Momentos
Sacos e Mochilas: “pesos” de hoje e “fardos” de amanhã (PARTE I)

De segunda a sexta, e quantas vezes também ao Sábado, aí vão eles, de todos os tamanhos e idades, pela rua fora, rumo à escola, vergados sob pesados sacos, malas e mochilas, repletos como odres, completamente indiferentes e alheios aos perigos que este “trabalho de estiva” lhes pode acarretar.
Arrastando, por vezes horas seguidas, cargas brutais de livros, sebentas, dicionário(s) e outros materiais escolares, [incluindo, agora, os “Magalhães”], sapatos e roupas de ginástica, capa e guarda-chuva, almoço e/ou lanche, o esforço despendido durante anos, neste ritual obrigatório, forçosamente trará a estes organismos em desenvolvimento e formação, sobretudo dos jovens de idades médias entre os 6 e os 15 anos (1º, 2º e 3º ciclos), malefícios esquelético-estruturais, alguns deles dramáticos e irreversíveis.
Segundo a opinião de alguns especialistas em ergonomia, fisiatria e medicina do trabalho, se a carga transportada às costas não exceder os 10% do peso corporal e os percursos realizados a pé por estes jovens “sherpas” não forem demasiado longos, os males nunca serão muito graves. Bom, e se os pesos ultrapassarem esse limite percentual, o que sucede quase sempre?! E se as distâncias forem, mesmo, consideráveis?! Sim, porque nem todos possuem meio de transporte próprio. Por outro lado, também não é raro ver jovens que dele dispõem preferirem a deslocação a pé, em franco convívio com os colegas durante o intervalo de almoço ou depois das aulas, até aos vários pólos de atracção do bairro ou da cidade…com a mala, o saco ou a mochila alojado(a) às costas, pendurado(a) na mão ou no ombro, o tempo todo. A opção de puxar uma mochila ou um malote escolar, rolando sobre rodinhas, menos traumático para o esqueleto e para a estrutura muscular, por isso mesmo mais aconselhável, ainda não constitui uma realidade de grande expressão entre a nossa população estudantil. E provavelmente nunca constituirá, já que os jovens têm a noção de que os seus pertences, solidariamente ajustados ao corpo (ao dorso ou a um dos ombros), dentro da sacola ou da mochila, estarão mais protegidos, disponíveis e com menor risco de extravio, nas suas deambulações diárias e são, também, mais práticos “and more fashion”.
A resistência de cada corpo depende, obviamente, de vários factores, todos eles variáveis de indivíduo para indivíduo, que se caracterizam e relacionam, de um modo simples, por dois aspectos distintos:
- O estado geral de saúde
- O grau de desenvolvimento e solidez das estruturas ligamentosas, tendino-musculares e osteo-articulares.
Por isso, avaliar o grau de risco a que se expõe cada jovem, quando sujeito a estas circunstâncias de esforço e de tracção quase diários, não é tarefa fácil. Todavia, perante o habitual excedente de carga transportada para além de 10% do peso corporal, recomendado como limite máximo, mesmo um leigo terá a noção de que esta agressão ergonómica constante poderá trazer forçosamente inconvenientes para a saúde.
Para o cumprimento dos novos requisitos, métodos e sistemas pedagógicos, a população estudantil tem que mobilizar “fardos” pesadíssimos, agredindo, profundamente, as articulações da coluna e dos membros superiores e inferiores, como seria de prever.
Experimentemos, pois, cada um de nós, a pesar na balança, dia a dia, durante uma semana, o alforge que o(s) nosso(s) filho(s) terá(ão) que arrastar até à escola e, como é óbvio, no regresso a casa…sem contar, naturalmente, com os meios-tempos, uma pequena curva pelo centro comercial ou por outro pólo qualquer do seu interesse e constataremos que muitas vezes levam às costa quase um terço do seu peso corporal.
Se todos nos consciencializarmos da suma importância do problema, pais, médicos e professores, poderemos alertar os jovens para a importância da sua correcção e prevenção, ajudando-os a seleccionar, dentro do possível, a carga desses sacos ou mochilas, minimizando assim os riscos daí provenientes.
Disfunções musculares e esqueléticas e, em particular, desvios anómalos ou viciosos da coluna, cifoses (corcunda), lordoses (curva lombar muito acentuada) e escolioses (curva lateral da coluna em “S”), acompanhados de dores [nas costas], podem ser algumas das resultantes desse esforço de tracção exagerado. Mas se as mialgias (dores musculares) e raquialgias (dores da coluna) constituem uma parte desses perigos, quando a tensão sobre as articulações é prolongada (ao longo de anos) e muito acima do que se prevê (em termos de transporte de peso), com o tempo, o risco de artrose também existe. Qualquer agressão articular constante, prolongada ou repetida, mesmo em crianças e adolescentes, dependendo, como é natural, do seu perfil genético, biomecânico, cultural, económico e psicossocial, pode desencadear episódios de sinovite articular e esta abre, frequentemente, a porta à osteoartrose na vida futura. A artrose, determinada neste caso por sobrecarga de função articular, acompanha-se irreversivelmente de dor e rigidez. Estes riscos sérios a que expõe uma grande percentagem de jovens portugueses, no cumprimento diário, ou quase diário, das pesadas exigências logístico-escolares, não pode, nem deve, pois, continuar a ser subavaliado.
Prof. Doutor João Frada
Médico e Professor Universitário Apos. da Faculdade de Medicina de Lisboa
joaojcfrada@gmail.com
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Artigo publicado por FRADA, João. Os Aleijados de amanhã, Revista de Medicina. 1994,2, V série, Vol.1, Nº2, 43-44. [texto truncado e, agora, actualizado, com outro título e alguns dados e informações adicionais].
