Espaço Aberto
Indicações actuais da Hipnose Clínica
Numa breve nota introdutória ao tema em epígrafe, convém fazer alguma contextualização, pelo que dois sub-capítulos antecedem o tema propriamente dito.
a) Generalidades
Contrariamente a algumas crenças e apesar da raiz do termo (Hipnos, de sono), a hipnose não é sono nem sonho. A hipnose corresponde a um estado de consciência modificado, em relação à vigília (altered state, em inglês), caracterizado por uma concentração atenta e receptiva, em que o indivíduo se abstrai do contexto em que se encontra, por uma focalização sugerida da atenção, em que ocorre ausência parcial de crítica. Em termos muito simples, pode comparar-se ao estado de sonolência pelo qual se passa diariamente ao acordar ou adormecer, de maior ou menor duração.
Este estado não apresenta alterações clínicas ou neurofisiológicas específicas, pelo que, para alguns autores, significa que ele não existe realmente ou que se trataria de “um acordo social” entre duas partes. No entanto, estudos mais recentes, fazendo apelo às técnicas imagiológicas mais avançadas (RMf), destrinçam claramente o que é imaginação em vigília e imaginação sob hipnose, pelo que é de considerar que se trata de um estado diferente/ modificado de consciência, tomando como referência o estado habitual de vigília.
Vários foram os médicos envolvidos no desenvolvimento da hipnose como instrumento terapêutico, entre eles destacam-se: Mesmer, que desenvolveu a teoria do magnetismo animal (apoiando a teoria da existência de um magnetismo especial, tanto nos animais como nos humanos); Charcot e Freud, um dos seus alunos na Salpêtrière, utilizam a hipnose para tratar histéricos. É pela observação da fenomenologia da hipnose que Freud, mais tarde, teoriza sobre o inconsciente e, posteriormente, sobre a psicanálise.
O português Abade Faria, objecto de um livro da autoria de Egas Moniz, teve também um papel importante na história da hipnose, uma vez que foi o primeiro a considerar que o estado hipnótico corresponde sempre a um estado de auto-sugestão.
Milton Erikson, psiquiatra norte-americano, é considerado o fundador da hipnose moderna. Esta é não-directiva, naturalista, parte do contexto da entrevista, faz apelo à imaginação do paciente e do terapeuta, utiliza abundantemente metáforas e, sobretudo, assumindo o terapeuta como mero facilitador e atribuindo ao paciente um papel activo (co-terapeuta) na sua terapia.
Apesar de toda a sua história, que remonta aos templos de sono gregos e egípcios e à sua história mais recente, de estudo científico, a hipnose tem sido posta de lado, talvez pela estranheza da fenomenologia e pela má imagem veiculada pela hipnose de diversão, sendo que apenas alguns interessados a praticam e continuam a explorar o seu potencial terapêutico e de estudo da mente, na actualidade.
Actualmente, a hipnose é ainda vista com algum cepticismo e desconfiança, tanto pela sociedade em geral como por parte de alguma classe médica. Para isso contribuiu uma vertente da hipnose, a de palco, de diversão em contraponto à hipnose clínica, terapêutica. Não se distinguem pelos métodos de indução e fenomenologia, que são semelhantes, mas pelo conteúdo, pelo que se passa durante a hipnose, isto é, pela intenção (divertir/curar) e pela diferente formação teórica e prática do hipnólogo (artista/terapeuta).
b) Mecanismo terapêutico
A forma como a terapia sob hipnose actua no organismo ainda é alvo de investigações científicas. Para além dos efeitos fisiológicos de um estado de relaxamento, surgem outros, decorrendo de sugestões dadas ao paciente, que praticamente simulam toda a fenomenologia psicológica e psicopatológica e, em algumas circunstâncias, também a de carácter (psico) fisiopatológico somático. De um modo muito simplista, mas que a mais recente pesquisa confirma, pode dizer-se que, para o cérebro, imaginar é o mesmo que fazer. Esta confirmação vem da imagiologia cerebral funcional, da imagiologia endoscópica, da psiconeuroendocrinologia e psicoimunologia, todas elas modificáveis pela sugestão de algo para imaginar, quando em estado hipnótico.
Estas modificações nem sempre são permanentes, pelo que, tal como para as vacinas, se têm de realizar sessões de “rappel” e ensinar ao paciente a sua manutenção pela auto-hipnose. Pode dizer-se, também, que o estado de hipnose depende mais do esforço e habilidades do sujeito que das capacidades do terapeuta. O grau de hipnotizabilidade é relativamente constante para cada indivíduo.
c) Indicações actuais
Os relatos de tentativa de curas através de métodos hipnoidais, tal como definidos, vêm da antiguidade clássica, tal como referidos na actividade dos templos de sono. Os pacientes e os terapeutas da altura tinham uma compreensão comum (não explicação!) sobre a causalidade da doença, bem como uma intenção de cura também comum. Juntava-se a relação de confiança estabelecida entre paciente e terapeuta, que funcionava como um campo de forças unificado e o ritual (actos standardizados) no setting terapêutico para a potenciação da cura. Na realidade é o que também hoje se faz, mutatis mutandi, num contexto hospitalar/ consultório, talvez com menos “magia”. Sem estes pressupostos, mesmo fora do contexto hipnótico, qualquer “indicação” para tratar não aproveita os factores algo inespecíficos, mas que demonstram a sua força no efeito placebo, que explica, em alguns estudos psiquiátricos cerca de 38% de melhoras.
É precisamente nas perturbações que são objecto da psiquiatria que a hipnose clínica encontra algumas das suas principais indicações. Estas incluem as perturbações de ansiedade (fobias – social, específicas e decorrentes da perturbação de pânico), ansiedade antecipatória pré-cirúrgica e circunstancial (para optimizar desempenhos), alguma fenomenologia obsessiva (treino de coping e relaxamento), depressão (não episódio depressivo major), perturbação do stress pós-traumático, perturbação dissociativa da identidade, perturbações somatoformes e conversões, alguns componentes da obesidade e anorexia nervosa e da dependência tabágica.
No espectro das indicações, segundo as especialidades médicas, surgem, naturalmente, em segundo lugar, as conotadas com a anestesiologia e seus correlatos, como a dor crónica e a diminuição de fármacos anestésicos em diferentes contextos (intervenções cirúrgicas, balneoterapia de queimados, procedimentos invasivos médicos, em especial endoscospias gastroenterológicas, extracções dentárias e parto sem dor).
Num sentido mais lato, qualquer especialidade médica com sintomas não explicados após estudo exaustivo ou persistentes (dores atípicas, cefaleias), ou patologias com forte componente psicológico na precipitação, agravamento e manutenção de sintomas, para potenciar ou acelerar efeitos na remissão sintomática ou cura (por exemplo, oncologia) e na medicina desportiva, para melhorar desempenhos.
Naturalmente que também é considerada, em si mesma, como um modelo experimental para o estudo do funcionamento da mente.
A finalizar, deve mencionar-se que antes de decidir usar a hipnose como um adjuvante terapêutico, o terapeuta se deve questionar sobre o que se “ganha” com este procedimento terapêutico, que consome tempo e necessita alguma continuidade. Também da parte do paciente se deve estar atento a expectativas irrealistas, para que, após um longo peregrinar por terapêuticas, em busca da solução milagrosa, não diga “Até tentei a hipnose e nem mesmo isso resultou”!
Mário Simões. Professor Agregado de Psiquiatria
Clínica Psiquiátrica Universitária
Faculdade de Medicina de Lisboa
noonauta@gmail.com
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Referência
Handbook of Clinical Hypnosis (2ª ed.) Steven Lynn, Judith Rhue, Irving Kirsch
American Psychological Association
Washington. 2010