A possibilidade de induzir estados de hipometabolismo de um modo célere após a isquémia cerebral aguda, diminuindo a temperatura corporal, bem como o consumo de oxigénio, pode contribuir para aumentar a janela de oportunidade terapêutica da trombólise e assim contribuir para que esta seja acessível a um maior número de doentes com AVC isquémico.
INTRODUÇÃO
O tratamento actual dos acidentes vasculares cerebrais (AVC) isquémicos na fase aguda, inclui a reperfusão arterial com rt-PA (activador do plasminogéneo tecidular recombinante) e o tratamento em unidades de AVC. No entanto, inúmeras substâncias neuroprotectoras evidenciaram benefícios em estudos pré clínicos, tanto na redução do volume final como no resultado funcional. Infelizmente, nenhum deles demonstrou, até ao momento, benefício clínico inequívoco. As razões apontadas para as dificuldades de extrapolação para o ser humano, incluem a necessidade de administração demasiado precoce das drogas, difícil em contexto clínico, a disparidade nos instrumentos de medição incluindo as escalas funcionais[1], ou as diferenças na aquisição das técnicas de imagem na fase aguda, como seja a definição de penumbra [2,3].
Existe evidência de que, não tratada, a região de penumbra que se situa à periferia da lesão isquémica, cedo fará parte da região enfartada central, aumentando o volume da lesão inicial e comprometendo o prognóstico funcional a curto e longo prazo.
Um dos factores associados à melhoria funcional é a precocidade de actuação, de modo a evitar a isquémia celular cerebral irreversível; uma actuação mais precoce terá maior impacto no resultado funcional que intervenções em fases mais tardias. Este é um dos motivos da recomendação de tratar o AVC como uma situação de emergência. Outra razão é a curta janela terapêutica que medeia o início dos sintomas e a possibilidade de reperfusão. Medidas que permitam o alargamento desta janela contribuem para que um número mais vasto de doentes possa beneficiar das técnicas de reperfusão cerebral. Medidas dirigidas a retardar ou interromper os processos metabólicos envolvidos na chamada “cascata isquémica” podem, potencialmente, permitir o alargamento do tempo disponível para a reperfusão.
HIPOTERMIA
A indução de uma diminuição da temperatura corporal pode reduzir a deterioração após lesão isquémica aguda, se induzida precocemente, após o início dos sintomas de isquémia e prolongada por tempo adequado.
O uso da hipotermia moderada no contexto da fase aguda dos AVC está, actualmente, em fase de ensaio clínico fase II.
Em modelos animais de isquémia aguda, a hipotermia induzida demonstrou benefício, tanto na redução da dimensão do enfarte, como no resultado funcional.
Existem dois níveis de diminuição da temperatura corporal com interesse terapêutico para estudos translacionais: hipotermia leve (33ºC – 35ºC) e hipotermia moderada (30ºC - 33ºC). A hipotermia leve é mais segura e tecnicamente mais fácil de manusear [4]. Em humanos é possível atingir a temperatura desejada sem necessidade de sedação ou ventilação mecânica, o que, potencialmente, permite uma mais vasta aplicação clínica. No entanto, o efeito neuroprotector não parece ser igual para diferentes temperaturas, duração da hipotermia e intervalo entre o início dos sintomas de isquémia e a indução da hipotermia; observou-se um máximo de eficácia quando o arrefecimento é moderado (=31ºC) e a exposição é prolongada (12h a 48h) [5]. Contudo, confirmou-se, recentemente, que mesmo com pequenas diminuições da temperatura corporal basal da ordem de 2ºC ou menos, existe efeito neuroprotector com evidência histológica e comportamental [6].
Os mecanismos pelos quais a hipotermia é neuroprotectora não estão ainda completamente esclarecidos. Para a hipotermia leve, inicialmente, associou-se exclusivamente a neuroprotecção às alterações metabólicas induzidas (a diminuição da temperatura reduziria as necessidades metabólicas). No entanto, processos biológicos de protecção como desintoxicação e reparação seriam também inibidos e, assim, o balanço final é difícil de estabelecer. Actualmente, parece existir evidência de que a patofisiologia da hipotermia inclui também alterações no fluxo sanguíneo cerebral, na estabilidade das membranas celulares, no metabolismo energético, no metabolismo do cálcio e sinalização intracelular, nos mecanismos de excitotoxicidade, no equilíbrio ácido-base, na formação de radicais livres e nos mecanismos de apoptose [7] .
Assim, a hipotermia seria protectora tecidular, por aumentar a resistência a efeitos deletérios (incluindo interferir com o metabolismo da glicose desviando-a da via glicolítica para a via da pentose fosfato, uma via potencialmente neuroprotectora, a diminuição dos níveis de lactato tecidular e da acidose intracelular, a libertação de aminoácidos excitatórios, a formação de radicais livres, a libertação mitocondrial de citocromo C e kinase C, a activação microglial, a inflamação e o comportamento da barreira hemato-encefálica com diminuição da sua deterioração e rotura) induzindo inibição de, pelo menos, uma via de morte celular, abrangendo múltiplas vias de mecanismos de lesão e contribuindo para preservar tanto a função como a estrutura celular e, assim, melhorar o resultado tecidular final [8].
ÓXIDO NÍTRICO, MONÓXIDO DE CARBONO E SULFURETO DE HIDROGÉNIO
O óxido nítrico (NO) e o monóxido de carbono (CO) são moléculas gasosas sinalizadoras do sistema nervoso central e cardiovascular, que evidenciaram benefícios citoprotectores em contexto de isquémia cerebral e cardíaca [9]. Recentemente, foi dada especial atenção ao potencial significado biológico do sulfureto de hidrogénio (H2S) [10], inicialmente conhecido pelas suas propriedades tóxicas ambientais [11]. Estes 3 mediadores biológicos lábeis (NO, CO e H2S) têm a capacidade de atravessar as membranas celulares sem usar transportadores específicos.
O H2S é sintetizado nos mamíferos em diversos tecidos através de duas vias metabólicas da L-cisteína dependentes das enzimas piridoxal-5’- fosfato: a cistationina beta sintetase (CBS) e a cistationina gama liase (CSE). A L-cisteína pode provir de fontes alimentares ou ser sintetizada a partir da L-meteonina, através da via de transsulfuração, tendo a homocisteína como intermediário no processo.
Os efeitos biológicos da exposição ao H2S parecem depender, particularmente, da sua capacidade de inibir a fosforilação oxidativa mitocondrial e da indução de hipotermia.
No entanto são controversos dependendo, entre outros factores, da dose e do tempo de exposição. Em concentrações micromolares o sulfureto de hidrogénio parece ter um papel protector neuronal no stress oxidativo[12] , com modulação das vias das caspases e kinases intracelulares, influenciando a actividade dos receptores N-metil-d-aspartato (NMDA) em concentrações fisiológicas e modificando a indução de potenciais de longa duração (LTP)[13] . Induz ainda uma upregulation dos genes citoprotectores e anti-inflamatórios, incluindo a hemeoxigenase1 (HO1), o que permite a produção de CO, citoprotector e anti-inflamatório.
Está presente no sistema nervoso central em concentrações relativamente elevadas (50 a 160 microM), em comparação com outros órgãos, sugerindo uma função fisiológica local [14] .
INIBIDORES DA FOSFORILAÇÃO OXIDATIVA E HIBERNAÇÃO
Durante estados de dormência como a hibernação, os mamíferos podem sobreviver com taxas de metabolismo tão reduzidas como até 2% das suas necessidades habituais, sem sofrerem lesões encefálicas irreversíveis. Durante estes períodos, os animais necessitam de efectuar transformações adaptativas a nível cerebral, que incluem adaptações a condições deletérias para espécies que não hibernam habitualmente. Estas adaptações incluem não só mecanismos de supressão metabólica, mas também o aumento das defesas oxidativas, assim como, diminuição da temperatura corporal e das funções imunes [15]. O conhecimento dos mecanismos desta regulação e da indução reversível de estados hipometabólicos extremos pode contribuir para uma melhor compreensão de alguns aspectos das lesões de isquémia e reperfusão.
Curiosamente, foi exactamente com o H2S que foi possível, pela primeira vez em 2005, induzir um estado semelhante à hibernação em mamíferos que habitualmente não hibernam. Este estado foi designado por “suspended animation-like state” [16]. Utilizando ratinhos que inalaram H2S observou-se uma diminuição significativa das taxas metabólicas (medidas através do consumo de O2 e da eliminação de CO2) e da temperatura corporal. Após 6 horas de exposição à atmosfera enriquecida com H2S, este era suspenso e os ratinhos voltavam, espontaneamente, às taxas metabólicas e à sua temperatura corporal habitual, sem alterações do estado de saúde a curto ou longo prazo; assim, sugeriu-se um possível papel neuroprotector e indutor de hipometabolismo do H2S, provavelmente, por tamponar o consumo de oxigénio, alterar o meio redox intracelular, prevenindo um desequilíbrio entre as fontes energéticas e a procura energética [17]. O mecanismo proposto, pelo qual o H2S poderá regular o consumo de O2 celular, parece centrar-se na inibição da citocromo C oxidase que a nível cerebral reduz o consumo de oxigénio e inibe a recaptação do neurotransmissor excitatório L-glutamato.
É conhecido o papel citoprotector da hipotermia no contexto da isquémia experimental aguda. Em modelos animais de isquémia aguda cerebral, demonstrou-se o seu potencial benefício, não apenas na dimensão da lesão, como também no benefício funcional. O mecanismo envolve, provavelmente, a redução da deterioração após lesão isquémica aguda.
No entanto, subsiste controvérsia acerca do papel citoprotector do H2S , com alguns estudos em roedores a evidenciarem efeitos neurotóxicos. Estas discrepâncias na acção do H2S foram observadas dentro da mesma espécie [18], entre diferentes espécies (ratinho e leitão)[19] e entre diferentes órgãos (isquémia cerebral e isquémia cardíaca [20]). A explicação para estes resultados inclui o facto de que possa existir um efeito dependente de dose (como se observou na isquémia do miocárdio [21]), bem como diferenças nos tempos de exposição nos mamíferos de maiores dimensões para manifestação dos efeitos hipometabólicos.
A hipotermia severa e a hibernação são duas condições metabólicas extremas onde, apesar de se verificarem taxas metabólicas muito reduzidas, é possível recuperar sem lesão cerebral irreversível.
A possibilidade de induzir estados de hipometabolismo de um modo célere, após a isquémia cerebral aguda, diminuindo a temperatura corporal, bem como o consumo de oxigénio, pode contribuir para aumentar a janela de oportunidade terapêutica da trombólise e, assim, contribuir para que esta seja acessível a um maior número de doentes com AVC isquémico.
Isabel Henriques, Maria Gutiérrez, Exuperio Diez-Tejedor
Instituto de Investigation Hospital Universitário de la Paz, Madrid, Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa
ilh.igc@gmail.com
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