Reportagem / Perfil
Entrevista com o Professor Doutor Gomes-Pedro
«Cada um de nós, seja em que idade for, tem um novo ciclo à sua frente. Temos que aproveitar estes ciclos para fazer aquilo que entendemos que nos compete e que é nossa responsabilidade de intervenção e isto envolve-nos a todos. Ninguém faz nada sozinho, eu não fiz nada sozinho, fiz em equipa e é para todas essas pessoas que trabalharam comigo que eu queria deixar uma mensagem, um abraço de gratidão, de coragem e força para que continuem no mesmo caminho, fazendo em conjunto aquilo que, no fundo, é a imensidão do que falta ainda fazer .»
Porque os homens são a imagem das instituições que representam, a Newsletter da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa não poderia perder a oportunidade de assinalar a jubilação de uma figura tão relevante – como homem, professor, e médico –, o Professor João Gomes-Pedro, que fez questão de salientar, no entanto, que este é apenas o início de um novo ciclo.
Newsletter: Senhor Professor Gomes-Pedro, antes do mais, gostaríamos de lhe agradecer a sua disponibilidade. É para nós motivo de grande satisfação podermos publicar uma entrevista consigo por ocasião da sua jubilação. Gostaríamos de saber como se define enquanto homem, professor e médico e como articulou ao longo da sua vida estas três vertentes?
Prof. Gomes-Pedro: Agradeço a honra. Numa palavra, se me pedir para me definir, direi sempre que me defino como um universitário. O que quer isto dizer? Um universitário é alguém com exigências relativamente ao saber, relativamente aos outros (alunos, colegas, pares, representantes da sociedade civil, etc.) e com responsabilidade na mudança. Um universitário tem o dever moral de instituir mudança, no sentido pró-activo, positivo, em relação ao que identifica como lacunas ou como oportunidades de viragem para o horizonte que se pretende alcançar. Se me pedir para me definir enquanto universitário (manter-me-ei, enquanto vivo, como universitário; um universitário não se reforma, porventura jubila-se) eu pretendi ser um universitário com responsabilidade na mudança. E estive envolvido em diversas mudanças registadas na Universidade. Se voltasse atrás, repetiria o que fiz. Muitas coisas não decorreriam da mesma forma, mas seguiria o mesmo ideário e voltaria a tentar uma mudança construtiva e significativa na vida da Universidade e, mais concretamente, na vida da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.
Newsletter: Relativamente às mudanças que referiu, quais gostaria de destacar?
Prof. Gomes-Pedro: Enquanto universitário, privilegiei sempre três vectores: investigação, ensino e clínica. Considero-me um clínico, enquanto pediatra, mas um clínico sem docência e sem investigação é como alguém “com as pernas partidas”. Em relação à pergunta, que é muito pertinente, sobre a minha intervenção em termos de mudança, eu diria que só vinte e cinco anos depois desta vida como clínico, como investigador e como docente é que percebi que só poderia fazer chegar aos destinatários algumas destas projecções de mudança se me envolvesse na educação. Fazer chegar a mudança sem envolver estratégias educacionais era trabalhar em vão. Comecei a envolver-me na educação através da acção do Professor Carlos Ribeiro. Participei activamente no GEPOG (Gabinete de Estudos Pós-Graduados da FMUL) e, depois, por acção inteligente e pró-activa do Professor Torres Pereira, assumi a direcção do DEM (Departamento de Educação Médica), que foi, digamos assim, um arejamento nesta Faculdade, por onde passaram mais de cinquenta docentes a fazer formação em educação médica e, neste primeiro investimento educacional, eu tratei não da educação médica pediátrica mas da educação médica global e partimos para vários tipos de reforma na Faculdade de Medicina de Lisboa, de que destaco, por exemplo, o planeamento e construção do Mestrado de Educação Médica. Fizemos dois Mestrados de Educação Médica em que formámos cerca de cinquenta professores, alguns catedráticos, que foram alunos de mestrado, apesar de já catedráticos, e formámos esses cerca de cinquenta professores, que puderam depois, por sua vez, nos seus departamentos, nas suas clínicas, nos seus institutos, construir a mudança. Esta intervenção, primeiro no GEPOG e depois no DEM, foi precedida por outra coisa enquanto presidente do Conselho Pedagógico. Organizei uma reunião com praticamente todos os professores catedráticos e professores regentes associados da ULFM, em que estivemos, como alunos e com dois professores da Sorbonne de educação médica, três dias num hotel de Sesimbra a trabalhar de manhã à noite, e a projectar a mudança necessária, porque só através duma metodologia educacional e duma intervenção educacional, só com competências adquiridas ao nível da educação é possível introduzir as estratégias necessárias à mudança em cada departamento, em cada sector da vida universitária da ULFM. Isto foi qualquer coisa que resultou. Muita da reforma actual e da reforma nessa altura (ou tentativa de reforma) resultou dessa altura. Por exemplo, é dessa altura a criação do Instituto de Introdução à Medicina e a respectiva disciplina, que deu a primeira volta nas estratégias de educação médica. Os nossos alunos do primeiro ano passaram nessa altura a fazer estágios e passaram a fazer visitas educacionais a centros sociais, prisões, creches, centros de emigrantes, centros de apoio a algumas etnias, como os ciganos, portanto os nossos futuros médicos começaram a ter uma vivência da vida real da sociedade que terá sido fundamental. Não foi possível fazer uma reviravolta completa, mas, ao mesmo tempo que se encurtou o curso de medicina criou-se uma oportunidade fundamental de humanização dos médicos em formação. Portanto, eu diria que foi preciso reconhecer a falta de uma estrutura educacional e duma competência educacional, que nos fez usar cerca de doze anos da nossa vida universitária a liderar o departamento de educação médica da Faculdade, para dar alguns passos numa tentativa de reforma que houve nessa altura, com consequências directas, nomeadamente na Introdução à Medicina e, depois, num “efeito de onda” que foi mexendo de forma muito significativa nos vários sectores da vida da nossa Faculdade.
Newsletter: Ao acompanhar a evolução da Pediatria em Portugal nas últimas décadas, sendo um interveniente destacado na mesma, que etapas gostaria de destacar? Gostaríamos que nos dissesse, nomeadamente, como equaciona o papel da FMUL nessa evolução e que nos falasse da nova pediatria, por exemplo.
Prof. Gomes-Pedro: Quando eu me formei, ninguém me ensinou desenvolvimento infantil, comportamento, emoções, psicologia, sociologia, antropologia, tudo aquilo que permite equacionar a criança como um todo, nomeadamente numa perspectiva clínica, situá-la junto dos pais, nomeadamente através de avaliação neuro-comportamental do bebé. Aquilo que aprendemos na altura, usando o estetoscópio, uma espátula, um martelo de reflexos, permitia chegar ao conhecimento de não mais de 50% da pessoa. Depois houve uma viragem para a descoberta do comportamento, do temperamento, da personalidade, de um bebé mesmo com poucas horas de vida, de uma criança, de um jovem adolescente, tudo aquilo que nos permite chegar a quase 100% da pessoa. Fazer essa descoberta junto de uns pais apaixonados pelo seu bebé, que fazem a descoberta connosco, essa partilha, numa altura decisiva da construção familiar, é uma reviravolta, é uma revolução, no espírito e na atitude. Foi a isso que chamámos a nova pediatria. No fundo, é uma pediatria exigindo as mesmas competências clínicas que hoje um médico precisa ter, mas também uma nova atitude, que é esta: o pediatra não é o médico da criança, o pediatra é o médico da criança e da família, dos irmãos, da mãe, do pai, dos avós, da educadora, da professora, etc. Este conjunto, baseado numa perspectiva relacional da vida, faz toda a diferença e foi por isso que lhe chamámos a nova pediatria. Hoje já não faz sentido chamar-lhe “nova”. Ao longo dos anos fomos verificando algumas lacunas. Não se valorizava, por exemplo, o suficiente o aspecto social, e então criou-se a pediatria social, uma secção da sociedade Portuguesa de Pediatria sobre pediatria social, fizeram-se cursos de pediatria social. Hoje isso está ultrapassado, pediatria social faz parte da nova pediatria. Depois começámos outra era, criaram-se novas áreas, novos cursos, por exemplo, pediatria do desenvolvimento, como algo de novo, algo de fundamental. Hoje em dia isso também já não faz sentido, está tudo integrado na pediatria. Depois, a mesma coisa em relação à pediatria do comportamento. Aquelas coisas que os pais nos perguntam todos os dias sobre a alimentação do bebé, sobre o sono, sobre a brincadeira, sobre o jogo, sobre os tempos livres. Isto é a essência da clínica pediátrica de hoje. Hoje também já não faz sentido falarmos em pediatria do comportamento. Porque o comportamento é inerente à pediatria, ao conhecimento pediátrico. Fomos conquistando todas estas etapas, “onda a onda”. O que faz com que hoje mostremos a criança aos nossos estudantes logo no primeiro ano, com a Introdução à Medicina, quando centramos o ensino no “ser pessoa, ser médico, ser doente”. E já temos no segundo ano, ainda ontem dei duas aulas, na Introdução à Medicina da Criança e da Família, temos no terceiro ano Desenvolvimento Infantil e Educação, e por aí fora, no 4º ano com Pediatria I, 5º ano, Pediatria II, somos a primeira faculdade que tem o ensino e aprendizagem da criança do 1º ao 6º ano. Podem chamar-lhe “nova pediatria” se quiserem, mas já não faz sentido, é a pediatria actual. Há várias cadeiras de opção, como sejam Saúde Escolar, Pediatria do Adolescente, que completam, digamos assim, esta atitude global perante a criança e perante a sua circunstância, que é aquilo que a rodeia, que é aquilo que faz parte dela e que nós temos que aprender. Nomeadamente a semiologia, na medicina, na obstetrícia, na neurologia, na dermatologia, etc., que é o estudo dos sinais, temos que ensinar a semiologia da relação, a semiologia do jogo, a semiologia do comportamento, a semiologia do vínculo, aquilo que faz com que a criança se una cada vez mais aos pais ao longo dos primeiros anos de vida.
Newsletter: Sendo o lema da disciplina Introdução à Medicina “Saber ser, saber estar, saber fazer”, como é que o mesmo se traduz na vertente do ensino, investigação e na clínica?
Prof. Gomes-Pedro: É enquanto atitude pedagógica mas o nome correcto é Introdução à Clínica, com 3 componentes fundamentais que são o “ser pessoa”, o “ser médico” e o “ser doente” e temos tido profissionais, psicólogos, sociólogos, antropólogos e profissionais do desporto e docentes de várias áreas do saber. Entre outros, temos tido todos os anos o Seleccionador Nacional de Rugby, que nos vem falar de equipa. Tudo o que tenho estado a falar é trabalho que não é feito sozinho e eu não fiz nada sozinho. Criei equipas e fiz, com essas equipas, aquilo que fui sentindo que era necessário como mudança. Com os nossos administrativos, como por exemplo a Mané, que tem uma relação com os alunos de abraços e de lágrimas, que ultrapassou há muito a sua competência como profissional administrativa e é hoje alguém que, nesta nova perspectiva relacional, é como uma madrinha de cada aluno que está a ajudar, que os incentiva e que lhes dá oportunidades, portanto, esta construção de equipa com colegas, com pares, com administrativos, com alunos, com técnicos, com parceiros, como temos aqui na Introdução á Medicina, pessoas que não são propriamente médicos mas são psicólogos que nos ajudam e temos especialistas em Educação Médica, é portanto com estas equipas que nós fomos construindo tudo isto. Mas retomando a sua questão sobre o lema… o ser pessoa e ser médico exige este trabalho de equipa, exige uma perspectiva, um ensino/aprendizagem de que só se pode trabalhar em equipa. Ninguém pode fazer nada sozinho e fazê-lo em equipa é uma coisa que faz toda a diferença. Por exemplo, o que aconteceu com o nosso seleccionar nacional de rugby, não tendo eu muitos conhecimentos de rugby, sei que Portugal era uma equipa fraca, que ficava atrás de quase todas as equipas do mundo e de repente nós fomos apurados para o campeonato do mundo. Ele fez um milagre á custa de quê? Novos Jogadores? Não! Novas tácticas? Não! Novas técnicas e novas estratégias? Não! Só à custa da preparação da equipa como tal. Nós aproveitámos estas pessoas que vêm ensinar os nossos alunos sobre aspectos que são fundamentais para as suas vidas de futuros médicos. Eles têm que aprender medicina mas têm que aprender que estas coisas fazem parte também de alguma inovação, nomeadamente na formação médica.
Desde os anos 1980/90, a pediatria no 4ºano, na Pediatria I, embora no ciclo clínico, teve sempre como objecto o ensino da Criança normal e vocês poderão perguntar se foi fácil instalar esta mudança. Eu diria que não, muitas vezes no Conselho Científico, e mencionando a importância que teve eu ser Catedrático, alguns colegas perguntavam “Gomes-Pedro, você está no ciclo clínico, estamos a formar médicos que têm de saber tratar doentes e você estar a dar Criança Normal?”, eu respondo que sim, estou a dar criança normal, porque 80% das crianças que vemos são normais, não têm patologia e temos que aprender a lidar com crianças sem patologia, com crianças que vêm com a mãe, com o pai, com a tia, que vêm preocupados e que vêm ansiosos e temos de transformar essa ansiedade em paixão, numa construção nova em que a criança se sinta integrada e que a família sinta que através de uma consulta conseguiu descobrir coisas fundamentais relativamente á sua criança e isto é qualquer coisa que só se aprende desbloqueando a patologia numa fase fundamental da aprendizagem. Claro que nós temos e fazemos bons médicos, no 5º e 6ºano eles aprendem patologias, aprendem doença, aprendem diagnóstico, aprendem terapêutica e isso é fundamental. Nós temos que ter médicos a saber ver bem doentes, mas temos que ter médicos que saibam compreender a pessoa no seu todo, na sua integridade total.
Newsletter: Após este longo percurso, tão frutuoso, o que é que o Senhor Professor destaca e o que considera que ficou por fazer, que podia ter sido feito, noutras condições, e que caminho é que gostaria de ver a Pediatria seguir em Portugal?
Prof. Gomes-Pedro: A consolidação do que está feito, pois considero que nada disto está ganho. Agora temos a pediatria do 1º ao 6º ano, mas se amanhã alguém se lembrar que em vez de dar pediatria no 2º, nós não lhe chamamos pediatria, mas em vez de dar desenvolvimento infantil ou dar introdução á medicina no 2º ou 3ºano, poderá ser dada uma outra área em vez desta. Mas acredito que este é o caminho para aquilo que é, no fundo, uma responsabilidade nossa. Hoje, qualquer cidadão, independentemente de ser pai ou mãe, tem de reconhecer que o fenómeno de mudança, o fenómeno mais significativo da sua vida no campo relacional é o zelar pelos interesses da criança. Quando eu fui ao Comité dos Direitos Humanos, em Genebra, perguntaram-me : ”O que é que vocês fazem pela criança em Portugal nesta perspectiva?” e ainda me perguntaram “E como professor, o que é que faz para ensinar criança na sua faculdade?” Eu respondia que “tenho essa intenção mas não tenho ainda poder para fazer isso!”. Quando tive poder, criei essa possibilidade de ensinar criança do 1º ao 6º ano e, neste momento, perguntam-me: o desafio está ganho? Não está ganho! É preciso que quem continua assegure este ganho e prossiga nesta linha de coerência, porque a criança é o factor baluarte da nossa sociedade. Não existe uma cultura de criança em Portugal, não estão favorecidas as circunstâncias para a criança poder ser feliz em Portugal, falta ainda muita coisa e isso é uma responsabilidade que não é só dos pediatras nem dos futuros médicos que não sejam pediatras, é responsabilidade de quem está numa faculdade de medicina, é responsabilidade dos agentes de educação, dos agentes de saúde, dos agentes do ambiente, dos agentes da justiça e de todos os agentes que intervêm na sociedade e, portanto, esta é uma tarefa conjunta e múltipla, o que eu porventura terei feito foi lançar algumas sementes e agora é preciso regá-las!
Newsletter: Qual o papel do Centro Brazelton em Portugal e qual o futuro que perspectiva para o mesmo?
Prof. Gomes-Pedro: É muito importante! Começámos com a criação do Centro Brazelton, que encarna no fundo toda esta filosofia, nomeadamente em relação ao que nós hoje chamamos de touchpoints, no sentido em que há pontos de viragem no nosso desenvolvimento e que é preciso aproveitar esses pontos, como por exemplo, o nascer. O nascer não é só ensinar ou promover a amamentação, ou ensinar como é que um bebé mama ou ensinar a mudar a fralda, é todo um touchpoint fundamental da vida, que pode revolucionar a vida de uma família. O papel do pediatra, o papel do médico, o papel da enfermeira, o papel do técnico administrativo que está no serviço de obstetrícia ou da empregada de limpeza é favorecer a ligação deste bebé em termos de paixão, em termos de descoberta, de explosão em termos de felicidade com a família e, se assim for, nunca mais um pai ou uma mãe se esquecem daqueles momentos fundamentais e que podem ser significativos no resto da sua vida. Portanto, o Centro Brazelton encarna a inspiração que nós fomos ganhando para esta actuação e, com base nisso, criámos, há semanas, a Fundação, a que chamámos Brazelton/Gomes-Pedro para as Ciências do Bebé e da Família, que no fundo vai, junto da sociedade, expandir no mesmo modo que fizemos na Faculdade de Medicina e no Hospital de Santa Maria – ensino, formação, investigação, etc. – no mesmo espírito, envolvendo outros profissionais que intervêm junto à criança.
Newsletter: Gostaria de deixar mais alguma mensagem que gostasse de ver publicada na Newsletter?
Professor Gomes-Pedro: A minha última mensagem é a que transmiti na minha ultima lição, que a vida não tem começos nem fins, tem ciclos que continuam. O meu 1º slide na minha última lição dizia “ última lição” e o último slide que mostrei dizia “1ª lição de um novo ciclo”. Cada um de nós, seja em que idade for, tem um novo ciclo à sua frente e temos que aproveitar estes ciclos para fazer aquilo que entendemos que nos compete e que é nossa responsabilidade de intervenção e isto envolve-nos a todos. Insisto no que disse há pouco, ninguém faz nada sozinho, eu não fiz nada sozinho, fiz em equipa com toda a gente e é para todas essas pessoas que fizeram coisas comigo que eu queria deixar uma mensagem, um abraço de gratidão, de coragem e força para que continuem no mesmo caminho, fazendo em conjunto aquilo que, no fundo, é a imensidão do que falta ainda fazer.
Porque os homens são a imagem das instituições que representam, a Newsletter da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa não poderia perder a oportunidade de assinalar a jubilação de uma figura tão relevante – como homem, professor, e médico –, o Professor João Gomes-Pedro, que fez questão de salientar, no entanto, que este é apenas o início de um novo ciclo.
Newsletter: Senhor Professor Gomes-Pedro, antes do mais, gostaríamos de lhe agradecer a sua disponibilidade. É para nós motivo de grande satisfação podermos publicar uma entrevista consigo por ocasião da sua jubilação. Gostaríamos de saber como se define enquanto homem, professor e médico e como articulou ao longo da sua vida estas três vertentes?
Prof. Gomes-Pedro: Agradeço a honra. Numa palavra, se me pedir para me definir, direi sempre que me defino como um universitário. O que quer isto dizer? Um universitário é alguém com exigências relativamente ao saber, relativamente aos outros (alunos, colegas, pares, representantes da sociedade civil, etc.) e com responsabilidade na mudança. Um universitário tem o dever moral de instituir mudança, no sentido pró-activo, positivo, em relação ao que identifica como lacunas ou como oportunidades de viragem para o horizonte que se pretende alcançar. Se me pedir para me definir enquanto universitário (manter-me-ei, enquanto vivo, como universitário; um universitário não se reforma, porventura jubila-se) eu pretendi ser um universitário com responsabilidade na mudança. E estive envolvido em diversas mudanças registadas na Universidade. Se voltasse atrás, repetiria o que fiz. Muitas coisas não decorreriam da mesma forma, mas seguiria o mesmo ideário e voltaria a tentar uma mudança construtiva e significativa na vida da Universidade e, mais concretamente, na vida da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.
Newsletter: Relativamente às mudanças que referiu, quais gostaria de destacar?
Prof. Gomes-Pedro: Enquanto universitário, privilegiei sempre três vectores: investigação, ensino e clínica. Considero-me um clínico, enquanto pediatra, mas um clínico sem docência e sem investigação é como alguém “com as pernas partidas”. Em relação à pergunta, que é muito pertinente, sobre a minha intervenção em termos de mudança, eu diria que só vinte e cinco anos depois desta vida como clínico, como investigador e como docente é que percebi que só poderia fazer chegar aos destinatários algumas destas projecções de mudança se me envolvesse na educação. Fazer chegar a mudança sem envolver estratégias educacionais era trabalhar em vão. Comecei a envolver-me na educação através da acção do Professor Carlos Ribeiro. Participei activamente no GEPOG (Gabinete de Estudos Pós-Graduados da FMUL) e, depois, por acção inteligente e pró-activa do Professor Torres Pereira, assumi a direcção do DEM (Departamento de Educação Médica), que foi, digamos assim, um arejamento nesta Faculdade, por onde passaram mais de cinquenta docentes a fazer formação em educação médica e, neste primeiro investimento educacional, eu tratei não da educação médica pediátrica mas da educação médica global e partimos para vários tipos de reforma na Faculdade de Medicina de Lisboa, de que destaco, por exemplo, o planeamento e construção do Mestrado de Educação Médica. Fizemos dois Mestrados de Educação Médica em que formámos cerca de cinquenta professores, alguns catedráticos, que foram alunos de mestrado, apesar de já catedráticos, e formámos esses cerca de cinquenta professores, que puderam depois, por sua vez, nos seus departamentos, nas suas clínicas, nos seus institutos, construir a mudança. Esta intervenção, primeiro no GEPOG e depois no DEM, foi precedida por outra coisa enquanto presidente do Conselho Pedagógico. Organizei uma reunião com praticamente todos os professores catedráticos e professores regentes associados da ULFM, em que estivemos, como alunos e com dois professores da Sorbonne de educação médica, três dias num hotel de Sesimbra a trabalhar de manhã à noite, e a projectar a mudança necessária, porque só através duma metodologia educacional e duma intervenção educacional, só com competências adquiridas ao nível da educação é possível introduzir as estratégias necessárias à mudança em cada departamento, em cada sector da vida universitária da ULFM. Isto foi qualquer coisa que resultou. Muita da reforma actual e da reforma nessa altura (ou tentativa de reforma) resultou dessa altura. Por exemplo, é dessa altura a criação do Instituto de Introdução à Medicina e a respectiva disciplina, que deu a primeira volta nas estratégias de educação médica. Os nossos alunos do primeiro ano passaram nessa altura a fazer estágios e passaram a fazer visitas educacionais a centros sociais, prisões, creches, centros de emigrantes, centros de apoio a algumas etnias, como os ciganos, portanto os nossos futuros médicos começaram a ter uma vivência da vida real da sociedade que terá sido fundamental. Não foi possível fazer uma reviravolta completa, mas, ao mesmo tempo que se encurtou o curso de medicina criou-se uma oportunidade fundamental de humanização dos médicos em formação. Portanto, eu diria que foi preciso reconhecer a falta de uma estrutura educacional e duma competência educacional, que nos fez usar cerca de doze anos da nossa vida universitária a liderar o departamento de educação médica da Faculdade, para dar alguns passos numa tentativa de reforma que houve nessa altura, com consequências directas, nomeadamente na Introdução à Medicina e, depois, num “efeito de onda” que foi mexendo de forma muito significativa nos vários sectores da vida da nossa Faculdade.
Newsletter: Ao acompanhar a evolução da Pediatria em Portugal nas últimas décadas, sendo um interveniente destacado na mesma, que etapas gostaria de destacar? Gostaríamos que nos dissesse, nomeadamente, como equaciona o papel da FMUL nessa evolução e que nos falasse da nova pediatria, por exemplo.
Prof. Gomes-Pedro: Quando eu me formei, ninguém me ensinou desenvolvimento infantil, comportamento, emoções, psicologia, sociologia, antropologia, tudo aquilo que permite equacionar a criança como um todo, nomeadamente numa perspectiva clínica, situá-la junto dos pais, nomeadamente através de avaliação neuro-comportamental do bebé. Aquilo que aprendemos na altura, usando o estetoscópio, uma espátula, um martelo de reflexos, permitia chegar ao conhecimento de não mais de 50% da pessoa. Depois houve uma viragem para a descoberta do comportamento, do temperamento, da personalidade, de um bebé mesmo com poucas horas de vida, de uma criança, de um jovem adolescente, tudo aquilo que nos permite chegar a quase 100% da pessoa. Fazer essa descoberta junto de uns pais apaixonados pelo seu bebé, que fazem a descoberta connosco, essa partilha, numa altura decisiva da construção familiar, é uma reviravolta, é uma revolução, no espírito e na atitude. Foi a isso que chamámos a nova pediatria. No fundo, é uma pediatria exigindo as mesmas competências clínicas que hoje um médico precisa ter, mas também uma nova atitude, que é esta: o pediatra não é o médico da criança, o pediatra é o médico da criança e da família, dos irmãos, da mãe, do pai, dos avós, da educadora, da professora, etc. Este conjunto, baseado numa perspectiva relacional da vida, faz toda a diferença e foi por isso que lhe chamámos a nova pediatria. Hoje já não faz sentido chamar-lhe “nova”. Ao longo dos anos fomos verificando algumas lacunas. Não se valorizava, por exemplo, o suficiente o aspecto social, e então criou-se a pediatria social, uma secção da sociedade Portuguesa de Pediatria sobre pediatria social, fizeram-se cursos de pediatria social. Hoje isso está ultrapassado, pediatria social faz parte da nova pediatria. Depois começámos outra era, criaram-se novas áreas, novos cursos, por exemplo, pediatria do desenvolvimento, como algo de novo, algo de fundamental. Hoje em dia isso também já não faz sentido, está tudo integrado na pediatria. Depois, a mesma coisa em relação à pediatria do comportamento. Aquelas coisas que os pais nos perguntam todos os dias sobre a alimentação do bebé, sobre o sono, sobre a brincadeira, sobre o jogo, sobre os tempos livres. Isto é a essência da clínica pediátrica de hoje. Hoje também já não faz sentido falarmos em pediatria do comportamento. Porque o comportamento é inerente à pediatria, ao conhecimento pediátrico. Fomos conquistando todas estas etapas, “onda a onda”. O que faz com que hoje mostremos a criança aos nossos estudantes logo no primeiro ano, com a Introdução à Medicina, quando centramos o ensino no “ser pessoa, ser médico, ser doente”. E já temos no segundo ano, ainda ontem dei duas aulas, na Introdução à Medicina da Criança e da Família, temos no terceiro ano Desenvolvimento Infantil e Educação, e por aí fora, no 4º ano com Pediatria I, 5º ano, Pediatria II, somos a primeira faculdade que tem o ensino e aprendizagem da criança do 1º ao 6º ano. Podem chamar-lhe “nova pediatria” se quiserem, mas já não faz sentido, é a pediatria actual. Há várias cadeiras de opção, como sejam Saúde Escolar, Pediatria do Adolescente, que completam, digamos assim, esta atitude global perante a criança e perante a sua circunstância, que é aquilo que a rodeia, que é aquilo que faz parte dela e que nós temos que aprender. Nomeadamente a semiologia, na medicina, na obstetrícia, na neurologia, na dermatologia, etc., que é o estudo dos sinais, temos que ensinar a semiologia da relação, a semiologia do jogo, a semiologia do comportamento, a semiologia do vínculo, aquilo que faz com que a criança se una cada vez mais aos pais ao longo dos primeiros anos de vida.
Newsletter: Sendo o lema da disciplina Introdução à Medicina “Saber ser, saber estar, saber fazer”, como é que o mesmo se traduz na vertente do ensino, investigação e na clínica?
Prof. Gomes-Pedro: É enquanto atitude pedagógica mas o nome correcto é Introdução à Clínica, com 3 componentes fundamentais que são o “ser pessoa”, o “ser médico” e o “ser doente” e temos tido profissionais, psicólogos, sociólogos, antropólogos e profissionais do desporto e docentes de várias áreas do saber. Entre outros, temos tido todos os anos o Seleccionador Nacional de Rugby, que nos vem falar de equipa. Tudo o que tenho estado a falar é trabalho que não é feito sozinho e eu não fiz nada sozinho. Criei equipas e fiz, com essas equipas, aquilo que fui sentindo que era necessário como mudança. Com os nossos administrativos, como por exemplo a Mané, que tem uma relação com os alunos de abraços e de lágrimas, que ultrapassou há muito a sua competência como profissional administrativa e é hoje alguém que, nesta nova perspectiva relacional, é como uma madrinha de cada aluno que está a ajudar, que os incentiva e que lhes dá oportunidades, portanto, esta construção de equipa com colegas, com pares, com administrativos, com alunos, com técnicos, com parceiros, como temos aqui na Introdução á Medicina, pessoas que não são propriamente médicos mas são psicólogos que nos ajudam e temos especialistas em Educação Médica, é portanto com estas equipas que nós fomos construindo tudo isto. Mas retomando a sua questão sobre o lema… o ser pessoa e ser médico exige este trabalho de equipa, exige uma perspectiva, um ensino/aprendizagem de que só se pode trabalhar em equipa. Ninguém pode fazer nada sozinho e fazê-lo em equipa é uma coisa que faz toda a diferença. Por exemplo, o que aconteceu com o nosso seleccionar nacional de rugby, não tendo eu muitos conhecimentos de rugby, sei que Portugal era uma equipa fraca, que ficava atrás de quase todas as equipas do mundo e de repente nós fomos apurados para o campeonato do mundo. Ele fez um milagre á custa de quê? Novos Jogadores? Não! Novas tácticas? Não! Novas técnicas e novas estratégias? Não! Só à custa da preparação da equipa como tal. Nós aproveitámos estas pessoas que vêm ensinar os nossos alunos sobre aspectos que são fundamentais para as suas vidas de futuros médicos. Eles têm que aprender medicina mas têm que aprender que estas coisas fazem parte também de alguma inovação, nomeadamente na formação médica.
Desde os anos 1980/90, a pediatria no 4ºano, na Pediatria I, embora no ciclo clínico, teve sempre como objecto o ensino da Criança normal e vocês poderão perguntar se foi fácil instalar esta mudança. Eu diria que não, muitas vezes no Conselho Científico, e mencionando a importância que teve eu ser Catedrático, alguns colegas perguntavam “Gomes-Pedro, você está no ciclo clínico, estamos a formar médicos que têm de saber tratar doentes e você estar a dar Criança Normal?”, eu respondo que sim, estou a dar criança normal, porque 80% das crianças que vemos são normais, não têm patologia e temos que aprender a lidar com crianças sem patologia, com crianças que vêm com a mãe, com o pai, com a tia, que vêm preocupados e que vêm ansiosos e temos de transformar essa ansiedade em paixão, numa construção nova em que a criança se sinta integrada e que a família sinta que através de uma consulta conseguiu descobrir coisas fundamentais relativamente á sua criança e isto é qualquer coisa que só se aprende desbloqueando a patologia numa fase fundamental da aprendizagem. Claro que nós temos e fazemos bons médicos, no 5º e 6ºano eles aprendem patologias, aprendem doença, aprendem diagnóstico, aprendem terapêutica e isso é fundamental. Nós temos que ter médicos a saber ver bem doentes, mas temos que ter médicos que saibam compreender a pessoa no seu todo, na sua integridade total.
Prof. Gomes-Pedro: A consolidação do que está feito, pois considero que nada disto está ganho. Agora temos a pediatria do 1º ao 6º ano, mas se amanhã alguém se lembrar que em vez de dar pediatria no 2º, nós não lhe chamamos pediatria, mas em vez de dar desenvolvimento infantil ou dar introdução á medicina no 2º ou 3ºano, poderá ser dada uma outra área em vez desta. Mas acredito que este é o caminho para aquilo que é, no fundo, uma responsabilidade nossa. Hoje, qualquer cidadão, independentemente de ser pai ou mãe, tem de reconhecer que o fenómeno de mudança, o fenómeno mais significativo da sua vida no campo relacional é o zelar pelos interesses da criança. Quando eu fui ao Comité dos Direitos Humanos, em Genebra, perguntaram-me : ”O que é que vocês fazem pela criança em Portugal nesta perspectiva?” e ainda me perguntaram “E como professor, o que é que faz para ensinar criança na sua faculdade?” Eu respondia que “tenho essa intenção mas não tenho ainda poder para fazer isso!”. Quando tive poder, criei essa possibilidade de ensinar criança do 1º ao 6º ano e, neste momento, perguntam-me: o desafio está ganho? Não está ganho! É preciso que quem continua assegure este ganho e prossiga nesta linha de coerência, porque a criança é o factor baluarte da nossa sociedade. Não existe uma cultura de criança em Portugal, não estão favorecidas as circunstâncias para a criança poder ser feliz em Portugal, falta ainda muita coisa e isso é uma responsabilidade que não é só dos pediatras nem dos futuros médicos que não sejam pediatras, é responsabilidade de quem está numa faculdade de medicina, é responsabilidade dos agentes de educação, dos agentes de saúde, dos agentes do ambiente, dos agentes da justiça e de todos os agentes que intervêm na sociedade e, portanto, esta é uma tarefa conjunta e múltipla, o que eu porventura terei feito foi lançar algumas sementes e agora é preciso regá-las!
Newsletter: Qual o papel do Centro Brazelton em Portugal e qual o futuro que perspectiva para o mesmo?
Prof. Gomes-Pedro: É muito importante! Começámos com a criação do Centro Brazelton, que encarna no fundo toda esta filosofia, nomeadamente em relação ao que nós hoje chamamos de touchpoints, no sentido em que há pontos de viragem no nosso desenvolvimento e que é preciso aproveitar esses pontos, como por exemplo, o nascer. O nascer não é só ensinar ou promover a amamentação, ou ensinar como é que um bebé mama ou ensinar a mudar a fralda, é todo um touchpoint fundamental da vida, que pode revolucionar a vida de uma família. O papel do pediatra, o papel do médico, o papel da enfermeira, o papel do técnico administrativo que está no serviço de obstetrícia ou da empregada de limpeza é favorecer a ligação deste bebé em termos de paixão, em termos de descoberta, de explosão em termos de felicidade com a família e, se assim for, nunca mais um pai ou uma mãe se esquecem daqueles momentos fundamentais e que podem ser significativos no resto da sua vida. Portanto, o Centro Brazelton encarna a inspiração que nós fomos ganhando para esta actuação e, com base nisso, criámos, há semanas, a Fundação, a que chamámos Brazelton/Gomes-Pedro para as Ciências do Bebé e da Família, que no fundo vai, junto da sociedade, expandir no mesmo modo que fizemos na Faculdade de Medicina e no Hospital de Santa Maria – ensino, formação, investigação, etc. – no mesmo espírito, envolvendo outros profissionais que intervêm junto à criança.
Newsletter: Gostaria de deixar mais alguma mensagem que gostasse de ver publicada na Newsletter?
Professor Gomes-Pedro: A minha última mensagem é a que transmiti na minha ultima lição, que a vida não tem começos nem fins, tem ciclos que continuam. O meu 1º slide na minha última lição dizia “ última lição” e o último slide que mostrei dizia “1ª lição de um novo ciclo”. Cada um de nós, seja em que idade for, tem um novo ciclo à sua frente e temos que aproveitar estes ciclos para fazer aquilo que entendemos que nos compete e que é nossa responsabilidade de intervenção e isto envolve-nos a todos. Insisto no que disse há pouco, ninguém faz nada sozinho, eu não fiz nada sozinho, fiz em equipa com toda a gente e é para todas essas pessoas que fizeram coisas comigo que eu queria deixar uma mensagem, um abraço de gratidão, de coragem e força para que continuem no mesmo caminho, fazendo em conjunto aquilo que, no fundo, é a imensidão do que falta ainda fazer.
