Espaço Aberto
A Introdução à Medicina – Evolução da Cadeira e Episódios da Vida de uma Colaboradora
Começou em 1995. Foi uma total inovação no país, uma ideia do Prof. Gomes-Pedro, desenvolvida depois também por outras pessoas, pouco a pouco, até se tornar num ícone do Curso de Medicina, a cadeira que acendia nos caloiros a primeira chama do gosto de “ser Médico”. Eu entrei em 1999.
A Introdução à Medicina era como se disséssemos, de facto, aos caloiros: “Entra na Medicina! Vem apreender tudo o que tens de aprender para te tornares um Médico e não apenas um cientista da Medicina!”
Era uma cadeira de dinâmica muito presencial, trabalhosa, mas que,no fim, constituía uma real mais valia na transformação mental de um aluno do secundário num futuro Médico.
A cadeira variava bastante de ano para ano mas, no seu melhor, era composta por 4 áreas nucleares e outras optativas.
A Psicologia da Relação e da Comunicação mostrava como é importante a análise psicológica para o estabelecimento de uma boa relação médico-doente – uma primeira abordagem à Medicina Relacional, que se desenvolveu com a colaboração da Clínica Universitária de Psiquiatria: Prof. Maria Luísa Figueira, Prof. António Barbosa, Prof. Marco Paulino e Mestre Carlos Gois. Eram aulas interactivas, com recurso a encenações e com muito estímulo à reflexão e à análise de comportamentos – e os alunos adoravam!
O Suporte Básico de Vida proporcionava treino básico para a reanimação cardiorespiratória. Só foi possível com a generosa colaboração de uma equipa do Serviço de Anestesia do HSM: o Prof. J Figueiredo Lima, as Drªs Idalina Rodrigues e Helena Gomes Santos, para além de Internos e Enfermeiros. Havia um Manual para estudar e aulas práticas, com manequins no chão – e os alunos adoravam!
A Prática de Saúde na Comunidade levava os alunos a partilhar, durante algumas horas, a vida dos Médicos de Família, em Centros de Saúde de Lisboa e arredores, sob docência do Prof. Luís Rebelo. Era o contacto directo com a Medicina no terreno, o confronto com a realidade das pessoas no seu enquadramento, dos bairros, da pobreza, dos hábitos, dos vícios, das forças e das fraquezas das famílias, os problemas específicos das crianças, das mulheres a pedir uma baixa por puro cansaço, das adolescentes grávidas, dos que não têm dinheiro para comprar medicamentos, dos que não têm tempo para cozinhar dietas, dos idosos que não têm mais ninguém com quem falar… Ao lado do Médico, de bata vestida, os alunos viam desfilar a multiplicidade de problemas clínicos, humanos e sociais – e adoravam!
O Desenvolvimento e Comportamento Humano destinava-se a fomentar nos alunos a reflexão sobre o papel das circunstâncias na evolução do ser humano e a sensibilizá-los para a compreensão e o respeito pelas diferenças, fazia-os sentir admiração pela resiliência e compaixão pelos casos extremos.
Para tal, levava os alunos, em grupos, a visitar Instituições de apoio social e mostrava-lhes, como modelos de actuação profissional, as centenas de pessoas que dedicam as suas vidas a cuidar daqueles que as condições de saúde e/ou de vida afastam da vida “normal”: os cegos, os doentes de paralisia cerebral, as crianças institucionalizadas, os deficientes mentais, os prisioneiros, os surdos e os surdo-cegos, os refugiados, os idosos, etc. Tínhamos especial cuidado em garantir-lhes contacto directo com os utentes, de forma a permitir-lhes ouvir em directo as mensagens que inevitavelmente lhes eram entregues: “quando fores médico, não te esqueças…” – e, claro, os alunos adoravam!
As áreas opcionais eram variadas e interessantes, todas relacionadas com a prática da profissão e com as suas envolventes: História da Medicina com o Prof. João Frada, Iniciação à Investigação Científica com a Prof. Carlota Saldanha, Tecnologias de Informação e Comunicação com o Prof. Mário Lopes, etc.
As aulas eram intercaladas com excertos de filmes. Ao longo de toda a disciplina, que era anual, perpassava o gosto por pensar. A memória ficava reservada para os compêndios e para as “desgravadas” das outras disciplinas. Aqui, era o sentir, o constatar, o envolvimento emocional.
O contacto intenso com os caloiros que a disciplina proporcionava, e as próprias características da disciplina, focada na empatia, na partilha de experiências, no trabalho de equipa, derivaram numa espécie de Introdução à… Faculdade de Medicina. Os grupos de trabalho, formados aleatoriamente, tornavam-se embriões de muitas amizades (e até de alguns namoros!). Os momentos de entrega de trabalhos alongavam-se para além do simples “está entregue, podes ir embora.” O pedido para uma troca de horário derivava para uma confidência. O aluno displicente, que prejudicava o trabalho do seu grupo, era admoestado. Os erros de ortografia eram assinalados e confrontava-se o autor com a exigência de esmero que a profissão médica requer. E, no meio de toda esta familiaridade com os alunos, foi-se desenvolvendo um sentimento de pertença e carinho, entre nós e eles.
Acredito, e tenho razões para tal, que a Introdução à Medicina e todo o envolvimento pessoal com a disciplina marcou gerações de jovens médicos, que foram partindo para o seu Curso e para a sua Profissão mentalizados do poder da simpatia e do bom ambiente, conscientes do absurdo da arrogância, abertos à tolerância e resilientes.
Um jovem que se lamenta que o curso “é muito difícil” muda qualquer coisa quando repara que difícil mesmo é um cego conseguir almoçar sem entornar comida, ou um doente com paralisia cerebral virar uma página num livro. Um jovem que sonha tornar-se médico, mais ou menos influenciado pelo aspecto “sexy” da profissão, tal como as séries de televisão a mostram, muda qualquer coisa quando se apercebe da entrega profissional do Médico de Família, remando na sua secretária contra a maré dos comportamentos de risco, da atitude por vezes antagónica do doente ou dos seus familiares, ou da burocracia.
A disciplina de Introdução à Medicina terminou em 2007, com a reforma curricular. No entanto, as suas áreas “históricas” permanecem no Curso, nomeadamente no Módulo III.I "O Médico, a Pessoa e o Doente".
A “IntroMed” foi a melhor aquisição da minha vida profissional. Desde que comecei a trabalhar, aos 18 anos, nenhum trabalho me deu retornos tão positivos: elogios, caricaturas, oportunidades de ser útil, contactos com pessoas de mérito extraordinário, prémios extravagantes (sou “Grande FMéLica”!), banhos de juventude, ovações no anfiteatro (e no Coliseu…) e, acima de tudo, o primeiro abraço de um novo licenciado, os beijos de saudades do jovem médico que me reconhece no supermercado ou no Banco do S. José, são parte de mim, para sempre. E uma das melhores partes de mim!
Maria Manuela Nunes
ajuda@fm.ul.pt
A Introdução à Medicina era como se disséssemos, de facto, aos caloiros: “Entra na Medicina! Vem apreender tudo o que tens de aprender para te tornares um Médico e não apenas um cientista da Medicina!”
Era uma cadeira de dinâmica muito presencial, trabalhosa, mas que,no fim, constituía uma real mais valia na transformação mental de um aluno do secundário num futuro Médico.
A cadeira variava bastante de ano para ano mas, no seu melhor, era composta por 4 áreas nucleares e outras optativas.
A Psicologia da Relação e da Comunicação mostrava como é importante a análise psicológica para o estabelecimento de uma boa relação médico-doente – uma primeira abordagem à Medicina Relacional, que se desenvolveu com a colaboração da Clínica Universitária de Psiquiatria: Prof. Maria Luísa Figueira, Prof. António Barbosa, Prof. Marco Paulino e Mestre Carlos Gois. Eram aulas interactivas, com recurso a encenações e com muito estímulo à reflexão e à análise de comportamentos – e os alunos adoravam!
O Suporte Básico de Vida proporcionava treino básico para a reanimação cardiorespiratória. Só foi possível com a generosa colaboração de uma equipa do Serviço de Anestesia do HSM: o Prof. J Figueiredo Lima, as Drªs Idalina Rodrigues e Helena Gomes Santos, para além de Internos e Enfermeiros. Havia um Manual para estudar e aulas práticas, com manequins no chão – e os alunos adoravam!
A Prática de Saúde na Comunidade levava os alunos a partilhar, durante algumas horas, a vida dos Médicos de Família, em Centros de Saúde de Lisboa e arredores, sob docência do Prof. Luís Rebelo. Era o contacto directo com a Medicina no terreno, o confronto com a realidade das pessoas no seu enquadramento, dos bairros, da pobreza, dos hábitos, dos vícios, das forças e das fraquezas das famílias, os problemas específicos das crianças, das mulheres a pedir uma baixa por puro cansaço, das adolescentes grávidas, dos que não têm dinheiro para comprar medicamentos, dos que não têm tempo para cozinhar dietas, dos idosos que não têm mais ninguém com quem falar… Ao lado do Médico, de bata vestida, os alunos viam desfilar a multiplicidade de problemas clínicos, humanos e sociais – e adoravam!
O Desenvolvimento e Comportamento Humano destinava-se a fomentar nos alunos a reflexão sobre o papel das circunstâncias na evolução do ser humano e a sensibilizá-los para a compreensão e o respeito pelas diferenças, fazia-os sentir admiração pela resiliência e compaixão pelos casos extremos.
Para tal, levava os alunos, em grupos, a visitar Instituições de apoio social e mostrava-lhes, como modelos de actuação profissional, as centenas de pessoas que dedicam as suas vidas a cuidar daqueles que as condições de saúde e/ou de vida afastam da vida “normal”: os cegos, os doentes de paralisia cerebral, as crianças institucionalizadas, os deficientes mentais, os prisioneiros, os surdos e os surdo-cegos, os refugiados, os idosos, etc. Tínhamos especial cuidado em garantir-lhes contacto directo com os utentes, de forma a permitir-lhes ouvir em directo as mensagens que inevitavelmente lhes eram entregues: “quando fores médico, não te esqueças…” – e, claro, os alunos adoravam!
As áreas opcionais eram variadas e interessantes, todas relacionadas com a prática da profissão e com as suas envolventes: História da Medicina com o Prof. João Frada, Iniciação à Investigação Científica com a Prof. Carlota Saldanha, Tecnologias de Informação e Comunicação com o Prof. Mário Lopes, etc.
As aulas eram intercaladas com excertos de filmes. Ao longo de toda a disciplina, que era anual, perpassava o gosto por pensar. A memória ficava reservada para os compêndios e para as “desgravadas” das outras disciplinas. Aqui, era o sentir, o constatar, o envolvimento emocional.
O contacto intenso com os caloiros que a disciplina proporcionava, e as próprias características da disciplina, focada na empatia, na partilha de experiências, no trabalho de equipa, derivaram numa espécie de Introdução à… Faculdade de Medicina. Os grupos de trabalho, formados aleatoriamente, tornavam-se embriões de muitas amizades (e até de alguns namoros!). Os momentos de entrega de trabalhos alongavam-se para além do simples “está entregue, podes ir embora.” O pedido para uma troca de horário derivava para uma confidência. O aluno displicente, que prejudicava o trabalho do seu grupo, era admoestado. Os erros de ortografia eram assinalados e confrontava-se o autor com a exigência de esmero que a profissão médica requer. E, no meio de toda esta familiaridade com os alunos, foi-se desenvolvendo um sentimento de pertença e carinho, entre nós e eles.
Acredito, e tenho razões para tal, que a Introdução à Medicina e todo o envolvimento pessoal com a disciplina marcou gerações de jovens médicos, que foram partindo para o seu Curso e para a sua Profissão mentalizados do poder da simpatia e do bom ambiente, conscientes do absurdo da arrogância, abertos à tolerância e resilientes.
Um jovem que se lamenta que o curso “é muito difícil” muda qualquer coisa quando repara que difícil mesmo é um cego conseguir almoçar sem entornar comida, ou um doente com paralisia cerebral virar uma página num livro. Um jovem que sonha tornar-se médico, mais ou menos influenciado pelo aspecto “sexy” da profissão, tal como as séries de televisão a mostram, muda qualquer coisa quando se apercebe da entrega profissional do Médico de Família, remando na sua secretária contra a maré dos comportamentos de risco, da atitude por vezes antagónica do doente ou dos seus familiares, ou da burocracia.
A disciplina de Introdução à Medicina terminou em 2007, com a reforma curricular. No entanto, as suas áreas “históricas” permanecem no Curso, nomeadamente no Módulo III.I "O Médico, a Pessoa e o Doente".
A “IntroMed” foi a melhor aquisição da minha vida profissional. Desde que comecei a trabalhar, aos 18 anos, nenhum trabalho me deu retornos tão positivos: elogios, caricaturas, oportunidades de ser útil, contactos com pessoas de mérito extraordinário, prémios extravagantes (sou “Grande FMéLica”!), banhos de juventude, ovações no anfiteatro (e no Coliseu…) e, acima de tudo, o primeiro abraço de um novo licenciado, os beijos de saudades do jovem médico que me reconhece no supermercado ou no Banco do S. José, são parte de mim, para sempre. E uma das melhores partes de mim!
Maria Manuela Nunes
ajuda@fm.ul.pt
