Espaço Aberto
Psiquiatria de Ligação e Bioética
As relações entre Filosofia/Ética e Psiquiatria são tão antigas como estas duas disciplinas, isto é, como a própria cultura ocidental, já que foi a civilização grega a primeira que procurou dar uma resposta racional ao problema do bem e do mal e também a primeira que elaborou uma medicina racional. No entanto, estas relações tiveram enfoques muito diferentes.
O de uma psiquiatria da ética: “O vício como doença” (o mal é um erro, quem o elege é porque está equivocado sobre a sua verdadeira natureza, quer por ignorância, quer por doença ).
O de uma ética da psiquiatria: “A doença como vício” (todas as doenças, pelos menos as graves, ao acompanharem-se de dor e de sofrimento determinariam uma espécie de perturbação mental que tornaria o ser humano incapaz de discernimento, de razoabilidade, de prudência).
A complexidade das relações e dos problemas envolvidos na prática da medicina contemporânea (Barbosa, 1988, 1997b) remete, muitas vezes, o psiquiatra de ligação para um papel mediador entre as perspectivas dos médicos, dos enfermeiros e dos doentes e suas famílias em determinado tipo de contextos clínicos.
A psiquiatria de ligação é uma área da psiquiatria clínica que inclui todas as actividades de psiquiatria/psicologia nos serviços não psiquiátricos no hospital geral. Estas actividades situam-se a três níveis: 1) clínico, incluindo o diagnóstico, a terapêutica e a prevenção; 2) ensino, ou seja, da formação psicológica/psiquiátrica dos outros técnicos; 3) investigação. Temos vindo a desenvolver esta actividade desde 1987, data do início formal da actividade do Núcleo de Psiquiatria de Ligação do Hospital de Santa Maria.
Os aspectos psiquiátricos dos problemas de bioética são muito comuns e confluentes também com aspectos legais, económicos, sociais, institucionais e religiosos (Lederberg, 1997). Os psiquiatras de ligação são, tradicionalmente e diariamente, amplamente envolvidos em problemas clínicos que se constituem muitas vezes em verdadeiras consultas éticas (Steinberg, 1997), estando quase sempre bem posicionados para o fazer (Binder, 2002).
Os principais problemas éticos em psiquiatria de ligação são fundamentalmente:
1. Problemas relativos ao princípio do respeito pela autonomia.
Cada doente é um ser competente com os seus direitos humanos intactos e a interrupção dos direitos humanos (internamento ou tratamento contra vontade) só poderá efectivar-se como uma excepção e procurando sempre o benefício do doente.
O psiquiatra, ao avaliar a capacidade dos doentes, pode também perpetuar ainda erros do passado (considerar todos os doentes incapazes, ou certos tipos de doentes, como os psiquiátricos, como incapazes ou, pelo contrário, utilizar rigorosamente e de forma adequada e actual critérios funcionais).
2. Problemas relativos ao princípio da beneficência.
Um dos mais frequentes conflitos entre beneficência e autonomia é o da recusa de um doente em iniciar um tratamento ou a sua vontade expressa de deixar um tratamento em curso prescrito pela equipa ou pelo médico. Trata-se de, através de uma avaliação psiquiátrica, perceber se o doente tem capacidade de tomada de decisão e se não põe em risco a si próprio ou a outros com essa sua decisão.
3. Problemas relativos ao princípio da não-maleficência.
A quebra da confidencialidade para evitar o dano de outros, mas também problemas derivados do direito a saber ou não a verdade, de negligência, imperícia, ignorância.
4. Problemas relativos ao princípio da justiça.
Uma ética da não-discriminação, segregação ou marginalização, evitando o internamento como “castigo”, bem como a distribuição dos recursos escassos evitando que sofram os vulneráveis (os mais fracos, os mais débeis, os doentes mentais).
5. Problemas relativos à ética relacional.
Dificuldades de comunicação interpessoal e intra-equipa, bem como, crenças distorcidas dos profissionais de saúde sobre o que deve ser do domínio ético e o que deve ser do domínio psicológico ou psiquiátrico (Barbosa, 2010).
6. Problemas psiquiátricos com incidência em problemas éticos.
A capacidade de decisão nos doentes pode estar transtornada pelo medo actual ou reactivação de medos antigos, ou pode ser provocada por um problema defensivo de negação (normal ou patológica). Por exemplo, na recusa duma cirurgia, a maior parte das causas são factores psicológicos, tais como medo, ansiedade, más experiências prévias com cirurgia ou naquele hospital, desconfiança dos médicos, problemas de comunicação (Barbosa, 1989).
Um outro factor psicológico por vezes difícil de reconhecer é a depressão, porque o doente deprimido geralmente oferece explicações racionais para as escolhas que são feitas (Barbosa, 1984). É importante avaliar os sentimentos de abandono, desamparo, desespero, sentimento de futuro sem sentido ou ideias de suicídio. Os aspectos depressivos que mais minam a capacidade dos doentes são as avaliações distorcidas sobre si próprio, sobre o mundo, sobre o futuro. Às vezes um tratamento antidepressivo pode ser útil para clarificar se a depressão interfere com a sua capacidade de decisão.
Principais aspectos psiquiátricos relacionados com dificuldades éticas
- Psicopatologia diagnosticável em qualquer dos intervenientes do conflito ético
- Estilos de personalidade e problemas psicodinâmicos
- Disfunção familiar
- Conflitos interpessoais entre doente, família e profissionais de saúde
- Conflitos ou não-cooperação intra-equipa de saúde
- Reacções contra-transferenciais dos profissionais de saúde em relação aos doentes, família e outros agentes
- Desproporcionado envolvimento ou rejeição da equipa de saúde
Podem distinguir-se três tipos de situações que frequentemente ocorrem na prática de um psiquiatra de ligação:
a) Avaliação pseudo-psiquiátrica, quando uma situação aparentemente psiquiátrica mascara um problema ético subjacente.
Na sequência de um impasse nos cuidados a um doente devido a um conflito de valores, pode ocorrer um pedido de avaliação psiquiátrica (conflito entre a família de um doente e a equipa médica sobre a continuidade de intervenções médicas agressivas, invasivas, para um doente em estado grave, totalmente incapacitado). Este tipo de situações merece mais uma consideração ética do que uma avaliação psiquiátrica sobre a capacidade de decisão do doente.
b) Avaliação pseudo-ética, quando na base de um problema ético estão basicamente problemas psiquiátricos.
Este tipo de problemas é especialmente comum em decisões de tratamento em fim de vida, devido à importância dos aspectos emocionais nos processos de tomada de decisão (Callahan, 1988). Por exemplo, a situação de doentes que desejam parar o tratamento ou apressar a morte primariamente devido a excessivo, desproporcionado medo de dependência ou de abandono/desamparo (Barbosa,1997a), mas também por culpa de sobrecarga da família ou ainda por mera ansiedade perante o processo de morte em si. Quando nessas circunstâncias o foco vai para o direito do doente de recusar o tratamento ou para aceitar a escolha dos doentes como mero valor facial, pode-se estar a obscurecer determinantes emocionais vitais no processo de tomada de decisão do doente.
Se por um lado, o reconhecimento destas dificuldades pode ser importante para ajudar a distinguir entre sentimentos latentes e sentimentos manifestos dos doentes (Barbosa, 1999) que, muitas vezes, são a matriz, o ponto chave para a sobrevinda de problemas éticos, por outro lado, não devemos cair na tendência psiquiatrizante de medicalizar ou patologizar todas as formas de tomada de decisão. Há um papel naturalmente para os aspectos éticos, para a decisão moral e para os valores.
c) Um caso psiquiátrico e ético, em que ambos desempenham um papel muito importante.
Em certas circunstâncias os problemas psiquiátricos podem ser um dos aspectos importantes daquela situação, juntamente com problemas éticos, legais, religiosos, económicos, institucionais e outros (Barbosa, 2010b).
Naturalmente, uma das responsabilidades primárias do psiquiatra nos conflitos éticos do tratamento médico é avaliar a capacidade do doente para tomar decisões, mas também corrigir a capacidade diminuída (Cassel, 2001) ou tratar perturbações mentais reversíveis que, ao serem aliviadas, podem permitir todo o processo de consentimento informado.
Tipos de intervenção psiquiátrica com problematicidade ética
- Tratar problemas psicológicos individuais
- Avaliar a capacidade de decisão
- Restaurar, melhorar, estabilizar a capacidade de decisão
- Melhorar a dinâmica familiar disfuncional
- Diagnosticar e melhorar problemas de equipa, do doente, da família, problemas de interface
- Usar a capacidade do psiquiatra para envolver outros cuidadores, se necessário
- Reconhecer e minimizar incongruências culturais ou religiosas
- Avaliar e optimizar a contribuição dos actores sociais ou comunitários
As intervenções psiquiátricas muitas vezes levam à resolução de decisões de tratamento (quer o doente esteja competente ou incompetente) e a recusa de tratamento, que era vista como um procedimento psiquiátrico, começa a ser analisada também como um problema ético. Nem sempre a preparação nesta área é assegurada na formação dos profissionais de saúde (Barbosa, 1997; Preissman, 1999; Youngner, 1997).
António Barbosa
(Professor de Psiquiatria e Director do Centro de Bioética da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa; Co-responsável da Equipa de Psiquiatria de Ligação do Serviço de Psiquiatria do Hospital de Santa Maria)
cbioetica@fm.ul.pt
_____________________
Bibliografia
Barbosa, A. (1984). Psychiatric intervention in the general hospital. Acta Psiquiátrica Portuguesa, 30: 43-47.
Barbosa, A. et al. (1988). Psiquiatria de ligação. Atendimento psiquiátrico num hospital geral. O Médico, 119, 1904: 337-382.
Barbosa, A. (1989). Psiquiatria de ligação em cirurgia. França de Sousa, J., Cardoso, G., Barbosa, A. (eds) Psiquiatria de ligação e psicossomática. Lisboa, Delagrange, 145-154.
Barbosa, A, (1997a). O doente em estadio terminal; Contributo para o ensino. Revista da FML. Série III, 2, 2:95-99
Barbosa, A. (1997b). Formação em psiquiatria de ligação no internato de psiquiatria. Acta Médica Portuguesa, 12:933-942.
Barbosa, A. (1999). Comunicação com o doente em estádio terminal.
in Gomes Pedro, J. Barbosa, A. (eds) Comunicar: na clínica, na educação, na investigação e no ensino (1ª ed.) . Lisboa: Faculdade de Medicina de Lisboa, 69-77.
Barbosa, A. (2010a) Ética relacional in Barbosa, A. , Neto, I (eds) Manual de Cuidados Paliativos (2ª ed.). Lisboa FML/ Centro de Bioética/Núcleo de Cuidados Paliativos, 661-691.
Barbosa, A.(2010b) Processo de deliberação ética in Barbosa, A. , Neto, I (eds) Manual de Cuidados Paliativos (2ª ed.). Lisboa FML/ Centro de Bioética/Núcleo de Cuidados Paliativos, 693-721.
Binder, R.L. (2002). Liability for the psychiatrist expert witness. Am J Psychiatry, 159, 1819-1825.
Callahan, S. (1988). The role of emotion in ethical decision making. Hastings Center Report, June/July, 9-14.
Cassel, E.J., Leon, A.C., Kaufman, St.G. (2001). Preliminary evidence of impaired thinking in sick patients. Ann Intern Med, 134, 1120-1123.
Lederberg, M.S. (1997). Making a situational diagnosis: Psychiatrists at the interface of psychiatry and ethics in the consultation liaison setting. Academy of Psychosomatic Medicine, 38(4), 327-338.
Preisman, R.C. et al (1999). A anotated bibliography for ethics training in consultation-liaison psychiatry. Psychosomatics , 40:5, 369-379.
Steinberg, M.D. (1997). Psychiatry and bioethics an exploration of the relationship. Psychosomatic,38, 313-320.
Youngner, S.J. (1997). Consultation liaison psychiatry and clinical ethics. Academy of Psychosomatic Medicine, 38(4), 309-312.
O de uma psiquiatria da ética: “O vício como doença” (o mal é um erro, quem o elege é porque está equivocado sobre a sua verdadeira natureza, quer por ignorância, quer por doença ).
O de uma ética da psiquiatria: “A doença como vício” (todas as doenças, pelos menos as graves, ao acompanharem-se de dor e de sofrimento determinariam uma espécie de perturbação mental que tornaria o ser humano incapaz de discernimento, de razoabilidade, de prudência).
A complexidade das relações e dos problemas envolvidos na prática da medicina contemporânea (Barbosa, 1988, 1997b) remete, muitas vezes, o psiquiatra de ligação para um papel mediador entre as perspectivas dos médicos, dos enfermeiros e dos doentes e suas famílias em determinado tipo de contextos clínicos.
A psiquiatria de ligação é uma área da psiquiatria clínica que inclui todas as actividades de psiquiatria/psicologia nos serviços não psiquiátricos no hospital geral. Estas actividades situam-se a três níveis: 1) clínico, incluindo o diagnóstico, a terapêutica e a prevenção; 2) ensino, ou seja, da formação psicológica/psiquiátrica dos outros técnicos; 3) investigação. Temos vindo a desenvolver esta actividade desde 1987, data do início formal da actividade do Núcleo de Psiquiatria de Ligação do Hospital de Santa Maria.
Os aspectos psiquiátricos dos problemas de bioética são muito comuns e confluentes também com aspectos legais, económicos, sociais, institucionais e religiosos (Lederberg, 1997). Os psiquiatras de ligação são, tradicionalmente e diariamente, amplamente envolvidos em problemas clínicos que se constituem muitas vezes em verdadeiras consultas éticas (Steinberg, 1997), estando quase sempre bem posicionados para o fazer (Binder, 2002).
Os principais problemas éticos em psiquiatria de ligação são fundamentalmente:
1. Problemas relativos ao princípio do respeito pela autonomia.
Cada doente é um ser competente com os seus direitos humanos intactos e a interrupção dos direitos humanos (internamento ou tratamento contra vontade) só poderá efectivar-se como uma excepção e procurando sempre o benefício do doente.
O psiquiatra, ao avaliar a capacidade dos doentes, pode também perpetuar ainda erros do passado (considerar todos os doentes incapazes, ou certos tipos de doentes, como os psiquiátricos, como incapazes ou, pelo contrário, utilizar rigorosamente e de forma adequada e actual critérios funcionais).
2. Problemas relativos ao princípio da beneficência.
Um dos mais frequentes conflitos entre beneficência e autonomia é o da recusa de um doente em iniciar um tratamento ou a sua vontade expressa de deixar um tratamento em curso prescrito pela equipa ou pelo médico. Trata-se de, através de uma avaliação psiquiátrica, perceber se o doente tem capacidade de tomada de decisão e se não põe em risco a si próprio ou a outros com essa sua decisão.
3. Problemas relativos ao princípio da não-maleficência.
A quebra da confidencialidade para evitar o dano de outros, mas também problemas derivados do direito a saber ou não a verdade, de negligência, imperícia, ignorância.
4. Problemas relativos ao princípio da justiça.
Uma ética da não-discriminação, segregação ou marginalização, evitando o internamento como “castigo”, bem como a distribuição dos recursos escassos evitando que sofram os vulneráveis (os mais fracos, os mais débeis, os doentes mentais).
5. Problemas relativos à ética relacional.
Dificuldades de comunicação interpessoal e intra-equipa, bem como, crenças distorcidas dos profissionais de saúde sobre o que deve ser do domínio ético e o que deve ser do domínio psicológico ou psiquiátrico (Barbosa, 2010).
6. Problemas psiquiátricos com incidência em problemas éticos.
A capacidade de decisão nos doentes pode estar transtornada pelo medo actual ou reactivação de medos antigos, ou pode ser provocada por um problema defensivo de negação (normal ou patológica). Por exemplo, na recusa duma cirurgia, a maior parte das causas são factores psicológicos, tais como medo, ansiedade, más experiências prévias com cirurgia ou naquele hospital, desconfiança dos médicos, problemas de comunicação (Barbosa, 1989).
Um outro factor psicológico por vezes difícil de reconhecer é a depressão, porque o doente deprimido geralmente oferece explicações racionais para as escolhas que são feitas (Barbosa, 1984). É importante avaliar os sentimentos de abandono, desamparo, desespero, sentimento de futuro sem sentido ou ideias de suicídio. Os aspectos depressivos que mais minam a capacidade dos doentes são as avaliações distorcidas sobre si próprio, sobre o mundo, sobre o futuro. Às vezes um tratamento antidepressivo pode ser útil para clarificar se a depressão interfere com a sua capacidade de decisão.
Principais aspectos psiquiátricos relacionados com dificuldades éticas
- Psicopatologia diagnosticável em qualquer dos intervenientes do conflito ético
- Estilos de personalidade e problemas psicodinâmicos
- Disfunção familiar
- Conflitos interpessoais entre doente, família e profissionais de saúde
- Conflitos ou não-cooperação intra-equipa de saúde
- Reacções contra-transferenciais dos profissionais de saúde em relação aos doentes, família e outros agentes
- Desproporcionado envolvimento ou rejeição da equipa de saúde
Podem distinguir-se três tipos de situações que frequentemente ocorrem na prática de um psiquiatra de ligação:
a) Avaliação pseudo-psiquiátrica, quando uma situação aparentemente psiquiátrica mascara um problema ético subjacente.
Na sequência de um impasse nos cuidados a um doente devido a um conflito de valores, pode ocorrer um pedido de avaliação psiquiátrica (conflito entre a família de um doente e a equipa médica sobre a continuidade de intervenções médicas agressivas, invasivas, para um doente em estado grave, totalmente incapacitado). Este tipo de situações merece mais uma consideração ética do que uma avaliação psiquiátrica sobre a capacidade de decisão do doente.
b) Avaliação pseudo-ética, quando na base de um problema ético estão basicamente problemas psiquiátricos.
Este tipo de problemas é especialmente comum em decisões de tratamento em fim de vida, devido à importância dos aspectos emocionais nos processos de tomada de decisão (Callahan, 1988). Por exemplo, a situação de doentes que desejam parar o tratamento ou apressar a morte primariamente devido a excessivo, desproporcionado medo de dependência ou de abandono/desamparo (Barbosa,1997a), mas também por culpa de sobrecarga da família ou ainda por mera ansiedade perante o processo de morte em si. Quando nessas circunstâncias o foco vai para o direito do doente de recusar o tratamento ou para aceitar a escolha dos doentes como mero valor facial, pode-se estar a obscurecer determinantes emocionais vitais no processo de tomada de decisão do doente.
Se por um lado, o reconhecimento destas dificuldades pode ser importante para ajudar a distinguir entre sentimentos latentes e sentimentos manifestos dos doentes (Barbosa, 1999) que, muitas vezes, são a matriz, o ponto chave para a sobrevinda de problemas éticos, por outro lado, não devemos cair na tendência psiquiatrizante de medicalizar ou patologizar todas as formas de tomada de decisão. Há um papel naturalmente para os aspectos éticos, para a decisão moral e para os valores.
c) Um caso psiquiátrico e ético, em que ambos desempenham um papel muito importante.
Em certas circunstâncias os problemas psiquiátricos podem ser um dos aspectos importantes daquela situação, juntamente com problemas éticos, legais, religiosos, económicos, institucionais e outros (Barbosa, 2010b).
Naturalmente, uma das responsabilidades primárias do psiquiatra nos conflitos éticos do tratamento médico é avaliar a capacidade do doente para tomar decisões, mas também corrigir a capacidade diminuída (Cassel, 2001) ou tratar perturbações mentais reversíveis que, ao serem aliviadas, podem permitir todo o processo de consentimento informado.
Tipos de intervenção psiquiátrica com problematicidade ética
- Tratar problemas psicológicos individuais
- Avaliar a capacidade de decisão
- Restaurar, melhorar, estabilizar a capacidade de decisão
- Melhorar a dinâmica familiar disfuncional
- Diagnosticar e melhorar problemas de equipa, do doente, da família, problemas de interface
- Usar a capacidade do psiquiatra para envolver outros cuidadores, se necessário
- Reconhecer e minimizar incongruências culturais ou religiosas
- Avaliar e optimizar a contribuição dos actores sociais ou comunitários
As intervenções psiquiátricas muitas vezes levam à resolução de decisões de tratamento (quer o doente esteja competente ou incompetente) e a recusa de tratamento, que era vista como um procedimento psiquiátrico, começa a ser analisada também como um problema ético. Nem sempre a preparação nesta área é assegurada na formação dos profissionais de saúde (Barbosa, 1997; Preissman, 1999; Youngner, 1997).
António Barbosa
(Professor de Psiquiatria e Director do Centro de Bioética da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa; Co-responsável da Equipa de Psiquiatria de Ligação do Serviço de Psiquiatria do Hospital de Santa Maria)
cbioetica@fm.ul.pt
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Bibliografia
Barbosa, A. (1984). Psychiatric intervention in the general hospital. Acta Psiquiátrica Portuguesa, 30: 43-47.
Barbosa, A. et al. (1988). Psiquiatria de ligação. Atendimento psiquiátrico num hospital geral. O Médico, 119, 1904: 337-382.
Barbosa, A. (1989). Psiquiatria de ligação em cirurgia. França de Sousa, J., Cardoso, G., Barbosa, A. (eds) Psiquiatria de ligação e psicossomática. Lisboa, Delagrange, 145-154.
Barbosa, A, (1997a). O doente em estadio terminal; Contributo para o ensino. Revista da FML. Série III, 2, 2:95-99
Barbosa, A. (1997b). Formação em psiquiatria de ligação no internato de psiquiatria. Acta Médica Portuguesa, 12:933-942.
Barbosa, A. (1999). Comunicação com o doente em estádio terminal.
in Gomes Pedro, J. Barbosa, A. (eds) Comunicar: na clínica, na educação, na investigação e no ensino (1ª ed.) . Lisboa: Faculdade de Medicina de Lisboa, 69-77.
Barbosa, A. (2010a) Ética relacional in Barbosa, A. , Neto, I (eds) Manual de Cuidados Paliativos (2ª ed.). Lisboa FML/ Centro de Bioética/Núcleo de Cuidados Paliativos, 661-691.
Barbosa, A.(2010b) Processo de deliberação ética in Barbosa, A. , Neto, I (eds) Manual de Cuidados Paliativos (2ª ed.). Lisboa FML/ Centro de Bioética/Núcleo de Cuidados Paliativos, 693-721.
Binder, R.L. (2002). Liability for the psychiatrist expert witness. Am J Psychiatry, 159, 1819-1825.
Callahan, S. (1988). The role of emotion in ethical decision making. Hastings Center Report, June/July, 9-14.
Cassel, E.J., Leon, A.C., Kaufman, St.G. (2001). Preliminary evidence of impaired thinking in sick patients. Ann Intern Med, 134, 1120-1123.
Lederberg, M.S. (1997). Making a situational diagnosis: Psychiatrists at the interface of psychiatry and ethics in the consultation liaison setting. Academy of Psychosomatic Medicine, 38(4), 327-338.
Preisman, R.C. et al (1999). A anotated bibliography for ethics training in consultation-liaison psychiatry. Psychosomatics , 40:5, 369-379.
Steinberg, M.D. (1997). Psychiatry and bioethics an exploration of the relationship. Psychosomatic,38, 313-320.
Youngner, S.J. (1997). Consultation liaison psychiatry and clinical ethics. Academy of Psychosomatic Medicine, 38(4), 309-312.