Reportagem / Perfil
Entrevista com o Professor Doutor Paulo Ramalho
Newsletter: Professor, como vê a evolução da pediatria nos últimos 40 anos?
Professor Doutor Paulo Ramalho: Creio que ela tem de ser analisada com base na própria evolução da sociedade e na atitude que esta tem tido para com a criança. Até ao século XIX e, em grande parte, também no século XX, ela era olhada como um adulto em pequenino. A pouco e pouco, porém, foram-se descobrindo as suas características muito próprias.
A evolução deste conhecimento foi modificando também a prática da própria pediatria, o que acabou por se repercutir nas atitudes, na abordagem clínica, nas instalações, nos equipamentos, etc.
No que toca à pediatria hospitalar, eu diria que ainda estamos longe de conceitos equilibrados para a distribuição das zonas de internamento (as clássicas «camas»…) e dos espaços de apoio, serviços complementares, ambulatório, etc... Os quais deveriam corresponder a qualquer coisa como 60 a 70% do total disponível, o que não é, obviamente, aquilo que temos no nosso hospital. De resto, pode dizer-se que as camas hoje nos interessam cada vez menos, já que a tendência é para que o seu número se vá reduzindo, a favor dos cuidados de ambulatório.
Isso não quer dizer que não pensemos na necessidade (e no direito!) da criança permanecer num ambiente que não a «agrida», permitindo simultaneamente a manutenção do vínculo com o seu núcleo familiar durante toda a permanência no hospital. Hoje, a criança já não pode ser considerada isoladamente, mas antes como «parte» integrante de uma estrutura muito mais ampla, a família. Por isso precisamos de espaços especificamente concebidos para ela, para os seus familiares. Uma vez que os edifícios não foram pensados nesta óptica, este é um problema que se tem vindo a agravar, sobretudo depois do alargamento da idade pediátrica até aos 18 anos.
E no entanto, a própria prática da pediatria hospitalar mudou radicalmente nos últimos anos. Vale a pena recordar que, não há muito tempo, os serviços de pediatria tinham uma ou duas horas de visita e a criança ficava depois novamente sozinha. Orgulhamo-nos de ter sido um dos primeiros serviços a ter os pais todo o dia junto dos filhos, o que, diga-se de passagem, inicialmente provocou grande resistência. A Professora Maria de Lurdes Levy foi a primeira a defender esta prática que, mais tarde, foi assumida como um ponto de honra pelo Professor Gomes-Pedro.
A este respeito recordo uma cena a que assisti quando tive de me deslocar a um serviço de infecciologia de Lisboa e que me chocou profundamente como jovem Interno. Antes da «hora da visita» um grupo de pessoas esperava no átrio. De dentro do serviço chegavam choros e alguém ia dizendo «é o meu, é o meu…». Ao meio dia , um médico chega, pega num papel e começa a ler em voz alta:
- Número 43 ?
- É o meu - gritam no grupo dos pais.
- Está melhor! Número 44?
- É o meu, diz outra voz.
- Está pior…
Este tipo de situações, que hoje nos parecem abomináveis era, no entanto, comum no nosso País, há 30 ou 40 anos atrás.
Newsletter: Acha que esse período foi um ponto de viragem na pediatria?
Professor Doutor Paulo Ramalho : Não se pode falar de um único ponto de viragem no «trajecto» da pediatria, mas foi, de facto, a partir dos anos 50-60 que se desenvolveu uma visão da criança mais voltada para a sua totalidade, o que, de algum modo, introduziu alguma radicalidade na cultura de então. Posteriormente, acabaria também por se reconhecer o adolescente como outra entidade com características específicas, o que levou ao desenvolvimento de atitudes completamente diferentes. Foi, aliás, nessa linha de pensamento que surgiu, há mais de uma década, a nossa Unidade de Saúde do Adolescente.
A Clínica Pediátrica Universitária está instalada num edifício com mais de cinquenta anos, pelo que temos procurado corresponder a essa evolução improvisando espaços tanto quanto possível adequados aos novos conceitos. Assim, a creche do HSM foi por nós ocupada após a sua desactivação e é hoje a Consulta de Pediatria, onde se foi instalando um jardim, uma horta pedagógica, um espaço para leitura de contos e para palhaços, que completam assim a acção educativa desenvolvida por educadoras e voluntárias nas duas salas de espera. No internamento, na Unidade de Técnicas, nos Hospitais de Dia, tentamos criar áreas o menos «hospitalizadas» possível, procurando que as crianças venham com os seus brinquedos, as suas roupas , etc., de modo a manter a indispensável ligação com o seu mundo afectivo.
As mudanças na pediatria não ficaram, contudo, limitadas aos aspectos físicos e relacionais. A sua prática modificou-se também com a introdução de abordagens diagnosticas e terapêuticas específicas.
Pode dizer-se que, até ao primeiro quartel do sec XX, o que havia era uma extensão da patologia dos adultos, sem lugar, portanto, para as doenças metabólicas ou genéticas, para a patologia do recém-nascido e do desenvolvimento, já que tudo era «extrapolação».
Nessa altura começa a reconhecer-se que há todo um conjunto de patologias que têm de ser abordadas de um modo especifico. É um fenómeno muito europeu, em que os pediatras ingleses, franceses e alemães marcaram o que viria a passar-se no resto do mundo.
Em Portugal, também nessa altura uma série de personalidades começa a dedicar-se à pediatria. Por volta de 1911, e no âmbito da refundação da universidade, é criada a cátedra de pediatra que é entregue a Jaime Salazar de Sousa, director de uma enfermaria para crianças no Hospital de D. Estefânia. Este foi, talvez, o primeiro dos pontos de viragem a que há pouco me referi. A ele sucede o professor Castro Freire, ainda no Hospital de Santa Marta, começando então a desenvolver-se aquilo que se poderá considerar como uma verdadeira escola de pediatras, os quais, para todos os efeitos, serão os primeiros do nosso pais. Mais tarde, e já no Hospital de Santa Maria, o professor Carlos Salazar de Sousa (filho de J. Salazar de Sousa), viria a imprimir à já então Clínica Universitária de Pediatria, uma dinâmica de grande modernidade. Era uma pessoa brilhante do ponto de vista científico e foi ele que projectou internacionalmente a nossa pediatria.
Outro dos pontos de viragem foi a década de 70 e o 25 de Abril, em que uma geração médicos se começou a interrogar sobre a orientação que tradicionalmente era dada à prática da pediatria. Essa geração, a que me orgulho de pertencer, propunha que ela deveria ser vista como uma medicina interna, com as suas especialidades e as suas técnicas de diagnóstico e terapêutica, conceito que não estava ainda muito generalizado. Lembro, por exemplo, que quando o Prof. Pinto Correia (que estava longe de ser um tradicionalista…) me propôs ficar no seu Serviço e eu lhe disse que viria para a pediatria ele me respondeu «Mas para quê? Lá só tens papas e vacinas!»
Newsletter: Esse grupo de trabalho também lançou o pilar daquilo que é hoje a formação em pediatria…
Professor Doutor Paulo Ramalho: Isso não foi assim, já que a formação foi sempre uma preocupação constante de todas as gerações que nos tinham antecedido. O nosso objectivo foi antes desenvolver uma filosofia nova para a prática hospitalar e a criação das estruturas adequadas a essa prática: Unidades Clínicas Especializadas, Unidades de Técnicas Pediátricas, Núcleos para a gestão das grandes áreas, uma biblioteca que funcionasse como pólo de transmissão de conhecimento, etc. Alargámos, portanto, o panorama da formação pediátrica e esta actuação acabou por ter cada vez mais seguidores em todo o país. Por isso nos tornámos então num centro de formação a que acorriam médicos de todos os hospitais e num pilar precioso para o desenvolvimento diferenciado da pediatria portuguesa.
Newsletter: O senhor Professor referiu a formação, o replicar de modelos. Mas, ao nível da pós-graduação, tem que haver doutorados para assegurar a continuidade do modelo. E esta não é uma área em que haja muitos doutorados.
Professor Doutor Paulo Ramalho: É verdade. Eu atrever-me-ia a dizer que isto é em grande parte resultante de nunca termos sido um verdadeiro hospital escolar, continuando a admitir-se que se possa aqui trabalhar sem fazer ensino e investigação, ou que tudo seja compatibilizável com cada vez menos disponibilidade.
De facto, como é possível acreditar que se possa fazer investigação, quando simultaneamente se está escalado para 24 horas de serviço de urgência duas vezes por semana, e ainda assegurar consultas, técnicas, enfermaria, etc.? É um erro absoluto, com o qual se continua a pactuar, como se se pudesse fazer omoletas sem ovos.
De facto, ou os decisores percebem a importância da investigação, de uma carreira académica, e lhe dão condições para que elas se concretizem, ou estes dois campos serão sempre preteridos pelos clínicos.
Newsletter: Já que refere isso, Professor, a Pediatria, nos últimos 15 anos, é a especialidade, aqui na Faculdade, com menor número de Doutorados.
Professor Doutor Paulo Ramalho : O que é natural, se tiver em conta tudo o que disse.
Newsletter: E, neste momento, com menos alunos inscritos no Doutoramento dessa Especialidade.
Professor Doutor Paulo Ramalho : Neste momento temos apenas três. Não nego isso, mas insisto em que o problema está nas condições que os mais novos encontram para se disporem a avançar com um projecto de doutoramento. O Programa Doutoral foi fundamental para integrar os internos numa perspectiva coerente nesta área, mas continuo a achar que a questão fundamental é a da organização do trabalho, já que, nas circunstâncias actuais, os profissionais não podem ser dispensados de actividades fulcrais para os Serviços para se dedicarem regularmente à investigação. Um dado particularmente demonstrativo desta realidade é a comparação entre a média das idades com que se faz um doutoramento nas cadeiras clínicas e nas cadeiras pré-clínicas…
É cada vez mais necessário um entendimento entre a Faculdade, o Hospital e os decisores políticos, para que esta situação se modifique rapidamente, até porque ela acaba por ter repercussões, nomeadamente na qualidade do ensino pré-graduado.
Esta é, de resto, uma área que, quanto a mim, deveria merecer também um reflexão profunda. Para lá do aumento irracional do número de alunos e da disponibilidade cada vez menor dos docentes, os tempos lectivos devem corresponder aos objectivos globais do ensino médico. Veja-se, por exemplo, o caso de Pediatria II, onde o aluno inicia o seu contacto com a patologia pediátrica e que, por isso mesmo, deveria ser eminentemente prática, mas hoje dispõe apenas de 25% do seu tempo para o contacto directo com o doente. Não faz sentido!
Newsletter: Professor, crê que a diminuição no número de doutorados nesta área e a qualidade do ensino que está a ser ministrada neste momento poderão vir a constituir uma fragilidade na pediatria?
Professor Doutor Paulo Ramalho: Não tenho a menor dúvida.
Newsletter: Houve um retrocesso?
Professor Doutor Paulo Ramalho: Cada período corresponde a uma realidade com as suas características. Neste momento, em que o Programa Doutoral está a arrancar, é previsível que haja mudanças nesta área, embora não acredite que, no essencial, a actual situação se modifique substancialmente.
Voltemos ao caso de Pediatria II, limitada como está a doze semanas de aulas e a doze aulas práticas. Não serão quaisquer Mestrados Integrados que resolverão esta ordem de problemas, mas acredito que se torna cada vez mais necessária uma grande reflexão sobre o ensino médico.
Newsletter: Daqui a uns anos estaremos perante um ensino da medicina completamente diferente, pouca prática e muita teoria?
Professor Doutor Paulo Ramalho: Esse é um modelo que até agora tem sido considerado inadequado e seria um pouco como voltar às universidades medievais!
Newsletter: O Processo de Bolonha está por toda a Europa...
Professor Doutor Paulo Ramalho: Tenho muitas dúvidas sobre quais foram as verdadeiras motivações que levaram à adopção do Processo de Bolonha entre nós, pelo menos no que toca ao ensino da medicina. O mínimo que se poderá dizer é que foi uma transformação insuficientemente debatida.
Se bem me lembro, Bolonha surgiu porque a Europa se começou a preocupar com as universidades americanas (seria bom que se começasse a preocupar também com as chinesas e indianas...). Mas as americanas distinguem-se precisamente porque têm uma componente prática e de investigação enorme, o que, nas escolas portuguesas, continuou a não existir. Basta olhar para o que se está a passar com as teses de mestrado, que cada vez mais são apenas trabalhos de revisão com uma componente de investigação residual. Creio que não era isso que estava no espírito de Bolonha.
Newsletter: Quer dizer que o modelo, que hoje se defende, do médico-cientista, é impossível?
Professor Doutor Paulo Ramalho : Não quero ser tão pessimista. Acredito é que estamos uma vez mais a perder uma oportunidade de melhorar a formação dos futuros médicos contribuindo por outro lado, para o desenvolvimento do facilitismo que tanto nos caracteriza.
Newsletter: Quais as fragilidades ou carências do Serviço?
Professor Doutor Paulo Ramalho: Do que atrás fica dito, ressaltam já algumas das principais fragilidades da Clínica Universitária de Pediatria/Departamento da Criança e da Família, as quais se relacionam sobretudo com a desejável compatibilização entre um ensino de qualidade e as necessidades de um hospital com inegáveis limitações estruturais e enormes responsabilidades assistenciais.
Neste contexto, tem sido fundamental manter uma cultura de complementaridade entre a Faculdade e o Hospital, a qual, no entanto, para se poder manter, tem de manifestar-se de forma coerente a todos os níveis.
Por isso seria fundamental que quem pretendesse trabalhar aqui soubesse de antemão que poderia ser destacado para funções pedagógicas ou assistenciais, de acordo com as necessidades, oportunidades, projectos pessoais, etc. Hoje isso infelizmente não acontece nas áreas clínicas, onde os contratos são feitos tendo em conta apenas os interesses hospitalares.
Na mesma ordem de ideias, as duas instituições têm de assumir clara e rapidamente um programa agressivo de fixação de novos profissionais, de forma a manter a qualidade dos serviços prestados e a evitar atempadamente os riscos de um fosso inter-geracional.
Apesar destas dificuldades, tem sido possível desenvolver essa complementaridade, a qual se concretiza, nomeadamente, pela utilização de recursos humanos e espaços comuns e pela ligação electrónica da nossa Biblioteca à Biblioteca da Faculdade. Nesta linha de pensamento foi possível reorganizar e reunir numa página do portal da Faculdade toda a informação relativa à formação pediátrica realizada pelo HSM/FML, o que permitiu a sua divulgação para Hospitais Distritais, Centros de Saúde e todos os profissionais ligados à saúde da criança e do adolescente.
Outro dos nossos objectivos é a criação de um Centro de Formação Pediátrica integrando as duas vertentes institucionais. Com algumas modificações, a área anteriormente ocupada pelo Laboratório da FML no piso 7 será consagrada a esse pólo de formação, o qual nos irá permitir pensar a sério nos centros de saúde, nos hospitais distritais e nos PALOP. Deste modo se poderá dar seguimento ao acordo entre a Faculdade de Medicina de Lisboa e a Faculdade Agostinho Neto que conseguimos estabelecer há uns anos.
Há que manter portanto, a dinâmica criada pelos meus antecessores. Projectos não me faltam. O tempo é que não me sobra…
Professor Doutor Paulo Ramalho: Creio que ela tem de ser analisada com base na própria evolução da sociedade e na atitude que esta tem tido para com a criança. Até ao século XIX e, em grande parte, também no século XX, ela era olhada como um adulto em pequenino. A pouco e pouco, porém, foram-se descobrindo as suas características muito próprias.
A evolução deste conhecimento foi modificando também a prática da própria pediatria, o que acabou por se repercutir nas atitudes, na abordagem clínica, nas instalações, nos equipamentos, etc.
No que toca à pediatria hospitalar, eu diria que ainda estamos longe de conceitos equilibrados para a distribuição das zonas de internamento (as clássicas «camas»…) e dos espaços de apoio, serviços complementares, ambulatório, etc... Os quais deveriam corresponder a qualquer coisa como 60 a 70% do total disponível, o que não é, obviamente, aquilo que temos no nosso hospital. De resto, pode dizer-se que as camas hoje nos interessam cada vez menos, já que a tendência é para que o seu número se vá reduzindo, a favor dos cuidados de ambulatório.
Isso não quer dizer que não pensemos na necessidade (e no direito!) da criança permanecer num ambiente que não a «agrida», permitindo simultaneamente a manutenção do vínculo com o seu núcleo familiar durante toda a permanência no hospital. Hoje, a criança já não pode ser considerada isoladamente, mas antes como «parte» integrante de uma estrutura muito mais ampla, a família. Por isso precisamos de espaços especificamente concebidos para ela, para os seus familiares. Uma vez que os edifícios não foram pensados nesta óptica, este é um problema que se tem vindo a agravar, sobretudo depois do alargamento da idade pediátrica até aos 18 anos.
E no entanto, a própria prática da pediatria hospitalar mudou radicalmente nos últimos anos. Vale a pena recordar que, não há muito tempo, os serviços de pediatria tinham uma ou duas horas de visita e a criança ficava depois novamente sozinha. Orgulhamo-nos de ter sido um dos primeiros serviços a ter os pais todo o dia junto dos filhos, o que, diga-se de passagem, inicialmente provocou grande resistência. A Professora Maria de Lurdes Levy foi a primeira a defender esta prática que, mais tarde, foi assumida como um ponto de honra pelo Professor Gomes-Pedro.
A este respeito recordo uma cena a que assisti quando tive de me deslocar a um serviço de infecciologia de Lisboa e que me chocou profundamente como jovem Interno. Antes da «hora da visita» um grupo de pessoas esperava no átrio. De dentro do serviço chegavam choros e alguém ia dizendo «é o meu, é o meu…». Ao meio dia , um médico chega, pega num papel e começa a ler em voz alta:
- Número 43 ?
- É o meu - gritam no grupo dos pais.
- Está melhor! Número 44?
- É o meu, diz outra voz.
- Está pior…
Este tipo de situações, que hoje nos parecem abomináveis era, no entanto, comum no nosso País, há 30 ou 40 anos atrás.
Newsletter: Acha que esse período foi um ponto de viragem na pediatria?
Professor Doutor Paulo Ramalho : Não se pode falar de um único ponto de viragem no «trajecto» da pediatria, mas foi, de facto, a partir dos anos 50-60 que se desenvolveu uma visão da criança mais voltada para a sua totalidade, o que, de algum modo, introduziu alguma radicalidade na cultura de então. Posteriormente, acabaria também por se reconhecer o adolescente como outra entidade com características específicas, o que levou ao desenvolvimento de atitudes completamente diferentes. Foi, aliás, nessa linha de pensamento que surgiu, há mais de uma década, a nossa Unidade de Saúde do Adolescente.
A Clínica Pediátrica Universitária está instalada num edifício com mais de cinquenta anos, pelo que temos procurado corresponder a essa evolução improvisando espaços tanto quanto possível adequados aos novos conceitos. Assim, a creche do HSM foi por nós ocupada após a sua desactivação e é hoje a Consulta de Pediatria, onde se foi instalando um jardim, uma horta pedagógica, um espaço para leitura de contos e para palhaços, que completam assim a acção educativa desenvolvida por educadoras e voluntárias nas duas salas de espera. No internamento, na Unidade de Técnicas, nos Hospitais de Dia, tentamos criar áreas o menos «hospitalizadas» possível, procurando que as crianças venham com os seus brinquedos, as suas roupas , etc., de modo a manter a indispensável ligação com o seu mundo afectivo.
As mudanças na pediatria não ficaram, contudo, limitadas aos aspectos físicos e relacionais. A sua prática modificou-se também com a introdução de abordagens diagnosticas e terapêuticas específicas.
Pode dizer-se que, até ao primeiro quartel do sec XX, o que havia era uma extensão da patologia dos adultos, sem lugar, portanto, para as doenças metabólicas ou genéticas, para a patologia do recém-nascido e do desenvolvimento, já que tudo era «extrapolação».
Nessa altura começa a reconhecer-se que há todo um conjunto de patologias que têm de ser abordadas de um modo especifico. É um fenómeno muito europeu, em que os pediatras ingleses, franceses e alemães marcaram o que viria a passar-se no resto do mundo.
Em Portugal, também nessa altura uma série de personalidades começa a dedicar-se à pediatria. Por volta de 1911, e no âmbito da refundação da universidade, é criada a cátedra de pediatra que é entregue a Jaime Salazar de Sousa, director de uma enfermaria para crianças no Hospital de D. Estefânia. Este foi, talvez, o primeiro dos pontos de viragem a que há pouco me referi. A ele sucede o professor Castro Freire, ainda no Hospital de Santa Marta, começando então a desenvolver-se aquilo que se poderá considerar como uma verdadeira escola de pediatras, os quais, para todos os efeitos, serão os primeiros do nosso pais. Mais tarde, e já no Hospital de Santa Maria, o professor Carlos Salazar de Sousa (filho de J. Salazar de Sousa), viria a imprimir à já então Clínica Universitária de Pediatria, uma dinâmica de grande modernidade. Era uma pessoa brilhante do ponto de vista científico e foi ele que projectou internacionalmente a nossa pediatria.
Outro dos pontos de viragem foi a década de 70 e o 25 de Abril, em que uma geração médicos se começou a interrogar sobre a orientação que tradicionalmente era dada à prática da pediatria. Essa geração, a que me orgulho de pertencer, propunha que ela deveria ser vista como uma medicina interna, com as suas especialidades e as suas técnicas de diagnóstico e terapêutica, conceito que não estava ainda muito generalizado. Lembro, por exemplo, que quando o Prof. Pinto Correia (que estava longe de ser um tradicionalista…) me propôs ficar no seu Serviço e eu lhe disse que viria para a pediatria ele me respondeu «Mas para quê? Lá só tens papas e vacinas!»
Newsletter: Esse grupo de trabalho também lançou o pilar daquilo que é hoje a formação em pediatria…
Professor Doutor Paulo Ramalho: Isso não foi assim, já que a formação foi sempre uma preocupação constante de todas as gerações que nos tinham antecedido. O nosso objectivo foi antes desenvolver uma filosofia nova para a prática hospitalar e a criação das estruturas adequadas a essa prática: Unidades Clínicas Especializadas, Unidades de Técnicas Pediátricas, Núcleos para a gestão das grandes áreas, uma biblioteca que funcionasse como pólo de transmissão de conhecimento, etc. Alargámos, portanto, o panorama da formação pediátrica e esta actuação acabou por ter cada vez mais seguidores em todo o país. Por isso nos tornámos então num centro de formação a que acorriam médicos de todos os hospitais e num pilar precioso para o desenvolvimento diferenciado da pediatria portuguesa.
Newsletter: O senhor Professor referiu a formação, o replicar de modelos. Mas, ao nível da pós-graduação, tem que haver doutorados para assegurar a continuidade do modelo. E esta não é uma área em que haja muitos doutorados.
Professor Doutor Paulo Ramalho: É verdade. Eu atrever-me-ia a dizer que isto é em grande parte resultante de nunca termos sido um verdadeiro hospital escolar, continuando a admitir-se que se possa aqui trabalhar sem fazer ensino e investigação, ou que tudo seja compatibilizável com cada vez menos disponibilidade.
De facto, como é possível acreditar que se possa fazer investigação, quando simultaneamente se está escalado para 24 horas de serviço de urgência duas vezes por semana, e ainda assegurar consultas, técnicas, enfermaria, etc.? É um erro absoluto, com o qual se continua a pactuar, como se se pudesse fazer omoletas sem ovos.
De facto, ou os decisores percebem a importância da investigação, de uma carreira académica, e lhe dão condições para que elas se concretizem, ou estes dois campos serão sempre preteridos pelos clínicos.
Newsletter: Já que refere isso, Professor, a Pediatria, nos últimos 15 anos, é a especialidade, aqui na Faculdade, com menor número de Doutorados.
Professor Doutor Paulo Ramalho : O que é natural, se tiver em conta tudo o que disse.
Newsletter: E, neste momento, com menos alunos inscritos no Doutoramento dessa Especialidade.
Professor Doutor Paulo Ramalho : Neste momento temos apenas três. Não nego isso, mas insisto em que o problema está nas condições que os mais novos encontram para se disporem a avançar com um projecto de doutoramento. O Programa Doutoral foi fundamental para integrar os internos numa perspectiva coerente nesta área, mas continuo a achar que a questão fundamental é a da organização do trabalho, já que, nas circunstâncias actuais, os profissionais não podem ser dispensados de actividades fulcrais para os Serviços para se dedicarem regularmente à investigação. Um dado particularmente demonstrativo desta realidade é a comparação entre a média das idades com que se faz um doutoramento nas cadeiras clínicas e nas cadeiras pré-clínicas…
É cada vez mais necessário um entendimento entre a Faculdade, o Hospital e os decisores políticos, para que esta situação se modifique rapidamente, até porque ela acaba por ter repercussões, nomeadamente na qualidade do ensino pré-graduado.
Esta é, de resto, uma área que, quanto a mim, deveria merecer também um reflexão profunda. Para lá do aumento irracional do número de alunos e da disponibilidade cada vez menor dos docentes, os tempos lectivos devem corresponder aos objectivos globais do ensino médico. Veja-se, por exemplo, o caso de Pediatria II, onde o aluno inicia o seu contacto com a patologia pediátrica e que, por isso mesmo, deveria ser eminentemente prática, mas hoje dispõe apenas de 25% do seu tempo para o contacto directo com o doente. Não faz sentido!
Newsletter: Professor, crê que a diminuição no número de doutorados nesta área e a qualidade do ensino que está a ser ministrada neste momento poderão vir a constituir uma fragilidade na pediatria?
Professor Doutor Paulo Ramalho: Não tenho a menor dúvida.
Newsletter: Houve um retrocesso?
Professor Doutor Paulo Ramalho: Cada período corresponde a uma realidade com as suas características. Neste momento, em que o Programa Doutoral está a arrancar, é previsível que haja mudanças nesta área, embora não acredite que, no essencial, a actual situação se modifique substancialmente.
Voltemos ao caso de Pediatria II, limitada como está a doze semanas de aulas e a doze aulas práticas. Não serão quaisquer Mestrados Integrados que resolverão esta ordem de problemas, mas acredito que se torna cada vez mais necessária uma grande reflexão sobre o ensino médico.
Newsletter: Daqui a uns anos estaremos perante um ensino da medicina completamente diferente, pouca prática e muita teoria?
Professor Doutor Paulo Ramalho: Esse é um modelo que até agora tem sido considerado inadequado e seria um pouco como voltar às universidades medievais!
Newsletter: O Processo de Bolonha está por toda a Europa...
Professor Doutor Paulo Ramalho: Tenho muitas dúvidas sobre quais foram as verdadeiras motivações que levaram à adopção do Processo de Bolonha entre nós, pelo menos no que toca ao ensino da medicina. O mínimo que se poderá dizer é que foi uma transformação insuficientemente debatida.
Se bem me lembro, Bolonha surgiu porque a Europa se começou a preocupar com as universidades americanas (seria bom que se começasse a preocupar também com as chinesas e indianas...). Mas as americanas distinguem-se precisamente porque têm uma componente prática e de investigação enorme, o que, nas escolas portuguesas, continuou a não existir. Basta olhar para o que se está a passar com as teses de mestrado, que cada vez mais são apenas trabalhos de revisão com uma componente de investigação residual. Creio que não era isso que estava no espírito de Bolonha.
Newsletter: Quer dizer que o modelo, que hoje se defende, do médico-cientista, é impossível?
Professor Doutor Paulo Ramalho : Não quero ser tão pessimista. Acredito é que estamos uma vez mais a perder uma oportunidade de melhorar a formação dos futuros médicos contribuindo por outro lado, para o desenvolvimento do facilitismo que tanto nos caracteriza.
Newsletter: Quais as fragilidades ou carências do Serviço?
Professor Doutor Paulo Ramalho: Do que atrás fica dito, ressaltam já algumas das principais fragilidades da Clínica Universitária de Pediatria/Departamento da Criança e da Família, as quais se relacionam sobretudo com a desejável compatibilização entre um ensino de qualidade e as necessidades de um hospital com inegáveis limitações estruturais e enormes responsabilidades assistenciais.
Neste contexto, tem sido fundamental manter uma cultura de complementaridade entre a Faculdade e o Hospital, a qual, no entanto, para se poder manter, tem de manifestar-se de forma coerente a todos os níveis.
Por isso seria fundamental que quem pretendesse trabalhar aqui soubesse de antemão que poderia ser destacado para funções pedagógicas ou assistenciais, de acordo com as necessidades, oportunidades, projectos pessoais, etc. Hoje isso infelizmente não acontece nas áreas clínicas, onde os contratos são feitos tendo em conta apenas os interesses hospitalares.
Na mesma ordem de ideias, as duas instituições têm de assumir clara e rapidamente um programa agressivo de fixação de novos profissionais, de forma a manter a qualidade dos serviços prestados e a evitar atempadamente os riscos de um fosso inter-geracional.
Apesar destas dificuldades, tem sido possível desenvolver essa complementaridade, a qual se concretiza, nomeadamente, pela utilização de recursos humanos e espaços comuns e pela ligação electrónica da nossa Biblioteca à Biblioteca da Faculdade. Nesta linha de pensamento foi possível reorganizar e reunir numa página do portal da Faculdade toda a informação relativa à formação pediátrica realizada pelo HSM/FML, o que permitiu a sua divulgação para Hospitais Distritais, Centros de Saúde e todos os profissionais ligados à saúde da criança e do adolescente.
Outro dos nossos objectivos é a criação de um Centro de Formação Pediátrica integrando as duas vertentes institucionais. Com algumas modificações, a área anteriormente ocupada pelo Laboratório da FML no piso 7 será consagrada a esse pólo de formação, o qual nos irá permitir pensar a sério nos centros de saúde, nos hospitais distritais e nos PALOP. Deste modo se poderá dar seguimento ao acordo entre a Faculdade de Medicina de Lisboa e a Faculdade Agostinho Neto que conseguimos estabelecer há uns anos.
Há que manter portanto, a dinâmica criada pelos meus antecessores. Projectos não me faltam. O tempo é que não me sobra…
