes de recuperar alguns dos circuitos perdidos nas regiões mais afectadas por acidentes isquémicos. Do ponto de vista da última hipótese, poderá revelar-se importante apostar em estratégias neuroregenerativas que recorram também ao uso de fármacos moduladores da plasticidade (adaptativa) despoletada por isquémia.
Os resultados descritos correspondem a parte do trabalho realizado no âmbito do projecto de tese de doutoramento da autora, recentemente submetida para apreciação pela FMUL. Todo o trabalho foi desenvolvido sob orientação dos Professores Doutores Joaquim Alexandre Ribeiro e Ana Maria Sebastião, a quem a autora expressa a sua profunda gratidão. Para consulta detalhada dos resultados, ver Dias et al., 2010 (aqui)
Raquel Baptista Dias
Instituto de Farmacologia e Neurociências, Faculdade de Medicina
Unidade de Neurociências, Instituto de Medicina Molecular
rdias@fm.ul.pt
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Bibliografia
[1] Galvani L (1791) De viribus electricitatis in motu musculari commentarius. Bon Sci Art Inst Acad Comm 7:363–418
[2] Loewi O (1921) Über humorale Übertragbarkeit der Herznerven-wirkung. Pflügers Archiv189: 239-242
[3] Curtis DR, Watkins JC (1961) Analogues of glutamic and gamma-amino-n-butyric acids having potent actions on mammalian neurones. Nature 191:1010-1011
[4] Mattes H, Carcache D, Kalkman HO, Koller M (2010) alpha-Amino-3-hydroxy-5-methyl-4-isoxazolepropionic acid (AMPA) antagonists: from bench to bedside. J Med Chem 53: 5367-5382
[5] Sebastião AM, Ribeiro JA (2000) Fine-tuning neuromodulation by adenosine. Trends Pharmacol Sci 21: 341-634
[6] Rossi DJ, Oshima T, Attwell D (2000) Glutamate release in severe brain ischaemia is mainly by reversed uptake. Nature 403: 316-321
Curiosamente, estas condições de exacerbamento da actividade neuronal e acumulação extracelular de adenosina verificam-se também nas fases iniciais de insultos isquémicos. Sabe-se também que a exposição a insultos hipóxicos/isquémicos transitórios induz um aumento persistente na eficiência sináptica que partilha muitos dos mecanismos inerentes à expressão de LTP, incluindo um ganho de função pela componente AMPA pós-sináptica. Com o objectivo de investigar o envolvimento dos receptores A2A neste processo, compararam-se os efeitos de breves insultos isquémicos [6], na presença e ausência de um antagonista selectivo destes receptores (SCH58261). Tal como observado por outros autores, à inibição da transmissão sináptica pelo insulto seguiu-se uma recuperação gradual da resposta pós-sináptica, até valores significativamente acima dos iniciais. Esta forma de plasticidade induzida por isquémia foi totalmente abolida quer pelo bloqueio prévio dos receptores A2A, como pelo antagonismo de uma subclasse de receptores AMPA permeáveis ao cálcio. Estes resultados revelam assim um novo mecanismo de neuromodulação pela adenosina, evidenciando ainda novos aspectos em comum entre formas de plasticidade fisiológicas e “patológicas”. Neste contexto, será de particular interesse esclarecer o papel desempenhado pelos processos de plasticidade induzida por isquémia, já que é controverso se estes contribuem para um exacerbamento dos danos por excitotoxicidade ou se, por outro lado, participarão na formação de novos contactos sinápticos capazes de recuperar alguns dos circuitos perdidos nas regiões mais afectadas por acidentes isquémicos. Do ponto de vista da última hipótese, poderá revelar-se importante apostar em estratégias neuroregenerativas que recorram também ao uso de fármacos moduladores da plasticidade (adaptativa) despoletada por isquémia.
Os resultados descritos correspondem a parte do trabalho realizado no âmbito do projecto de tese de doutoramento da autora, recentemente submetida para apreciação pela FMUL. Todo o trabalho foi desenvolvido sob orientação dos Professores Doutores Joaquim Alexandre Ribeiro e Ana Maria Sebastião, a quem a autora expressa a sua profunda gratidão. Para consulta detalhada dos resultados, ver Dias et al., 2010 (aqui)
Raquel Baptista Dias
Instituto de Farmacologia e Neurociências, Faculdade de Medicina
Unidade de Neurociências, Instituto de Medicina Molecular
rdias@fm.ul.pt
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Bibliografia
[1] Galvani L (1791) De viribus electricitatis in motu musculari commentarius. Bon Sci Art Inst Acad Comm 7:363–418
[2] Loewi O (1921) Über humorale Übertragbarkeit der Herznerven-wirkung. Pflügers Archiv189: 239-242
[3] Curtis DR, Watkins JC (1961) Analogues of glutamic and gamma-amino-n-butyric acids having potent actions on mammalian neurones. Nature 191:1010-1011
[4] Mattes H, Carcache D, Kalkman HO, Koller M (2010) alpha-Amino-3-hydroxy-5-methyl-4-isoxazolepropionic acid (AMPA) antagonists: from bench to bedside. J Med Chem 53: 5367-5382
[5] Sebastião AM, Ribeiro JA (2000) Fine-tuning neuromodulation by adenosine. Trends Pharmacol Sci 21: 341-634
[6] Rossi DJ, Oshima T, Attwell D (2000) Glutamate release in severe brain ischaemia is mainly by reversed uptake. Nature 403: 316-321