Eventos
Investigação Médica em Portugal: Oportunidades e Constrangimentos
Em 1997, Joseph Goldstein e Michael Brown, num artigo intitulado "The Clinical Investigator: Bewitched, Bothered, and Bewildered - But Still Beloved"(1) , analisavam as causas do declínio progressivo dos clínicos-investigadores nos EUA - "an endangered species", como já lhes tinha chamado, 16 anos antes, James Wyngaarden, num célebre editorial do New England Journal of Medicine (2). O crescente divórcio entre o clínico e a investigação parecia resultar, em grande parte, da convergência de dois outros fenómenos, observáveis em todos os países desenvolvidos: o extraordinário desenvolvimento, a partir dos anos 1960, da ciência biomédica fundamental (exercida por "profissionais" de ciência) e a crescente complexidade e exigência da prática clínica moderna, em tempos de fortes restrições financeiras. As soluções propostas, bem como as recomendações ao National Institute of Health e instituições académicas apontavam, todas elas, para a necessidade de estratégias concertadas, "sistémicas", susceptíveis de estimular, recompensar e proteger a prática da investigação pelo médico clínico. Recomendações, aliás, que viriam a ser implementadas pelo NIH, em parceria com instituições públicas e privadas, nos anos que se seguiram (3).
Não terá sido, também, por acaso, que Goldstein e Brown incluíram o adjectivo "beloved" na sua descrição do clínico-investigador. De facto, durante a primeira metade do século XX, o clínico-investigador, para quem o doente é o primeiro e último objectivo da sua actividade de investigação, tinha constituído o agente fundamental da transposição para a clínica das descobertas da ciência e o motor real de uma agenda de investigação médica verdadeiramente útil ao doente. Aliás, a percepção societal da importância da investigação médica é, ela própria, muito significativa, a avaliar pelos resultados a inquéritos populacionais recentes: por exemplo, nos EUA, mais de 90% da população considera a investigação em saúde como uma prioridade nacional (a par com a segurança do país, segurança social, segurança na saúde e educação); 82% afirmam preferir hospitais onde os profissionais de saúde se envolvem activamente em investigação médica e no ensino (4). Numa outra esfera, a da política de saúde, países como a Finlândia, por exemplo, introduzem actualmente a produtividade científica (em quantidade e qualidade) nos critérios de diferenciação dos hospitais para alocação de financiamento público.
Em Portugal, a situação da investigação médica feita por médicos é, em vários aspectos, singular. O progresso do país nos últimos 20 anos em ciências biomédicas tem sido, a todos os títulos, notável, não apenas pelo crescimento exponencial de recursos humanos altamente qualificados (na sua vasta maioria cientistas não médicos) mas, também, pela criação de laboratórios de excelência devotados à investigação de matérias da maior importância para a Medicina (5). Por outras palavras, nunca como hoje os médicos portugueses dispuseram de ecologias tão favoráveis ao estabelecimento de parcerias frutuosas entre a clínica e a ciência biomédica fundamental. Por outro lado, ainda que tardias, políticas de ciência especificamente dirigidas ao incentivo da prática de investigação por médicos começam agora a surgir no país - são disso exemplo o regulamento do interno-doutorando, criado em 2008, bem como a abertura de concursos (apenas um até à data!) para financiamento de investigação médica pela Fundação para a Ciência e Tecnologia. A estas iniciativas juntam-se outras, de fundações privadas e das universidades, que procuram proporcionar qualificação científica avançada às novas gerações de médicos do país.
Os tempos são, portanto, de oportunidade. Contudo, os obstáculos operacionais ao envolvimento do médico-clínico na prática quotidiana de uma investigação inovadora, internacionalmente competitiva, são reais e exigem solução urgente.
Foi este o mote do primeiro de uma série de debates que a Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa dedica ao tema "Investigação Médica em Portugal". O objectivo deste primeiro debate foi o de colher, em registo informal, o testemunho de pessoas que, pela sua própria experiência, institucional ou pessoal, conhecem, “no terreno”, as dificuldades da prática de investigação médica por médicos, pedindo-lhes a opinião sobre possíveis soluções para essas dificuldades. Assim, no dia 21 de Junho de 2010, no Anfiteatro Cid dos Santos da Faculdade de Medicina de Lisboa, perante uma audiência constituída por internos, jovens especialistas, alunos de Medicina, cientistas biomédicos e vários convidados, João Sentiero, Presidente da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), e Maria do Céu Machado, Alta Comissária da Saúde, ouviram e comentaram as intervenções de Rui Victorino, Presidente do Conselho Científico da Faculdade de Medicina de Lisboa e membro do Conselho Científico para as Ciências da Saúde da FCT, João Correia da Cunha, Presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar de Lisboa Norte, Ana Isabel Lopes, Chefe de Serviço de Pediatria e Nuno Figueiredo, jovem interno-doutorando de Cirurgia Geral.
Rui Victorino fez um resumo breve do que tem sido a evolução da ciência biomédica no país e lembrou que a vasta maioria das candidaturas a bolsas de doutoramento ou pós-doutoramento na área das Ciências da Saúde aprovadas pela FCT nos últimos 20 anos corresponde a projectos de investigação biomédica básica, não envolvendo estudos de doentes ou de material humano. Facto que justifica que, após 20 anos de investimento prioritário em ciência biomédica fundamental, seja a altura de introduzir políticas sustentadas de apoio à investigação clínica de qualidade. Lembrou, igualmente, que várias recomendações sobre esta matéria foram incluídas no livro Governação dos Hospitais (6), publicado em 2009 , das quais salientou:
1. a necessidade de aumentar o financiamento de projectos de investigação clínica de qualidade, não esquecendo as áreas de "Outcomes Research" e Epidemiologia clínica, pelo que a FCT deverá proceder à abertura regular de concursos semelhantes ao de 2007, no qual foram aprovados 60 projectos de parceria entre clínicos e cientistas básicos, num total de 360 candidaturas.
2. a necessidade da criação de condições que permitam às instituições de saúde contribuir para o florescimento de investigação clínica e de translação de qualidade.
3. a importância de identificar aqueles que, nos hospitais, têm mostrado capacidade de liderar iniciativas orientadas para a investigação de doentes, proporcionando-lhes as condições necessárias ao desenvolvimento da sua actividade de investigação.
4. a importância da criação de "Clinical Translational Centres" em hospitais de referência, bem como um programa de "Fellowships" para médicos que desenvolvam actividades de investigação clínica ou de translação.
5. a criação de oportunidades de qualificação científica para jovens especialistas, semelhantes ao espírito do regulamento do "Interno-Doutorando".
João Correia da Cunha começou por referir a confusão geralmente existente entre investigação clínica e ensaios clínicos e a necessidade de reconhecer as respectivas diferenças. Os últimos, na sua maioria liderados pela indústria farmacêutica, a qual remunera a instituição e os investigadores, têm-se desenvolvido sem problemas especiais em muitos hospitais do país (por exemplo, em 2009, tiveram lugar 75 ensaios clínicos, só no Centro Hospitalar Lisboa Norte). O mesmo não se passa com outros tipos de investigação clínica, pura ou de translação. Salientando a enorme importância da investigação clínica de qualidade na própria operação das unidades de saúde, particularmente nos grandes hospitais de ensino, apontou como principais constrangimentos à prática da investigação por médicos:
1. A reduzida importância atribuída ao curriculum científico nos concursos para posições hospitalares, considerando ser indispensável uma rápida mudança nesta matéria.
2. Actividade hospitalar sob fortes restrições orçamentais, não sendo valorizada a investigação, mesmo em hospitais universitários, situação que importa alterar.
3. Deficiente articulação no funcionamento de diferentes serviços do SNS.
4. Difícil articulação entre clínicos e cientistas biomédicos, situação que espera vir a ser alterada, no caso do Hospital de Santa Maria (HSM), pelo estabelecimento da parceria formal entre o Hospital, a Faculdade de medicina e o Instituto de Medicina Molecular, aquando da criação do Centro Académico de Medicina de Lisboa.
Ana Isabel Lopes descreveu o seu percurso de investigação, como Médica que nunca interrompeu a actividade clínica, considerando-o como ilustrativo do que não deve ser o desenvolvimento científico de um investigador clínico. Licenciada em 1980 pela FMUL, seguiu-se actividade hospitalar no HSM, tendo tido sempre um especial interesse pela investigação, o que a levou a iniciar uma colaboração com o Instituto de Microbiologia durante a pré-graduação. Confrontou-se, posteriormente, com a dificuldade de conciliar a exigente formação do internato de especialidade de Pediatria, com a prática da investigação. Tal só lhe viria a ser possível após conclusão do treino de especialidade, tendo então iniciado os seu projecto de investigação relacionado com a infecção por H. pilorii, para o qual obteve pequenos financiamentos do Ministério da Saúde e do próprio Hospital, tendo estabelecido colaborações internacionais. Concluiria a sua tese de Doutoramento 26 anos após a licenciatura e 16 anos após obtenção do grau de Especialista. Viveu, através da sua experiência pessoal, as dificuldades da obtenção de uma colecção significativa de material biológico (7-8 anos para aquisição de dados suficientes), bem como a inexistência de tempo protegido para investigação. Concluiu que um percurso deste tipo, semelhante ao de muitos outros clínicos, é inaceitavelmente longo e incompatível com o desenvolvimento de projectos de investigação internacionalmente competitivos.
Nuno Figueiredo, licenciado em 2001, interno do 6º ano de Cirurgia Geral, deu conta da sua experiência como interno-doutorando, desde que foi admitido na 1ª edição do Programa de Formação Médica Avançada, criado pela Fundação Gulbenkian em 2008, em parceria com a Fundação Champalimaud e a FCT. Referiu a importância da componente curricular do programa na sua formação científica, salientando a vantagem de ter beneficiado de uma Bolsa da FCG, que lhe permitiu ser exposto durante 6 meses consecutivos, em regime de full-time, a uma grande diversidade de conteúdos formativos, bem como ao contacto diário com cientistas nacionais e internacionais de alto nível. Salientou a importância do apoio do Director de Serviço, mas também as resistências que sentiu por parte de outros colegas à adaptação das suas actividades clínicas ao regime de interno-doutorando, após 6 meses de interrupção de internato. Considerou, em contrapartida, instrumental a colaboração do grupo de cientistas biomédicos com os quais iniciou o seu projecto de investigação. Chamou a atenção para a necessidade de um melhor enquadramento jurídico do regulamento do interno-doutorando que mitigue a disparidade com que o mesmo é levado à prática em diferentes hospitais. Salientou, igualmente, que a dúvida que se coloca, agora que existem programas de protecção para internos/doutorandos, é se virão a existir programas subsequentes que apoiem especialistas/post-docs.
Debate
Diogo Lucena, Administrador do Serviço de Ciência da Fundação Calouste Gulbenkian, exprimiu uma inquietação institucional quanto ao retorno do investimento feito na formação dos médicos admitidos ao Programa apoiado pela Fundação. Considerou que o investimento será desperdiçado caso não se verifique uma continuidade deste esforço por parte das instituições e chamou a atenção para a importância de uma resposta adequada por parte do Sistema Nacional de Saúde. Constatando a dificuldade actual dos hospitais académicos em assegurar investigação clínica de qualidade, receia que dificuldades muito maiores se verifiquem em outros hospitais. Mencionou, também, que a experiência acumulada nesta e em outras medidas de incentivo à formação científica avançada de médicos clínicos levanta um problema de "scalability" da intervenção. A Fundação apoia actualmente 10 médicos por ano, mas é previsível que o país necessite de muitos mais (70 por ano?), se se quiser evitar um fenómeno de diluição/neutralização dos mesmos no próprio sistema de saúde. Reforçou ainda a absoluta necessidade de apostar na qualidade de programas deste tipo.
José Ducla Soares, Professor da Faculdade de Medicina de Lisboa, chamou a atenção para dois problemas relacionados com o desenvolvimento de investigação clínica nos hospitais: o facto de o recrutamento de internos pelos hospitais ser actualmente feito à total revelia dos serviços onde vão trabalhar, não considerando, portanto, os objectivos dos mesmos, situação que impede a selecção de internos com vocação para a investigação. Por outro lado, o facto de as instituições hospitalares não disporem de incentivos que as levem a fomentar actividades de investigação, o que faz com que esta não seja valorizada nos respectivos os contratos-programa.
João Correia da Cunha lembrou que já existem índices de complexidade clínica que permitem a diferenciação do financiamento a unidades de saúde, sendo de admitir que possam vir a existir incentivos económicos para actividades de investigação clínica.
José Miguel Caldas de Almeida, Director da Faculdade de Ciências Médicas chamou a atenção para a necessidade de não se desperdiçarem as oportunidades actuais para o desenvolvimento da investigação clínica e a urgência de conferir aos directores de serviços clínicos condições de flexibilidade institucional que lhes permitam não desperdiçar vocações, uma vez que, na estrutura actual de funcionamento hospitalar, é difícil a um director dispensar um clínico um ou dois dias por semana para actividades não assistenciais. Reforçou ainda a necessidade de não negligenciar a investigação em Outcomes Research, como instrumento de melhoria do próprio sistema de saúde.
Fernando Martins Vale, Professor da Faculdade de Medicina de Lisboa, insistiu na necessidade de reformulação das carreiras hospitalar e de docência no sentido de um maior peso das actividades de investigação.
Jorge Soares, Director do Serviço de Saúde e Desenvolvimento da Fundação Gulbenkian, chamou a atenção para várias dificuldades no que respeita à investigação por médicos nos hospitais: conflitos de interesse, entre o investigador e a própria equipa de trabalho; o facto de as instituições não serem devidamente recompensadas pela investigação que realizam; falta de uma efectiva valorização das actividades de investigação nas carreiras médicas; ausência de flexibilidade na estrutura de funcionamento hospitalar; a existência de dificuldades jurídicas à utilização de dados de doentes em investigação, pela Comissão Nacional de Protecção de Dados. Alertou, ainda, para a banalização de programas de doutoramento para médicos nas universidades, com reduzidos graus de exigência.
Rui Victorino, na mesma perspectiva, salientou que seria um péssimo serviço à investigação médica atribuir bolsas a programas de doutoramento que não garantam qualidade elevada.
Maria Gomes da Silva, Professora da Faculdade de Ciências Médicas e Especialista de Hematologia do IPO-Lisboa, lembrou que a discussão da prática de investigação clínica não se esgota, nem se deve centrar, na discussão de programas de doutoramento, mas sim na criação de condições que permitam a prática de investigação nos hospitais, sendo essencial investir em estruturas organizadas e eficientes que suportem investigação clínica de qualidade nas unidades de saúde.
Leonor Parreira reforçou esta ideia, acrescentando que uma outra medida indispensável, sem a qual a investigação clínica não poderá florescer, mesmo que existam centros de investigação nos hospitais, é a criação de bases de dados clínicos e biobancos bem estruturados e em rede, há muito prometidos mas ainda inexistentes no país.
António Oliveira, estudante da Faculdade de Medicina de Lisboa, exprimiu a sua inquietação pelo facto de não existir um sistema que permita o desenvolvimento de uma carreira de investigação clínica, constatando que, actualmente, o sucesso individual de um clínico-investigador continua a depender de um factor “acaso” – o clínico encontrar a “pessoa certa” no “momento certo”.
João Sentieiro, Presidente da Fundação para a Ciência e Tecnologia, declarou ter apreciado especialmente os testemunhos de Ana Isabel Lopes e Nuno Figueiredo por lhe terem revelado as dificuldades vividas pelos clínicos que desejam conciliar actividades de investigação com a prática clínica - uma realidade de que não tinha conhecimento pleno. Afirmou o interesse da FCT em contribuir para o desenvolvimento da investigação clínica, lembrando as iniciativas do Programa Harvard-Portugal bem como a do Concurso/FCT de 2007, específico para a investigação clínica. Reconhecendo que o país se confronta ainda com um problema quantitativo de massa critica, salientou que a FCT se preocupa com a qualidade das iniciativas que apoia. Especificamente, no que respeita ao estatuto de interno-doutorando, informou que foram introduzidas modificações, já enviadas para publicação em Diário da República, que permitirão monitorizar a qualidade dos projectos de investigação dos candidatos. Informou, igualmente, que a FCT irá abrir novo concurso para projectos de investigação clínica até ao final de 2010.
Maria de Belém Roseira, Vice-presidente do grupo Parlamentar do PS, salientou a importância da sustentabilidade das políticas de apoio à formação científica de médicos. Lembrou que, mesmo que não haja capacidade de haver programas de qualidade nas nove escolas médicas do país, é provável que a melhor massa critica de cada uma possa ser integrada em programas de formação de qualidade. Reforçou, ainda, a importância de cooptar o interesse da sociedade civil para o problema da investigação médica, nomeadamente através das associações de doentes.
Maria do Céu Machado, Alta Comissária da Saúde, comentou as várias intervenções, lembrando que a participação do clínico em investigação pode ter lugar em qualquer momento da sua carreira profissional, salientando a importância da maturidade clínica para o desenvolvimento de projectos de investigação com relevância para o doente. Lembrou a importância dos “role-models” na preparação profissional do médico, considerando que o modelo clássico do investigador-médico “free-lancer” não está esgotado, interrogando-se sobre a vantagem da interrupção da actividade clínica para qualificação científica do médico. Considerou, ainda, que grande parte dos constrangimentos hospitalares à prática de investigação pode ser a consequência de a governação dos hospitais estar hoje entregue a gestores que se baseiam exclusivamente em índices de produtividade assistencial. Esse problema é, na sua opinião, agravado pelo facto de os directores de serviço serem forçados a responder pela produtividade clínica, muitas vezes não tendo tido eles próprios a oportunidade de fazer investigação. Tal poderá explicar que estejam menos receptivos a facilitar o desenvolvimento de investigação clínica nos seus serviços. No que respeita às bases nacionais de dados clínicos, constatou a sua inexistência, desconhecendo quando será possível criá-las, mencionando as dificuldades de nível organizacional do próprio sistema de saúde, tais como incompatibilidades de sistemas informáticos entre unidades de saúde, a organização não uniforme do processo clínico em diferentes hospitais, o desperdício de informação resultante da falta de coordenação sistémica e a rigidez da legislação actual que impede o próprio Instituto Nacional de Estatística de fornecer dados relativos à investigação médica, quando lhe são solicitados pelo Alto Comissariado da Saúde, para fins de preparação do Plano Nacional de Saúde.
Conclusão e recomendações
Os obstáculos a uma prática consistente de investigação por médicos-clínicos em Portugal são múltiplos, embora tenha sido patente, nas várias intervenções, que a maioria resulta da própria estrutura organizacional e funcional das Unidades do Sistema Nacional de Saúde.
A modificação da situação actual impõe, à semelhança do praticado em outros países, 1) a adopção de medidas de incentivo dirigidas às instituições de saúde; 2) o reforço das actuais iniciativas dirigidas à formação científica pós-graduada de médicos-clínicos; 3) o reforço e regularidade no financiamento de projectos de investigação orientados para o doente; 4) a criação no país dos instrumentos essenciais para uma investigação médica de qualidade – bases de dados clínicos e biobancos.
1 - Modificação da cultura institucional das unidades de saúde do SNS:
a) Iniciativas políticas que incentivem a prática de investigação orientada para o doente, incluindo critérios de produção científica na diferenciação das unidades de saúde.
b) Incentivos à criação de uma ecologia fértil ao envolvimento do Médico em investigação, criando “Clinical Translation Research Centres” de qualidade nos hospitais de referência.
c) Valorização significativa do curriculum científico na carreira médica, especialmente no âmbito dos recrutamentos para posições em hospitais académicos.
2 - Continuação do investimento na qualificação científica do médico-clínico:
a) Melhoria das iniciativas politicas de apoio à formação científica de jovens internos.
b) Introdução de medidas similares mas especificamente dirigidas a jovens especialistas, com criação de “Clinical/Translational Research Fellowships” para especialistas.
3. Reforço e continuidade do apoio financeiro à investigação clínica:
a) Abertura regular de concursos FCT especificamente dirigidos ao financiamento de projectos de investigação clínica de qualidade.
b) Envolvimento da sociedade civil neste objectivo, nomeadamente co-optando a participação de Associações de Doentes.
4. Bases de dados e biobancos:
A constatação das dificuldades operacionais do próprio SNS, no que respeita ao registo de dados clínicos nas suas unidades de saúde, é reveladora de uma situação que não só prejudica a operacionalidade do próprio Sistema como dificulta a criação de registos nacionais de dados para fins de investigação. Por outro lado, o tempo não permitiu que fossem discutidas as medidas em curso para a criação de um Biobanco nacional, estruturado em rede e em conectividade com estruturas congéneres de outros países. Estas matérias serão, portanto, o tema que a Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa procurará trazer à discussão no próximo debate sobre “Investigação Médica em Portugal”, a realizar no 1º trimestre de 2011.
Leonor Parreira
Presidente
Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa
vandaoliveira@fm.ul.pt
_____________
(1) Joseph oldstein & Michael Brown. "The Clinical Investigator: Bewitched, Bothered, and Bewildered - But Still Beloved". J. Clin. Invest. 99:2803-2812,1997.
(2) James Wyngaarden. The clinical investigator as an endangered species. N. Engl. J. Med. 301:1254–1259., 1981.
(3) Varki A, Rosenberg LE. Emerging opportunities and career paths for the young physician-scientist. Nat. Med. 8:437-439, 2002.
(4) Woolley M & Propst SM. Public attitudes and perceptions about health-related research. JAMA, 294:1380-1384, 2005.
(5) Nos últimos 20 anos, as duas áreas científicas que mais contribuíram para a internacionalização da ciência portuguesa foram, precisamente, as "Ciências da Saúde" e a "Biologia" (21% e 43% das publicações em revistas internacionais, respectivamente). Resultados tanto mais impressionantes quanto a parcela que lhes coube do investimento total em I&D, no mesmo período, foi apenas de 24% (10% no caso específico das Ciências da Saúde), um valor substancialmente inferior ao de outras áreas, em particular as Ciências da Engenharia e Sociais [ver: Produção Científica Portuguesa, 1990 - 2009: Séries Estatísticas (http://www.gpeari.mctes.pt/?idc=103)].
(6) Victorino RMM. A investigação no Hospital. in Governação dos Hospitais. Ed. Luís Campos, M. Borges e R. Portugal. Casa das Letras, 2009.
Não terá sido, também, por acaso, que Goldstein e Brown incluíram o adjectivo "beloved" na sua descrição do clínico-investigador. De facto, durante a primeira metade do século XX, o clínico-investigador, para quem o doente é o primeiro e último objectivo da sua actividade de investigação, tinha constituído o agente fundamental da transposição para a clínica das descobertas da ciência e o motor real de uma agenda de investigação médica verdadeiramente útil ao doente. Aliás, a percepção societal da importância da investigação médica é, ela própria, muito significativa, a avaliar pelos resultados a inquéritos populacionais recentes: por exemplo, nos EUA, mais de 90% da população considera a investigação em saúde como uma prioridade nacional (a par com a segurança do país, segurança social, segurança na saúde e educação); 82% afirmam preferir hospitais onde os profissionais de saúde se envolvem activamente em investigação médica e no ensino (4). Numa outra esfera, a da política de saúde, países como a Finlândia, por exemplo, introduzem actualmente a produtividade científica (em quantidade e qualidade) nos critérios de diferenciação dos hospitais para alocação de financiamento público.
Em Portugal, a situação da investigação médica feita por médicos é, em vários aspectos, singular. O progresso do país nos últimos 20 anos em ciências biomédicas tem sido, a todos os títulos, notável, não apenas pelo crescimento exponencial de recursos humanos altamente qualificados (na sua vasta maioria cientistas não médicos) mas, também, pela criação de laboratórios de excelência devotados à investigação de matérias da maior importância para a Medicina (5). Por outras palavras, nunca como hoje os médicos portugueses dispuseram de ecologias tão favoráveis ao estabelecimento de parcerias frutuosas entre a clínica e a ciência biomédica fundamental. Por outro lado, ainda que tardias, políticas de ciência especificamente dirigidas ao incentivo da prática de investigação por médicos começam agora a surgir no país - são disso exemplo o regulamento do interno-doutorando, criado em 2008, bem como a abertura de concursos (apenas um até à data!) para financiamento de investigação médica pela Fundação para a Ciência e Tecnologia. A estas iniciativas juntam-se outras, de fundações privadas e das universidades, que procuram proporcionar qualificação científica avançada às novas gerações de médicos do país.
Os tempos são, portanto, de oportunidade. Contudo, os obstáculos operacionais ao envolvimento do médico-clínico na prática quotidiana de uma investigação inovadora, internacionalmente competitiva, são reais e exigem solução urgente.
Foi este o mote do primeiro de uma série de debates que a Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa dedica ao tema "Investigação Médica em Portugal". O objectivo deste primeiro debate foi o de colher, em registo informal, o testemunho de pessoas que, pela sua própria experiência, institucional ou pessoal, conhecem, “no terreno”, as dificuldades da prática de investigação médica por médicos, pedindo-lhes a opinião sobre possíveis soluções para essas dificuldades. Assim, no dia 21 de Junho de 2010, no Anfiteatro Cid dos Santos da Faculdade de Medicina de Lisboa, perante uma audiência constituída por internos, jovens especialistas, alunos de Medicina, cientistas biomédicos e vários convidados, João Sentiero, Presidente da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), e Maria do Céu Machado, Alta Comissária da Saúde, ouviram e comentaram as intervenções de Rui Victorino, Presidente do Conselho Científico da Faculdade de Medicina de Lisboa e membro do Conselho Científico para as Ciências da Saúde da FCT, João Correia da Cunha, Presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar de Lisboa Norte, Ana Isabel Lopes, Chefe de Serviço de Pediatria e Nuno Figueiredo, jovem interno-doutorando de Cirurgia Geral.
Rui Victorino fez um resumo breve do que tem sido a evolução da ciência biomédica no país e lembrou que a vasta maioria das candidaturas a bolsas de doutoramento ou pós-doutoramento na área das Ciências da Saúde aprovadas pela FCT nos últimos 20 anos corresponde a projectos de investigação biomédica básica, não envolvendo estudos de doentes ou de material humano. Facto que justifica que, após 20 anos de investimento prioritário em ciência biomédica fundamental, seja a altura de introduzir políticas sustentadas de apoio à investigação clínica de qualidade. Lembrou, igualmente, que várias recomendações sobre esta matéria foram incluídas no livro Governação dos Hospitais (6), publicado em 2009 , das quais salientou:
1. a necessidade de aumentar o financiamento de projectos de investigação clínica de qualidade, não esquecendo as áreas de "Outcomes Research" e Epidemiologia clínica, pelo que a FCT deverá proceder à abertura regular de concursos semelhantes ao de 2007, no qual foram aprovados 60 projectos de parceria entre clínicos e cientistas básicos, num total de 360 candidaturas.
2. a necessidade da criação de condições que permitam às instituições de saúde contribuir para o florescimento de investigação clínica e de translação de qualidade.
3. a importância de identificar aqueles que, nos hospitais, têm mostrado capacidade de liderar iniciativas orientadas para a investigação de doentes, proporcionando-lhes as condições necessárias ao desenvolvimento da sua actividade de investigação.
4. a importância da criação de "Clinical Translational Centres" em hospitais de referência, bem como um programa de "Fellowships" para médicos que desenvolvam actividades de investigação clínica ou de translação.
5. a criação de oportunidades de qualificação científica para jovens especialistas, semelhantes ao espírito do regulamento do "Interno-Doutorando".
João Correia da Cunha começou por referir a confusão geralmente existente entre investigação clínica e ensaios clínicos e a necessidade de reconhecer as respectivas diferenças. Os últimos, na sua maioria liderados pela indústria farmacêutica, a qual remunera a instituição e os investigadores, têm-se desenvolvido sem problemas especiais em muitos hospitais do país (por exemplo, em 2009, tiveram lugar 75 ensaios clínicos, só no Centro Hospitalar Lisboa Norte). O mesmo não se passa com outros tipos de investigação clínica, pura ou de translação. Salientando a enorme importância da investigação clínica de qualidade na própria operação das unidades de saúde, particularmente nos grandes hospitais de ensino, apontou como principais constrangimentos à prática da investigação por médicos:
1. A reduzida importância atribuída ao curriculum científico nos concursos para posições hospitalares, considerando ser indispensável uma rápida mudança nesta matéria.
2. Actividade hospitalar sob fortes restrições orçamentais, não sendo valorizada a investigação, mesmo em hospitais universitários, situação que importa alterar.
3. Deficiente articulação no funcionamento de diferentes serviços do SNS.
4. Difícil articulação entre clínicos e cientistas biomédicos, situação que espera vir a ser alterada, no caso do Hospital de Santa Maria (HSM), pelo estabelecimento da parceria formal entre o Hospital, a Faculdade de medicina e o Instituto de Medicina Molecular, aquando da criação do Centro Académico de Medicina de Lisboa.
Ana Isabel Lopes descreveu o seu percurso de investigação, como Médica que nunca interrompeu a actividade clínica, considerando-o como ilustrativo do que não deve ser o desenvolvimento científico de um investigador clínico. Licenciada em 1980 pela FMUL, seguiu-se actividade hospitalar no HSM, tendo tido sempre um especial interesse pela investigação, o que a levou a iniciar uma colaboração com o Instituto de Microbiologia durante a pré-graduação. Confrontou-se, posteriormente, com a dificuldade de conciliar a exigente formação do internato de especialidade de Pediatria, com a prática da investigação. Tal só lhe viria a ser possível após conclusão do treino de especialidade, tendo então iniciado os seu projecto de investigação relacionado com a infecção por H. pilorii, para o qual obteve pequenos financiamentos do Ministério da Saúde e do próprio Hospital, tendo estabelecido colaborações internacionais. Concluiria a sua tese de Doutoramento 26 anos após a licenciatura e 16 anos após obtenção do grau de Especialista. Viveu, através da sua experiência pessoal, as dificuldades da obtenção de uma colecção significativa de material biológico (7-8 anos para aquisição de dados suficientes), bem como a inexistência de tempo protegido para investigação. Concluiu que um percurso deste tipo, semelhante ao de muitos outros clínicos, é inaceitavelmente longo e incompatível com o desenvolvimento de projectos de investigação internacionalmente competitivos.
Nuno Figueiredo, licenciado em 2001, interno do 6º ano de Cirurgia Geral, deu conta da sua experiência como interno-doutorando, desde que foi admitido na 1ª edição do Programa de Formação Médica Avançada, criado pela Fundação Gulbenkian em 2008, em parceria com a Fundação Champalimaud e a FCT. Referiu a importância da componente curricular do programa na sua formação científica, salientando a vantagem de ter beneficiado de uma Bolsa da FCG, que lhe permitiu ser exposto durante 6 meses consecutivos, em regime de full-time, a uma grande diversidade de conteúdos formativos, bem como ao contacto diário com cientistas nacionais e internacionais de alto nível. Salientou a importância do apoio do Director de Serviço, mas também as resistências que sentiu por parte de outros colegas à adaptação das suas actividades clínicas ao regime de interno-doutorando, após 6 meses de interrupção de internato. Considerou, em contrapartida, instrumental a colaboração do grupo de cientistas biomédicos com os quais iniciou o seu projecto de investigação. Chamou a atenção para a necessidade de um melhor enquadramento jurídico do regulamento do interno-doutorando que mitigue a disparidade com que o mesmo é levado à prática em diferentes hospitais. Salientou, igualmente, que a dúvida que se coloca, agora que existem programas de protecção para internos/doutorandos, é se virão a existir programas subsequentes que apoiem especialistas/post-docs.
Debate
Diogo Lucena, Administrador do Serviço de Ciência da Fundação Calouste Gulbenkian, exprimiu uma inquietação institucional quanto ao retorno do investimento feito na formação dos médicos admitidos ao Programa apoiado pela Fundação. Considerou que o investimento será desperdiçado caso não se verifique uma continuidade deste esforço por parte das instituições e chamou a atenção para a importância de uma resposta adequada por parte do Sistema Nacional de Saúde. Constatando a dificuldade actual dos hospitais académicos em assegurar investigação clínica de qualidade, receia que dificuldades muito maiores se verifiquem em outros hospitais. Mencionou, também, que a experiência acumulada nesta e em outras medidas de incentivo à formação científica avançada de médicos clínicos levanta um problema de "scalability" da intervenção. A Fundação apoia actualmente 10 médicos por ano, mas é previsível que o país necessite de muitos mais (70 por ano?), se se quiser evitar um fenómeno de diluição/neutralização dos mesmos no próprio sistema de saúde. Reforçou ainda a absoluta necessidade de apostar na qualidade de programas deste tipo.
José Ducla Soares, Professor da Faculdade de Medicina de Lisboa, chamou a atenção para dois problemas relacionados com o desenvolvimento de investigação clínica nos hospitais: o facto de o recrutamento de internos pelos hospitais ser actualmente feito à total revelia dos serviços onde vão trabalhar, não considerando, portanto, os objectivos dos mesmos, situação que impede a selecção de internos com vocação para a investigação. Por outro lado, o facto de as instituições hospitalares não disporem de incentivos que as levem a fomentar actividades de investigação, o que faz com que esta não seja valorizada nos respectivos os contratos-programa.
João Correia da Cunha lembrou que já existem índices de complexidade clínica que permitem a diferenciação do financiamento a unidades de saúde, sendo de admitir que possam vir a existir incentivos económicos para actividades de investigação clínica.
José Miguel Caldas de Almeida, Director da Faculdade de Ciências Médicas chamou a atenção para a necessidade de não se desperdiçarem as oportunidades actuais para o desenvolvimento da investigação clínica e a urgência de conferir aos directores de serviços clínicos condições de flexibilidade institucional que lhes permitam não desperdiçar vocações, uma vez que, na estrutura actual de funcionamento hospitalar, é difícil a um director dispensar um clínico um ou dois dias por semana para actividades não assistenciais. Reforçou ainda a necessidade de não negligenciar a investigação em Outcomes Research, como instrumento de melhoria do próprio sistema de saúde.
Fernando Martins Vale, Professor da Faculdade de Medicina de Lisboa, insistiu na necessidade de reformulação das carreiras hospitalar e de docência no sentido de um maior peso das actividades de investigação.
Jorge Soares, Director do Serviço de Saúde e Desenvolvimento da Fundação Gulbenkian, chamou a atenção para várias dificuldades no que respeita à investigação por médicos nos hospitais: conflitos de interesse, entre o investigador e a própria equipa de trabalho; o facto de as instituições não serem devidamente recompensadas pela investigação que realizam; falta de uma efectiva valorização das actividades de investigação nas carreiras médicas; ausência de flexibilidade na estrutura de funcionamento hospitalar; a existência de dificuldades jurídicas à utilização de dados de doentes em investigação, pela Comissão Nacional de Protecção de Dados. Alertou, ainda, para a banalização de programas de doutoramento para médicos nas universidades, com reduzidos graus de exigência.
Rui Victorino, na mesma perspectiva, salientou que seria um péssimo serviço à investigação médica atribuir bolsas a programas de doutoramento que não garantam qualidade elevada.
Maria Gomes da Silva, Professora da Faculdade de Ciências Médicas e Especialista de Hematologia do IPO-Lisboa, lembrou que a discussão da prática de investigação clínica não se esgota, nem se deve centrar, na discussão de programas de doutoramento, mas sim na criação de condições que permitam a prática de investigação nos hospitais, sendo essencial investir em estruturas organizadas e eficientes que suportem investigação clínica de qualidade nas unidades de saúde.
Leonor Parreira reforçou esta ideia, acrescentando que uma outra medida indispensável, sem a qual a investigação clínica não poderá florescer, mesmo que existam centros de investigação nos hospitais, é a criação de bases de dados clínicos e biobancos bem estruturados e em rede, há muito prometidos mas ainda inexistentes no país.
António Oliveira, estudante da Faculdade de Medicina de Lisboa, exprimiu a sua inquietação pelo facto de não existir um sistema que permita o desenvolvimento de uma carreira de investigação clínica, constatando que, actualmente, o sucesso individual de um clínico-investigador continua a depender de um factor “acaso” – o clínico encontrar a “pessoa certa” no “momento certo”.
João Sentieiro, Presidente da Fundação para a Ciência e Tecnologia, declarou ter apreciado especialmente os testemunhos de Ana Isabel Lopes e Nuno Figueiredo por lhe terem revelado as dificuldades vividas pelos clínicos que desejam conciliar actividades de investigação com a prática clínica - uma realidade de que não tinha conhecimento pleno. Afirmou o interesse da FCT em contribuir para o desenvolvimento da investigação clínica, lembrando as iniciativas do Programa Harvard-Portugal bem como a do Concurso/FCT de 2007, específico para a investigação clínica. Reconhecendo que o país se confronta ainda com um problema quantitativo de massa critica, salientou que a FCT se preocupa com a qualidade das iniciativas que apoia. Especificamente, no que respeita ao estatuto de interno-doutorando, informou que foram introduzidas modificações, já enviadas para publicação em Diário da República, que permitirão monitorizar a qualidade dos projectos de investigação dos candidatos. Informou, igualmente, que a FCT irá abrir novo concurso para projectos de investigação clínica até ao final de 2010.
Maria de Belém Roseira, Vice-presidente do grupo Parlamentar do PS, salientou a importância da sustentabilidade das políticas de apoio à formação científica de médicos. Lembrou que, mesmo que não haja capacidade de haver programas de qualidade nas nove escolas médicas do país, é provável que a melhor massa critica de cada uma possa ser integrada em programas de formação de qualidade. Reforçou, ainda, a importância de cooptar o interesse da sociedade civil para o problema da investigação médica, nomeadamente através das associações de doentes.
Maria do Céu Machado, Alta Comissária da Saúde, comentou as várias intervenções, lembrando que a participação do clínico em investigação pode ter lugar em qualquer momento da sua carreira profissional, salientando a importância da maturidade clínica para o desenvolvimento de projectos de investigação com relevância para o doente. Lembrou a importância dos “role-models” na preparação profissional do médico, considerando que o modelo clássico do investigador-médico “free-lancer” não está esgotado, interrogando-se sobre a vantagem da interrupção da actividade clínica para qualificação científica do médico. Considerou, ainda, que grande parte dos constrangimentos hospitalares à prática de investigação pode ser a consequência de a governação dos hospitais estar hoje entregue a gestores que se baseiam exclusivamente em índices de produtividade assistencial. Esse problema é, na sua opinião, agravado pelo facto de os directores de serviço serem forçados a responder pela produtividade clínica, muitas vezes não tendo tido eles próprios a oportunidade de fazer investigação. Tal poderá explicar que estejam menos receptivos a facilitar o desenvolvimento de investigação clínica nos seus serviços. No que respeita às bases nacionais de dados clínicos, constatou a sua inexistência, desconhecendo quando será possível criá-las, mencionando as dificuldades de nível organizacional do próprio sistema de saúde, tais como incompatibilidades de sistemas informáticos entre unidades de saúde, a organização não uniforme do processo clínico em diferentes hospitais, o desperdício de informação resultante da falta de coordenação sistémica e a rigidez da legislação actual que impede o próprio Instituto Nacional de Estatística de fornecer dados relativos à investigação médica, quando lhe são solicitados pelo Alto Comissariado da Saúde, para fins de preparação do Plano Nacional de Saúde.
Conclusão e recomendações
Os obstáculos a uma prática consistente de investigação por médicos-clínicos em Portugal são múltiplos, embora tenha sido patente, nas várias intervenções, que a maioria resulta da própria estrutura organizacional e funcional das Unidades do Sistema Nacional de Saúde.
A modificação da situação actual impõe, à semelhança do praticado em outros países, 1) a adopção de medidas de incentivo dirigidas às instituições de saúde; 2) o reforço das actuais iniciativas dirigidas à formação científica pós-graduada de médicos-clínicos; 3) o reforço e regularidade no financiamento de projectos de investigação orientados para o doente; 4) a criação no país dos instrumentos essenciais para uma investigação médica de qualidade – bases de dados clínicos e biobancos.
1 - Modificação da cultura institucional das unidades de saúde do SNS:
a) Iniciativas políticas que incentivem a prática de investigação orientada para o doente, incluindo critérios de produção científica na diferenciação das unidades de saúde.
b) Incentivos à criação de uma ecologia fértil ao envolvimento do Médico em investigação, criando “Clinical Translation Research Centres” de qualidade nos hospitais de referência.
c) Valorização significativa do curriculum científico na carreira médica, especialmente no âmbito dos recrutamentos para posições em hospitais académicos.
2 - Continuação do investimento na qualificação científica do médico-clínico:
a) Melhoria das iniciativas politicas de apoio à formação científica de jovens internos.
b) Introdução de medidas similares mas especificamente dirigidas a jovens especialistas, com criação de “Clinical/Translational Research Fellowships” para especialistas.
3. Reforço e continuidade do apoio financeiro à investigação clínica:
a) Abertura regular de concursos FCT especificamente dirigidos ao financiamento de projectos de investigação clínica de qualidade.
b) Envolvimento da sociedade civil neste objectivo, nomeadamente co-optando a participação de Associações de Doentes.
4. Bases de dados e biobancos:
A constatação das dificuldades operacionais do próprio SNS, no que respeita ao registo de dados clínicos nas suas unidades de saúde, é reveladora de uma situação que não só prejudica a operacionalidade do próprio Sistema como dificulta a criação de registos nacionais de dados para fins de investigação. Por outro lado, o tempo não permitiu que fossem discutidas as medidas em curso para a criação de um Biobanco nacional, estruturado em rede e em conectividade com estruturas congéneres de outros países. Estas matérias serão, portanto, o tema que a Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa procurará trazer à discussão no próximo debate sobre “Investigação Médica em Portugal”, a realizar no 1º trimestre de 2011.
Leonor Parreira
Presidente
Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa
vandaoliveira@fm.ul.pt
_____________
(1) Joseph oldstein & Michael Brown. "The Clinical Investigator: Bewitched, Bothered, and Bewildered - But Still Beloved". J. Clin. Invest. 99:2803-2812,1997.
(2) James Wyngaarden. The clinical investigator as an endangered species. N. Engl. J. Med. 301:1254–1259., 1981.
(3) Varki A, Rosenberg LE. Emerging opportunities and career paths for the young physician-scientist. Nat. Med. 8:437-439, 2002.
(4) Woolley M & Propst SM. Public attitudes and perceptions about health-related research. JAMA, 294:1380-1384, 2005.
(5) Nos últimos 20 anos, as duas áreas científicas que mais contribuíram para a internacionalização da ciência portuguesa foram, precisamente, as "Ciências da Saúde" e a "Biologia" (21% e 43% das publicações em revistas internacionais, respectivamente). Resultados tanto mais impressionantes quanto a parcela que lhes coube do investimento total em I&D, no mesmo período, foi apenas de 24% (10% no caso específico das Ciências da Saúde), um valor substancialmente inferior ao de outras áreas, em particular as Ciências da Engenharia e Sociais [ver: Produção Científica Portuguesa, 1990 - 2009: Séries Estatísticas (http://www.gpeari.mctes.pt/?idc=103)].
(6) Victorino RMM. A investigação no Hospital. in Governação dos Hospitais. Ed. Luís Campos, M. Borges e R. Portugal. Casa das Letras, 2009.