Espaço Aberto
A Valorização das Diferenças
Na natureza, os animais doentes, incapacitados ou vulneráveis são, de um modo geral, abandonados ou as primeiras vítimas dos predadores. Admitimos, pois, que a rejeição de uma cria diferente, diríamos com diferenças, mormente com deficiência, possa ser uma atitude natural.
Apesar dos enormes progressos verificados, sobretudo culturais, bem expressos pelo reconhecimento, entre outros, do direito à vida, do direito à educação, do direito ao lazer, do direito à sexualidade, do direito à parentalidade, do direito à formação profissional e ao emprego, e do direito à colocação familiar das pessoas com deficiência mental, nada responde, ainda, de uma forma satisfatória, às mais importantes questões ético-jurídicas suscitadas por esta perturbação. Para nós, o grande dilema ético, relativamente à atitude da sociedade para com as pessoas com deficiência mental, reside na opção pelo primado do conceito de qualidade de vida ou na opção pelo primado do conceito de vida, numa perspectiva ontológica, ou seja independentemente das suas qualidades e atributos ou, melhor, das suas aparências (a deficiência corresponderá, pois, a uma mera aparência ou qualidade). Para nós, o valor da vida sobrepõe-se, indiscutivelmente, ao valor da qualidade de vida do sujeito.
Na segunda metade do século XX, no rescaldo da Segunda Grande Guerra Mundial, surgiram os primeiros movimentos que pugnaram pela integração das pessoas com deficiência, designadamente crianças, nas diversas estruturas da sociedade. A integração das pessoas com deficiência mental ou portadoras de um qualquer estigma, seja ele racial, cultural, religioso, físico ou outro, constitui, a partir desta altura, um imperativo ético, designadamente para muitos grupos profissionais, como os médicos, que, pelo seu juramento, deverão estar engajados ao ideal humanista. A integração, no seu sentido mais lato, pressupõe a adopção de um estilo de vida normal, sem o recurso a instituições especiais, susceptíveis de inevitavelmente promoverem a segregação, como são, de forma paradigmática, as escolas de educação especial ou as instituições para deficientes.
Em nosso entender, para fundamentar o ideal integracionista, não deverão ser invocados argumentos como os benefícios educativos, como a aprendizagem, pela imitação, dos comportamentos convencionais, como a humanização dos pares, como o espectáculo degradante oferecido pela concentração artificial de pessoas com deficiência, como as baixas expectativas das instituições especiais e ainda outros habitualmente utilizados nas discussões sobre o tema. O principal argumento, para nós, assenta no direito, sem dúvida anti-natural, mas obviamente civilizacional, à integração, independentemente das características (aparências) físicas, mentais, culturais ou outras que distingam um sujeito da restante maioria. Assim, independentemente dos resultados da sua aplicação, a integração, como dito, é um imperativo ético. No caso de serem encontrados resultados menos bons no decurso da aplicação do ideal integracionista, o que há a fazer é modificar as estratégias que conduziram a uma intervenção ineficaz e não abdicar do princípio ético.
Nos finais dos anos 80 do século passado, o conceito de integração evolui para o conceito de inclusão. Não se pede, agora, que o sujeito com deficiência seja meramente aceite ou tolerado nas estruturas ordinárias da sociedade, mas que passe a desempenhar um papel social relevante. Adjacente a este novo paradigma estava, também, o ideal da discriminação positiva das pessoas com deficiência: estes nossos concidadãos deveriam ser produto de uma melhor atenção, particularmente no que respeita às suas necessidades sanitárias, educativas e, de um modo geral, sociais.
Já no século XXI, mais precisamente em 2009, na sequência de uma extraordinária e visionária formulação de um grande publicista português, o Dr. Pedro Bidarra, o conceito de inclusão experimenta uma significativa evolução. Bem mais do que incluir ou do que discriminar positivamente as pessoas com deficiências, incapacidades ou vulnerabilidades, o que agora se pede é a valorização das diferenças, ou seja, que deixemos de ser compreensivos, respeitadores ou tolerantes com as pessoas diferentes, mas que, genuinamente, valorizemos, de uma forma positiva, as diferenças de cada uma delas. O processo não é nada fácil, uma vez que obrigará a uma profunda mudança das mentalidades. Mas será, sem dúvida, a utopia que iremos perseguir no futuro.
É para o engajamento a esta utopia, a Valorização das Diferenças, que nós convocamos toda a escola de Medicina, com particular ênfase para os seus alunos.
Este texto é dedicado à Drª. Ofélia Guerreiro, figura ímpar da pediatria nacional, que, embora com fundamentos distintos dos nossos, se bateu, toda a sua vida, de uma forma inigualável e intransigente, pela dignidade dos recém-nascidos com deficiência.
Miguel Palha
Pediatra
Centro de Desenvolvimento Infantil DIFERENÇAS Lisboa
miguelpalha@diferencas.net
Apesar dos enormes progressos verificados, sobretudo culturais, bem expressos pelo reconhecimento, entre outros, do direito à vida, do direito à educação, do direito ao lazer, do direito à sexualidade, do direito à parentalidade, do direito à formação profissional e ao emprego, e do direito à colocação familiar das pessoas com deficiência mental, nada responde, ainda, de uma forma satisfatória, às mais importantes questões ético-jurídicas suscitadas por esta perturbação. Para nós, o grande dilema ético, relativamente à atitude da sociedade para com as pessoas com deficiência mental, reside na opção pelo primado do conceito de qualidade de vida ou na opção pelo primado do conceito de vida, numa perspectiva ontológica, ou seja independentemente das suas qualidades e atributos ou, melhor, das suas aparências (a deficiência corresponderá, pois, a uma mera aparência ou qualidade). Para nós, o valor da vida sobrepõe-se, indiscutivelmente, ao valor da qualidade de vida do sujeito.
Na segunda metade do século XX, no rescaldo da Segunda Grande Guerra Mundial, surgiram os primeiros movimentos que pugnaram pela integração das pessoas com deficiência, designadamente crianças, nas diversas estruturas da sociedade. A integração das pessoas com deficiência mental ou portadoras de um qualquer estigma, seja ele racial, cultural, religioso, físico ou outro, constitui, a partir desta altura, um imperativo ético, designadamente para muitos grupos profissionais, como os médicos, que, pelo seu juramento, deverão estar engajados ao ideal humanista. A integração, no seu sentido mais lato, pressupõe a adopção de um estilo de vida normal, sem o recurso a instituições especiais, susceptíveis de inevitavelmente promoverem a segregação, como são, de forma paradigmática, as escolas de educação especial ou as instituições para deficientes.
Em nosso entender, para fundamentar o ideal integracionista, não deverão ser invocados argumentos como os benefícios educativos, como a aprendizagem, pela imitação, dos comportamentos convencionais, como a humanização dos pares, como o espectáculo degradante oferecido pela concentração artificial de pessoas com deficiência, como as baixas expectativas das instituições especiais e ainda outros habitualmente utilizados nas discussões sobre o tema. O principal argumento, para nós, assenta no direito, sem dúvida anti-natural, mas obviamente civilizacional, à integração, independentemente das características (aparências) físicas, mentais, culturais ou outras que distingam um sujeito da restante maioria. Assim, independentemente dos resultados da sua aplicação, a integração, como dito, é um imperativo ético. No caso de serem encontrados resultados menos bons no decurso da aplicação do ideal integracionista, o que há a fazer é modificar as estratégias que conduziram a uma intervenção ineficaz e não abdicar do princípio ético.
Nos finais dos anos 80 do século passado, o conceito de integração evolui para o conceito de inclusão. Não se pede, agora, que o sujeito com deficiência seja meramente aceite ou tolerado nas estruturas ordinárias da sociedade, mas que passe a desempenhar um papel social relevante. Adjacente a este novo paradigma estava, também, o ideal da discriminação positiva das pessoas com deficiência: estes nossos concidadãos deveriam ser produto de uma melhor atenção, particularmente no que respeita às suas necessidades sanitárias, educativas e, de um modo geral, sociais.
Já no século XXI, mais precisamente em 2009, na sequência de uma extraordinária e visionária formulação de um grande publicista português, o Dr. Pedro Bidarra, o conceito de inclusão experimenta uma significativa evolução. Bem mais do que incluir ou do que discriminar positivamente as pessoas com deficiências, incapacidades ou vulnerabilidades, o que agora se pede é a valorização das diferenças, ou seja, que deixemos de ser compreensivos, respeitadores ou tolerantes com as pessoas diferentes, mas que, genuinamente, valorizemos, de uma forma positiva, as diferenças de cada uma delas. O processo não é nada fácil, uma vez que obrigará a uma profunda mudança das mentalidades. Mas será, sem dúvida, a utopia que iremos perseguir no futuro.
É para o engajamento a esta utopia, a Valorização das Diferenças, que nós convocamos toda a escola de Medicina, com particular ênfase para os seus alunos.
Este texto é dedicado à Drª. Ofélia Guerreiro, figura ímpar da pediatria nacional, que, embora com fundamentos distintos dos nossos, se bateu, toda a sua vida, de uma forma inigualável e intransigente, pela dignidade dos recém-nascidos com deficiência.
Miguel Palha
Pediatra
Centro de Desenvolvimento Infantil DIFERENÇAS Lisboa
miguelpalha@diferencas.net
